Inês Neves

Assistente Convidada da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
Investigadora do CIJ – Centro de Investigação Interdisciplinar em Justiça.
Advogada na Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados.

Rita Ferreira Gomes

Associada na Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva e Associados, Porto, Portugal.


Da devida diligência das empresas em matéria de gun-jumping

A sujeição de transações (v.g. concentrações) entre empresas ao controlo prévio das autoridades de concorrência (Comissão Europeia ou autoridades nacionais), é obrigação nem sempre bem compreendida ou entusiasticamente acolhida pelas empresas potencialmente sujeitas. O controlo e as obrigações inerentes são, não raras vezes, perspetivados como uma perda de tempo e de recursos (sobretudo quando se vêm a concretizar numa decisão de não oposição à operação).

Será, porventura, crítica justificada e merecida. Será inclusive tempo de repensar o sistema de controlo ex ante de concentrações entre empresas, vigente entre nós e na União Europeia, à luz da liberdade de empresa, como direito fundamental, e dos seus pecados originais. Ora peca por excesso (captando concentrações que um juízo de proporcionalidade justificaria isentar), ora peca por defeito (omisso em relação a concentrações potencialmente problemáticas para a estrutura da concorrência).

Discutir os méritos do sistema de iure condendo não silencia, porém, a premência da sua compreensão de iure constituto. Importa, por isso, recordar que as concentrações entre empresas com uma particular quota de mercado ou volume de negócios (e que, portanto, preencham os limiares de notificabilidade consagrados na lei aplicável) se encontram sujeitas a um escrutínio prévio, através do qual se procuram aferir os respetivos efeitos na estrutura da concorrência, para, nomeadamente, aferir se daí resultarão entraves significativos à concorrência (ex.: a criação ou o reforço de uma posição dominante).

De igual modo, importa reter que, nos termos da jurisprudência, o facto de uma empresa ter qualificado de modo juridicamente errado o seu comportamento não a isenta de uma coima por incumprimento das respetivas obrigações. Em particular, quando a empresa ignora ou interpreta as regras do regime do controlo de operações de concentração, em termos não cobertos pela respetiva redação, nem pela prática decisória das autoridades da concorrência, ou pela jurisprudência, considera-se haver, pelo menos, negligência não desculpável pelo erro quanto à licitude do seu comportamento, aliás, especialmente censurável, quando seja o produto da desconsideração de avisos dos respetivos advogados, quanto à necessidade de uma análise aprofundada.

As grandes empresas com experiência de participação em procedimentos de controlo e de notificação de concentrações à Comissão e às autoridades da concorrência nacionais são, naturalmente, sujeitas de uma diligência especialmente agravada[1]. Tal não afasta, porém, o facto de se estar perante expectativa que todas as empresas abrange. Porque de todas é a faculdade de participarem numa operação de concentração, potencialmente abrangida por um sistema de controlo ex ante.

Entre nós, o regime do controlo de operações de concentração vem sobretudo tratado na Lei n.º 19/2012, de 8 de maio (sucessivamente alterada), que aprova o novo regime jurídico da concorrência (‘LdC’). No espaço da União, importa, por seu turno, convocar o Regulamento (CE) n.º 139/2004 (‘Regulamento das concentrações comunitárias’ ou ‘RCC’)[2].

No entanto, em ambas as jurisdições – nacional e europeia -, a letra da lei apenas logra ser devidamente compreendida à luz da jurisprudência.

Gun-jumping: uma aproximação à divisio dos regimes nacional e europeu

O conceito de “gun-jumping” capta, na sua essência, os cenários de violação da obrigação de notificação de uma operação de concentração que preencha os limiares (de notificabilidade) previstos na legislação aplicável.

A obrigação de notificar uma operação de concentração (cf. artigos 37, n.º 1 da LdC e artigo 4.º, n.º 1 do RCC) é uma obrigação positiva e procedimental, que se considera acionada, no momento i) da conclusão do acordo e ii) antes da respetiva realização. Trata-se de um dever de facere, em parte conexo com a missão institucional das autoridades da concorrência de analisarem transações com efeitos potencialmente lesivos da estrutura da concorrência no mercado relevante.

