Margarida Baptista

Advogada.
Exerce funções de apoio jurídico e contencioso à administração central do Estado.
Formadora, designadamente em entidades do setor público.
Instrutora em procedimentos de natureza disciplinar no âmbito de serviços da Administração Pública, designadamente em instituições hospitalares integradas no Serviço Nacional de Saúde.
Docente (3º Ciclo do Ensino Básico e Ensino Secundário).


Direito à Desconexão ou Dever de Não Contactar – Reflexos nas Relações de Trabalho é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado desde 6 de Junho de 2024.

Consulte a sua obra neste link.


Nota introdutória:

No regime jurídico português não existe expressamente consagrado o direito do trabalhador à desconexão, mas antes o Código do Trabalho (CT)[1] impõe o dever de o empregador se abster de contactar o trabalhador no período de descanso deste, salvaguardadas as situações de força maior (artigo 199º-A, do CT). Este dever só veio a ser vertido em norma legal com as alterações e aditamentos introduzidos no CT português pela Lei nº 83/2021, de 6 de dezembro, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2022, muito se devendo essa nova previsão aos circunstancialismos que conduziram ao maior recurso ao regime de trabalho à distância na sequência da pandemia resultante da doença do COVID 19. No entanto, o dever de abstenção de contacto assim consagrado abrange todas as modalidades de trabalho, que não apenas as referentes ao trabalho remoto, embora seja reforçado no âmbito do regime de teletrabalho ao ser qualificado como um dever especial do empregador (artigo 169º-B, nº 1, alínea b) do CT). Este dever (geral e especial) de abstenção de contacto por parte do empregador aplica-se tanto no setor privado como no setor público (administração pública, central, regional e local – cf. artigo 5º da Lei nº 83/2021).

Alguns antecedentes concretos no panorama nacional:

Antes, porém, da introdução expressa no ordenamento jurídico das previsões normativas identificadas, podíamos já encontrar previsões relativas ao direito à desconexão ou dever de abstenção/proibição de contacto em alguns instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho.

Assim, por exemplo, no campo laboral privado, o Acordo de Empresa celebrado entre o Banco de Portugal e o Sindicato Nacional dos Quadros e Técnicos Bancários e outro, de 13 de julho de 2018, consigna como uma garantia dos trabalhadores a proibição do Banco “Exigir que o trabalhador se mantenha conectado durante os seus períodos de descanso” (cláusula 14ª, alínea h)[2].

O Contrato Coletivo de Trabalho (CCT) celebrado entre a Associação Nacional de Agentes e Corretores de Seguros (APROSE) e o Sindicato dos Trabalhadores da Atividade Seguradora (STAS) e outro, em 12 de outubro de 2018, contém uma cláusula dedicada à “Utilização de ferramenta no âmbito da relação laboral”[3], com o teor que se transcreve, dada a semelhança com o regime geral surgido em 2021:

“1 – A utilização da ferramenta digital, cedida pela empresa não pode impedir o direito ao descanso consignado neste CCT e na lei, nomeadamente nos períodos e descanso entre jornadas, descanso semanal obrigatório, férias e dias feriados.  
2 – Somente por exigência imperiosa, referente ao funcionamento da empresa, resultante de ocorrências externas imprevistas ou anomalias inesperadas no normal funcionamento daquela, é permitida a interrupção dos período indicados no número anterior.”

A nível das relações laborais na Administração Pública, assinale-se o exemplo da Direção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho (DGERT), serviço da administração central integrado no Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, que, em 2019-2020, sentiu a necessidade de rever o seu Regulamento Interno, “fundamentalmente, no que respeita à inclusão efetiva de medidas que legitimem e facilitem a implementação de práticas que promovam uma melhor conciliação entre a vida profissional, pessoal e familiar, nomeadamente, não só a possibilidade dos trabalhadores puderem utilizar de forma flexível o Teletrabalho, mas também, institucionalizar o direito à pausa digital, a qual determina que, com exceção de situações especiais e devidamente identificadas, no período das 20h00 às 8h00 não exista troca de emails ou contactos telefónicos relacionados com questões de trabalho”.

Nessa senda, a DGERT fez incluir no seu Regulamento Interno[4] o artigo 6º que, sob a epígrafe “Pausa Digital”, expressamente estatui que fora do período normal de funcionamento desse serviço  (8h – 20h), “não devem ser enviados emails nem efetuados contatos telefónicos respeitantes a assuntos profissionais, a não ser que existam motivos urgentes e inadiáveis que o justifiquem”, sendo que “consideram-se sempre motivos urgentes e inadiáveis a troca de emails relativos à definição de serviços mínimos no caso de greves em setores considerados de necessidades impreteríveis.”