Além da obrigação de notificar uma operação de concentração, vigora a proibição de a realizar (obrigação de standstill) em momento prévio à respetiva notificação ou até à adoção de uma decisão de não oposição pela autoridade competente (cf. artigos 40, n.º 1 da LdC e artigo 7.º, número 1 do RCC). Ao invés da primeira, esta (proibição) corresponde a uma obrigação de non-facere, na medida em que visa impedir a empresa de realizar a concentração ou de efetuar diligências ou transações que impliquem a aquisição de controlo (v.g. a possibilidade de exercício de influência determinante).

Em ambas as jurisdições, a violação da obrigação de notificação de uma operação de concentração (notificável), ora à Autoridade da Concorrência (‘AdC’), ora à Comissão Europeia (‘CE’), vem estando na mira das Autoridade Nacionais da Concorrência (‘ANC’) e, mais recentemente, da opinião pública, por força das coimas potencialmente aplicáveis. Em verdade, estas podem ir até 10% do volume de negócios total, a nível mundial, das empresas em questão, realizado no exercício imediatamente anterior[3].

Montante porventura menos simpático do que aquele despendido no exercício de due diligence contendente com a análise do preenchimento dos limiares de notificação, para efeitos da determinação da obrigação de notificar.

Ao contrário das práticas restritivas da concorrência, em relação às quais é grande e quase absoluta a sobreposição entre o Direito nacional e o Direito da União, os regimes do controlo de operações de concentração, nacional e europeu, desvelam diferenças não despiciendas entre si, e que importa não ignorar[4].

Desde logo, embora em muitos casos relacionadas entre si por uma lógica de consunção, nem sempre a violação de uma das obrigações referidas supra acarreta a violação da outra. É exemplo o caso em que a empresa notifica a operação de concentração, em momento prévio à respetiva realização (cumprindo o seu dever de notificação), não aguardando, porém, a decisão da autoridade competente (incumprindo a obrigação de standstill), implementando a operação, total ou parcialmente[5].

Esta não consunção é, no sistema europeu do RCC, refletida no regime de coimas aplicável. Com efeito, no Regulamento europeu, o artigo 14.º, n.º 2, autonomiza, em duas alíneas distintas, a situação das empresas que “omitam notificar uma operação de concentração […] antes da sua realização” e que “realizem uma operação de concentração” sem respeitar a obrigação de standstill – cf. alíneas a) e b) do referido preceito.

No seu mais recente acórdão de 9 de novembro de 2023, no Processo C-746/21 P (Altice Group Lux/Comissão)[6], o Tribunal de Justiça reiterou que “o artigo 4.º, n.º 1, e o artigo 7.º, n.º 1, do Regulamento n.º 139/2004 prosseguem objetivos autónomos, enunciam obrigações distintas e dão origem a infrações de natureza diferente.” (cf. §56 do acórdão), mais confirmando que a “possibilidade de aplicar, no âmbito de uma mesma decisão, duas coimas pela violação, por um único e mesmo comportamento, de duas obrigações autónomas é ao mesmo tempo adequada a garantir um controlo eficaz das concentrações com dimensão comunitária e necessária para o efeito.” (cf. §71 do acórdão).

Contrariamente, entre nós, a alínea f) do n.º 1 do artigo 68.º da LdC refere-se à “realização de operação de concentração de empresas antes de ter sido objeto de uma decisão de não oposição, em violação dos artigos 37.º e 38.º, do n.º 1 e da alínea a) do n.º 4 do artigo 40.º, ou que hajam sido proibidas por decisão adotada ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 53.º”.

Quer isto significar que, no Direito português, a norma incriminadora “não realiza qualquer tipo de distinção, englobando na mesma previsão todas as condutas que têm que ver com a realização de operação de concentração antes de sobre ela ter a AdC proferido uma decisão de não oposição[7]. Ou seja, a realização de uma operação de concentração de empresas, sem que haja uma Decisão prévia de não oposição pela AdC (independentemente do distinguo dos cenários em há ou não cumprimento do dever de notificação prévia) configura uma única contraordenação e um único ilícito instantâneo (ainda que de efeitos duradouros)[8]. Em suma, ao passo que o regime europeu autonomiza duas contraordenações distintas – i) a referente à não notificação de uma operação de concentração sujeita a notificação prévia e ii) a referente à não suspensão da operação de concentração -, legitimando, assim, a aplicação de duas coimas, no regime nacional, prevê-se uma só contraordenação.

A aproximação entre os dois regimes – nacional e europeu – logra-se ao nível do cômputo global das coimas. Com efeito, no regime nacional, a diferença entre os cenários A (a empresa cumpre a obrigação de notificação, i.e., notifica a operação, sem cumprir, depois, a obrigação da respetiva suspensão), e B (a empresa não cumpre nenhuma das obrigações), será valorada em sede de determinação da medida concreta da sanção[9].

Apesar da sua diferença, dos desenvolvimentos recentes em ambos os regimes resulta a necessidade de prestar particular importância ao cumprimento da obrigação de notificação e subsequente suspensão da operação de concentração, até que a mesma seja validada pela autoridade competente.

Recorrendo à jurisprudência mais recente do Tribunal de Justiça da União Europeia (‘TJUE’) como argumento de autoridade, em particular, nos processos Marine Harvest, Ernst & Young, Altice, Canon e Illumina/Grail[10], procuram-se extrair conclusões quanto à particular diligência das empresas no contexto do controlo de operações de concentração.

A jurisprudência do TJUE e o acordar da besta adormecida

À cabeça, relevam os arestos no processo Marine Harvest[11]. A empresa celebrou um acordo de compra de ações com o principal acionista de uma outra – a Morpol -, através do qual adquiriu uma participação de 48,5% no respetivo capital social. Nos termos da lei norueguesa aplicável, apresentou, subsequentemente, uma oferta pública de aquisição das restantes ações, só depois comunicando a concentração à CE. Pese embora o “segundo lote” de ações (que lhe permitiram aumentar a sua participação na referida sociedade de 48,5% para 87,1%) tenha sido adquirido apenas após a aprovação da operação pela Comissão, considerou esta que a “primeira fase de aquisição” se afigurara bastante para conferir à Marine Harvest controlo sobre a Morpol. Ora, como esta primeira fase se deu em momento prévio à aprovação, foram violadas, quer a obrigação de notificação prévia, prevista no artigo 4.º, n.º 1, quer a obrigação de standstill, consagrada no artigo 7.º, n.º 1 do RCC.

Em particular, à questão de saber i) se a aquisição da participação de 48,5% no capital social da Morpol constitui, per se, uma concentração, ou ii) se essa aquisição e a posterior oferta pública de aquisição devem ser consideradas como uma única concentração[12] (afastando a violação dos deveres de notificação e standstill), a jurisprudência europeia respondeu assertivamente. A noção de ‘concentração única’ não é pertinente numa situação em que o controlo é conferido no âmbito de uma primeira operação privada, sendo irrelevante que esta seja seguida de uma operação (in casu, uma oferta pública de aquisição), desnecessária ou irrelevante para a questão do controlo sobre uma empresa afetada pela concentração[13]. Deste processo resultam importantes conclusões quanto à noção de ‘concentração única’, circunscrita aos casos em que há uma verdadeira relação de interdependência entre diferentes operações, não apenas conexas por uma mera condicionalidade de facto.

Já no caso Ernst & Young[14], estava em causa uma fusão entre duas empresas de auditoria ativas no mercado dinamarquês. Nos termos do acordo de fusão, a KPMG DK comprometia-se a denunciar um acordo de cooperação celebrado com o respetivo grupo internacional. Segundo a ANC dinamarquesa, ao pôr termo ao acordo de cooperação, a empresa (KPMG DK) e a Ernst & Young haviam violado a obrigação de standstill. Chamados a pronunciarem-se sobre o alcance exato da obrigação de suspensão e respetiva aplicação à rescisão do acordo pela KPMG DK, concluíram os tribunais da União que, apesar de determinados passos preparatórios da operação (como acordos ou aquisições parciais) poderem já contribuir para uma mudança duradoura de controlo sobre a empresa adquirida (acionando a responsabilidade das empresas envolvidas), tal não se aplicava ao caso, na medida em que a rescisão não tinha por efeito conferir à Ernst & Young qualquer direito ou poder de controlo sobre a KPMG DK.