A partir de 2022, mercê da mencionada alteração ao CT, a previsão expressa do dever de abstenção de contacto por parte do empregador generalizou-se a nível dos Regulamentos Internos e /ou Manuais de Boa Conduta nos organismos e serviços da Administração Pública.

A atual previsão normativa:

Como referido no início deste artigo, o legislador nacional optou por impor ao empregador um dever de abstenção de contacto do trabalhador durante o período de descanso deste, ressalvadas as situações de força maior.  Essa opção concretizou-se através da introdução de um novo artigo no Código do Trabalho[5], expressamente dedicado a tal dever, concretamente o artigo 199º-A, que, sob a epígrafe “Dever de abstenção de contato”, dispõe o seguinte:

1 – O empregador tem o dever de se abster de contactar o trabalhador no período de descanso, ressalvadas as situações de força maior.
2 – Constitui ação discriminatória, para efeitos do artigo 25º, qualquer tratamento menos favorável dado a trabalhador, designadamente em matéria de condições de trabalho e de progressão na carreira, pelo facto de exercer o direito ao período de descanso, nos termos do número anterior.
3 – Constitui contraordenação grave a violação do disposto no nº 1.  

Como decorre da leitura do nº 2 do preceito supra transcrito, em ordem a reforçar essa obrigação de abstenção de contacto, o legislador estatui que um qualquer tratamento menos favorável do empregador relativamente a um trabalhador que não corresponda aos seus contactos durante o respetivo período de descanso – isto é, fora do seu horário de trabalho delineado nos termos do contrato individual, da lei, de regulamento ou de IRCT – será qualificada como ação discriminatória para efeitos do previsto no artigo 25º do CT, que dispõe, exatamente sobre a proibição de práticas discriminativas.

Com efeito, consubstanciará uma ação discriminatória, direta ou indireta, do empregador, suscetível de constituir uma contraordenação muito grave, qualquer prática que vise afetar desfavoravelmente o trabalhador, em detrimento de outros colegas, designadamente em termos remuneratórios (v.g. na atribuição de prémios de assiduidade e produtividade, de prémios de desempenho) e/ou em termos de avaliação e progressão na carreira, por o mesmo trabalhador ter exercido o seu direito à desconexão, após o termo do seu horário de trabalho, durante o seu período de férias,  num dia feriado, ou durante uma licença que lhe tenha sido concedida, em resumo, durante o seu período de descanso (artigo 25º do CT).

Alerte-se que, da conjugação do normativo ínsito nos citados artigos 25º e 199º-B do CT, não bastará ao trabalhador que sinta violado o seu direito ao descanso invocar que ocorreu uma infração do dever de abstenção de contacto por parte do empregador e que, porquanto não correspondeu às solicitações daquele, está a sofrer represálias que configuram uma prática discriminatória. Como se explica no nº 5 do artigo 25º do CT, o trabalhador visado pela alegada discriminação tem de indicar, ou seja, concretizar, outro ou outros colegas relativamente aos quais se sinta discriminado/prejudicado em termos, v.g., de acesso a frequência de ações de formação, nas condições de trabalho, na atribuição de prémios remuneratórios ou outras regalias laborais (previstas na lei, no regulamento da empresa ou serviço, em instrumentos coletivos de trabalho, ou no seu próprio contrato/acordo de trabalho), na avaliação do desempenho ou na progressão na carreira, tudo por que não respondeu a telefonemas, sms, mensagens eletrónicas, comunicações por whatsapp, por exemplo, que lhe foram endereçadas durante os seus legítimos períodos de descanso[6].

Por seu turno, face a uma alegação de prática discriminatória resultante da violação do dever de abstenção de contacto, caberá ao empregador provar que (a) não existe qualquer diferenciação de tratamento entre o trabalhador A e o trabalhador B, ou que (b) existindo tal diferenciação, a mesma encontra justificação legal, regulamentar ou contratual ou, ainda que (c) perante as circunstâncias concretas do caso, a mesma não tem assento em qualquer fator discriminatório ou vontade de discriminar o trabalhador (nº 5 do artigo 25º do CT).

Realça-se que os normativos em referência têm aplicação em todas as relações entre empregador e trabalhador, e não apenas no regime de teletrabalho – com o qual é, mais usualmente, relacionado -, até pelo aumento do número de trabalhadores que se encontraram/encontram em regime de teletrabalho ou em regime de trabalho híbrido, durante e após a crise pandémica derivada da doença do COVID 19.