Diferentemente, no caso Altice[15] concluiu a Comissão – confortada, depois, pela jurisprudência do TJUE – que a assinatura do contrato de aquisição de ações (‘Share Purchase Agreement’ ou ‘SPA’) pela Altice Europe NV (‘Altice’), com vista à aquisição do controlo exclusivo da PT Portugal (através da sua filial Altice Portugal SA), permitira à primeira adquirir a possibilidade de exercer influência determinante sobre a última. Isto, em razão de um conjunto de cláusulas preparatórias, e da verificação de trocas de informações sensíveis, demonstrativas da intervenção ativa da Altice no funcionamento quotidiano da PT Portugal. Em particular, constatou a Comissão que, em razão do SPA, aquela havia adquirido as possibilidades de vetar decisões relativas à política comercial do alvo; codeterminar a estrutura dos seus quadros superiores, e, bem assim, celebrar, alterar e rescindir certos tipos de contratos.

O processo não é despiciendo. Pese embora reconheça a legitimidade da inclusão, nos SPA’s, de cláusulas dirigidas a assegurar a preservação do valor da empresa-alvo, o TJUE é assertivo, seja na reiteração de um princípio de estrita necessidade quanto ao respetivo conteúdo (ainda que avançado em termos genéricos e não concretizados), seja numa importante delimitação negativa (de licitude) – as cláusulas e os entendimentos ínsitos ao SPA não poderão, em caso algum, dar à adquirente a possibilidade de exercer influência decisiva sobre a empresa-alvo (sob pena de se acionar, logo aí, a obrigação de notificação da concentração).

O caso Canon[16] vê a sua importância assentar, por seu turno, no distinguo entre as noções de implementação da concentração e aquisição de controlo. Com efeito, ao passo que a implementação da concentração se poderá alongar-dispersar no tempo (o que justifica, aliás, as noções de implementação parcial e de concentração única), a aquisição de controlo -, correspondente à possibilidade de exercício de influência determinante -, é, pelo contrário, instantânea.

Finalmente, a importância da saga Illumina/Grail[17] ultrapassa a fama dos 432 milhões de euros de coima aplicados à Illumina por gun-jumping (e da aplicação pioneira de uma coima, também à empresa-alvo). Dela resulta a clarificação da competência da Comissão Europeia para, ao abrigo do artigo 22.º do RCC (mecanismo de remessa ou referral) apreciar concentrações que não preencham os limiares de notificação (por exemplo, e como no caso, em razão da importância jusconcorrencial de uma empresa-alvo que não gera receitas em nenhum Estado-Membro da União). Segundo o TJUE, o mecanismo de remessa poderá sempre aplicar-se, inclusive quando, no ordenamento jurídico nacional, inexista um sistema de controlo ex ante de operações de concentração. Míster é que a operação abrangida pelo pedido de remessa (por um ou mais Estados-Membros) corresponda a uma ‘concentração’, nos termos do artigo 3.º do RCC que, pese embora não preenchendo os limiares de dimensão europeia, afete o comércio entre Estados-Membros e ameace de forma significativa a concorrência no território do ou dos Estados-Membros requerentes. Ciente dos pecados por defeito e das lacunas dos sistemas de controlo ex ante, desde logo quando assentes no critério do volume de negócios, o mecanismo de remessa poderá bem inaugurar um novo capítulo no terreno já de si desafiante do gun-jumping.

Da diligência esperada e exigida das empresas

As incertezas, as dúvidas e as pontas soltas ainda por dirimir, sobretudo no que se refere à determinação do trigger point da obrigação de notificar e, antes dele, à avaliação do preenchimento dos limiares de notificação (nem sempre líquidos) não desoneram a empresa que se propõe realizar uma operação de concentração de uma especial responsabilidade.

Em particular, resulta da jurisprudência europeia e nacional, que sobre a empresa incide, desde logo, um especial dever de informação, concretizado num ónus de exaustão, insatisfeito por análises preliminares ou meramente perfunctórias, que não permitam ir além da dúvida razoável[18]. À empresa exige-se, em particular, que encete a análise necessária à formação de uma convicção sólida no sentido da desnecessidade de notificação, não podendo o caráter relativamente inovador ou atípico da transação justificar, sequer, a dispensa de uma indagação detida. Pelo contrário, reforça até os seus ónus de informação e de análise.

Naturalmente dependente da assessoria jurídica e económica necessárias ao efeito, resulta da jurisprudência a este propósito que: i) um simples parecer jurídico poderá não ser desculpante da violação da obrigação de notificação prévia e que ii) a desconsideração da advertência do(s) advogado(s) quanto à necessidade de uma análise mais detalhada, poderá fundar a existência de negligência consciente, sendo sintoma de descuido e de desleixo, inclusive perante as possibilidades que então se abrem à empresa (v.g. a possibilidade de solicitar esclarecimentos à AdC)[19].

Em todo o caso, a especial diligência que se espera e exige das empresas (porventura variável com a respetiva experiência em processos de concentração) não elimina espaço para a figura do erro de valoração ou moral. Míster é que a dúvida na interpretação da lei não seja, à luz da ordem jurídica de valores, destronada pela censura da minivaloração das regras de cuidado face a uma sobrevaloração da atuação em terreno seguro[20].

O conceito de devida diligência pressupõe a identificação e a análise dos riscos. A crescente importância e montantes das sanções por gun-jumping deverão, naturalmente, entrar na equação.


[1]           Cf. inter alia, §§ 236‑238, 255, 257‑259 do acórdão do Tribunal Geral de 26 de outubro de 2017 no processo Marine Harvest/Comissão (T-704/14).

[2]           Cf. Regulamento (CE) n.º 139/2004 do Conselho, de 20 de janeiro de 2004, relativo ao controlo das concentrações de empresas (‘Regulamento das concentrações comunitárias’), OJ L 24, 29.1.2004, p. 1-22.

[3]           Cumpre sinalizar uma tendência para o agravamento das sanções aplicadas por gun-jumping na jurisdição da União Europeia. Em julho de 2023, a Comissão Europeia aplicou à Illumina uma coima de cerca de 432 milhões de euros, por violação intencional da obrigação de standstill (coima representativa de 10% do volume de negócios total da empresa). No que se refere aos precedentes mais recentes, cumpre salientar, além do processo Altice Group Lux/Comissão; o processos Canon/Comissão e Marine Harvest (com cumulação de coimas pela violação i) da obrigação de notificação prévia da operação e ii) da obrigação de suspensão da respetiva execução), e, bem assim, o caso Ernst & Young.

[4]           Basta recordar, a este propósito, a sentença do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (‘TCRS’), de 22 de novembro de 2023, no processo n.º 391/22.2YUSTR (DCC-PCC/2021/3), pela qual decidiu absolver a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa da prática de uma de duas contraordenações pelas quais vinha acusada. Considerou o Tribunal que a realização de uma operação de concentração, sem prévia decisão de não oposição pela Autoridade da Concorrência, configura uma única infração instantânea (ainda que de efeitos duradouros), afastando-se da prática decisória e da jurisprudência europeias, ao negar a duplicidade de infrações que, no Direito da União, se verifica em razão da autonomização da violação da obrigação de notificação prévia, face à violação da obrigação de não implementação da concentração (standstill). Afastou, ainda, a qualificação da infração como infração duradoura, qualificando-a, antes, como infração instantânea, ainda que de efeitos duradouros.

[5]           Cf. acórdão do Tribunal Geral de 26 de outubro de 2017 no processo Marine Harvest/Comissão, cit.

[6]           Trata-se este de um acórdão que surge na sequência de prática decisória e jurisprudência reiteradas da Comissão Europeia e do Tribunal de Justiça da União Europeia, distinguindo i) a obrigação de notificação de uma operação de concentração (consagrada no artigo 4.º, n.º 1 do Regulamento de concentrações comunitárias) como uma obrigação processual, positiva e instantânea de agir ou de facere e a ii) a obrigação de standstill (consagrada no artigo 7.º, n.º 1 do Regulamento de concentrações comunitárias) como uma obrigação substantiva, negativa e continuada, de non facere, que dura até i) que finde o controlo ou ii) que a Comissão Europeia autorize a concentração ou conceda uma derrogação. Isto, sem que a jurisprudência europeia considere lesados, i) seja o princípio da proporcionalidade enquanto tal, ii) seja o princípio ne bis in idem (ou a proibição de dupla punição), seja iii) o princípio do ‘conflito aparente’ ou do ‘falso conflito’ (unechte Konkurrenz) nos termos do Direito internacional e das Ordens Jurídicas dos Estados-membros. Cf., em particular, acórdão do Tribunal Geral de 26 de outubro de 2017 no processo Marine Harvest/Comissão (T-704/14); acórdão do Tribunal de Justiça de 4 de março de 2020 no processo Marine Harvest/Comissão (C-10/18 P) e Conclusões do Advogado-geral Tanchev apresentadas em 26 de setembro de 2019 no processo Marine Harvest/Comissão (C-10/18 P); acórdão do Tribunal de Justiça de 31 de maio de 2018 no processo Ernst & Young (C-633/16); acórdão do Tribunal Geral de 2 de dezembro de 2012, Electrabel/Comissão Europeia (T-332/09); acórdão do Tribunal Geral de 22 de setembro de 2021 no processo Altice Europe/Comissão (T-425/18), acórdão do Tribunal de Justiça de 9 de novembro de 2023 no processo Altice Europe/Comissão (C-746/21 P) e Conclusões do Advogado-geral Collins de 27 de abril de 2023 no processo Altice Europe/Comissão (C-746/21 P); acórdão do Tribunal Geral de 13 de julho de 2022 no processo Illumina/Comissão (T-227/21) e acórdão do Tribunal Geral de 18 de maio de 2022 no processo Canon/Comissão (T-609/19).