É natural, no entanto, que nas situações de regime de teletrabalho e de regime misto ou híbrido, a imposição de dever de abstenção de contacto ao empregador assuma maior acuidade e relevância. Mais ainda quando o teletrabalho ocorre no domicílio do trabalhador, onde a fronteira entre o que é o período de trabalho e que é tempo de descanso pode revelar-se muito permeável e difícil de traçar.

Por isso, em sede do regime de teletrabalho, o dever de abstenção de contactar o trabalhador no seu período de descanso, foi alçado a um dever especial do empregador, nos termos preceituados na alínea b) do nº 1 do artigo 169º-B do CT:

1 – Sem prejuízo dos deveres gerais consagrados neste Código, o regime de teletrabalho implica, para o empregador, os seguintes deveres especiais:         
(…)      
b) Abster-se de contactar o trabalhador no período de descanso nos termos a que se refere o artigo 199º-A;         
(…)  
4 – Constitui contraordenação grave a violação dos deveres dispostos no nº 1.

Deste modo,no regime normativo delineado pelo legislador nacional, a desconexão no seio das relações laborais, ao invés de se identificar diretamente com um direito a desligar do trabalhador[7], implica, outrossim, um dever de não contactar por parte do empregador.

Este dever de abstenção de contacto, nas suas vertentes de dever geral e de dever especial do empregador, bem como a proibição de práticas discriminatórias sobre o trabalhador relacionadas com o direito de desconexão, recaem, igualmente, sobre o empregador público, atenta quer a remissão efetuada pela Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP) para o CT, quer pela estatuição vertida no nº 1 do artigo 5º da Lei nº 83/2021, de 6 de dezembro.

Com efeito, nos termos do artigo 4º, nº 1, alíneas e), j), k) e l), da LTFP, é aplicável ao vínculo de emprego público, sem prejuízo do constante na mesma lei e com as necessárias aplicações, o disposto no CT e respetiva legislação complementar, em matéria de assédio, organização e tempo de trabalho, tempos de não trabalho, e promoção da segurança e saúde no trabalho, matérias com as quais o direito à desconexão/dever de desconexão se interrelaciona ou concretiza.

Ao longo da LTFP são vários os preceitos que sobre essas mesmas matérias remetem para o normativo previsto no CT. Exemplificando:

• O nº 1 do artigo 68º, sobre a epígrafe “Remissão”, prevê que é aplicável aos trabalhadores titulares de um vínculo de emprego público (VEP) o regime previsto no CT em matéria de teletrabalho;

• O artigo 101º manda aplicar aos trabalhadores com VEP o regime do CT em matéria de organização e tempo de trabalho, com as necessárias adaptações (e sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes da LTFP);

• Os nºs. 1 e 2 do artigo 122º preceituam a aplicabilidade aos trabalhadores com VEP do regime do CT em matéria de tempos de não trabalho, bem como o regime dos feriados, com as necessárias adaptações e sem prejuízo das especificidades previstas na LTFP;

• O nº 1 do artigo 126º estatui que trabalhador tem direito a um período de férias remuneradas em cada ano civil, nos termos previstos no CT, embora com as especificidades previstas na LTFP.

E, especificamente quanto ao regime jurídico do teletrabalho consignado no Código do Trabalho, no qual se englobam os referenciados artigos 169ºB e 199ºB, o mesmo aplica-se, com as necessárias adaptações, à Administração Pública central, regional e local, conforme estatuído no nº 1 do artigo da Lei nº 83/2021, de 6 de dezembro.

Concluindo, também no que tange à matéria em apreço, regista-se a cada mais maior aproximação entre o regime previsto para as relações laborais privadas e o regime previsto para as relações laborais públicas.


[1] Aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro, objeto de várias alterações legais nele posteriormente introduzidas.

[2] Boletim do Trabalho e Emprego (BTE) nº 48, de 29.12.2018, consultável em https://bte.gep.msess.gov.pt/.

[3] Cf. cláusula 44ª, BTE nº 40, de 29.10.2018, consultável em https://bte.gep.msess.gov.pt/.

[4] O Regulamento Interno revisto entrou em vigor em 01.03.2020, quase dois anos antes da entrada em vigor da Lei nº 83/2021, de 6 de dezembro.

[5] Aditamento efetuado pela Lei nº 83/2021, de 6 de dezembro, que iniciou vigência em 1 de janeiro de 2022.

[6] Salvaguardando-se, todavia, as situações em que a perturbação do direito ao descanso do trabalhador poderá justificar-se ou estar prevista nos termos legais, regulamentares ou contratuais (individuais e/ou coletivos).

[7] Até porque esse direito há muito é reconhecido ao trabalhador, no âmbito do direito ao descanso ou ao tempo de não trabalho, consagrado como direito fundamental na nossa Constituição e reconhecido em vários instrumentos normativos internacionais e nacionais.