[7]           Cf. §§2519-2521 da sentença do TCRS, cit.

[8]           Sobre a qualificação como ilícito instantâneo, cf. §§3174-3184 da sentença do TCRS, cit.

[9]           Cf. §§2530-2533 da sentença do TCRS, cit.

[10]         A divisio que se acaba de traçar não retira protagonismo à jurisprudência europeia, que permanece relevante na densificação de pontos, também eles pertinentes para a compreensão e densificação do regime nacional de controlo de operações de concentração.

[11]         Cf., em particular, §§103-106 e 208-214 do acórdão do Tribunal Geral de 26 de outubro de 2017 no processo Marine Harvest/Comissão, cit.; acórdão do Tribunal de Justiça de 4 de março de 2020 no processo Marine Harvest/Comissão, cit., e Conclusões do Advogado-geral Tanchev apresentadas em 26 de setembro de 2019 no processo Marine Harvest/Comissão, cit.

[12]         Cf. Nos termos do considerando 20 do RCC, “O conceito de concentração deverá ser definido de modo a abranger as operações de que resulte uma alteração duradoura no controlo das empresas em causa e, por conseguinte, na estrutura do mercado. […] É, além disso, adequado considerar como uma única concentração operações que apresentem ligações estreitas na medida em que estejam ligadas por condição ou assumam a forma de uma série de transacções de títulos que tem lugar num prazo razoavelmente curto.”

             Sobre o considerando 20 do RCC cf. também os §§150–153 do acórdão do Tribunal Geral no processo Marine Harvest/Comissão, cit.

[13]         Cf. §70 do acórdão do Tribunal Geral de 26 de outubro de 2017 no processo Marine Harvest/Comissão, cit. e §52 do acórdão do Tribunal de Justiça no mesmo processo, cit.

[14]         Cf. §§46-52 e 60 do acórdão do Tribunal de Justiça de 31 de maio de 2018 no processo Ernst & Young, cit.

[15]         Cf. §§26, 27, 70-77, 87, 102, 103, 130, 131, 221–223 e 229 do acórdão do Tribunal Geral de 22 de setembro de 2021 no processo Altice Europe/Comissão, cit.; §§137–141, 145–148, 153, 154, 169–171 do acórdão do Tribunal de Justiça de 9 de novembro de 2023 no processo Altice Europe/Comissão, cit. e §§42 e 52 das Conclusões do Advogado-geral Collins de 27 de abril de 2023 no processo Altice Europe/Comissão, cit.

[16]         Cf. §§78-80, 210, 259, 277, 278 do acórdão do Tribunal Geral de 18 de maio de 2022 no processo Canon/Comissão, cit.

[17]         Cf. §§92–94, 116 -139, 142, 153, 154, 207-210, 224-226, 239-245 e 261-265 do acórdão do Tribunal Geral de 13 de julho de 2022 no processo Illumina/Comissão (T-227/21).

[18]         Cf. §1011 e ss. da sentença do TCRS, cit.

[19]         Cf. §§ 2686-2695 da sentença do TCRS, cit.

[20]         Cf. §§1126-1131 da sentença do TCRS, cit.