Artur Flamínio da Silva

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Professor Associado da Universidade Autónoma de Lisboa. Investigador do Ratio Legis da UAL e do CEDIS-NOVA School of Law Doutor e Mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Nova. Licenciado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Árbitro


  1. A arbitragem de Direito Administrativo: enquadramento

A utilização e implementação de meios de resolução alternativa de litígios não é uma novidade no Direito Administrativo, assumindo, a arbitragem particular destaque na sociedade portuguesa. No entanto, nem sempre essa proeminência é acompanhada por um discurso positivo relativamente à sua genérica admissibilidade no Direito Administrativo.

Com efeito, subsiste uma narrativa que tende a encarar negativamente a possibilidade de existir uma jurisdição “privada” para julgar o Estado, a qual não é globalmente compatível com a realidade da arbitragem voluntária no domínio do Direito Administrativo, recusando-se somente a reconhecer o potencial da resolução de litígios situada fora dos tribunais estatais.

As vantagens da arbitragem voluntária no Direito Administrativo são evidentes, nomeadamente, se atendermos à celeridade na resolução do litígio, à especialização dos julgadores e, muito particularmente em certos litígios submetidos a arbitragem institucionalizada, à existência de custas especialmente reduzidas[1].

Contudo e admitindo a validade de algumas críticas, por exemplo, as relativas à necessidade de assegurar uma maior transparência no processo jurisdicional arbitral, reconhecemos a importância de o legislador garantir um afastamento do paradigma e das características originárias do instituto no Direito Privado. Somos, desde há algum tempo, defensores da necessidade de não ignorar as especificidades do Direito Administrativo na resolução de litígios, designadamente da importância de ter em conta um elemento objectivo (da tutela da legalidade) e um elemento subjectivo (da tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos)[2].

Uma leitura atenta do artigo 181.º, n.º 1, do CPTA, no qual se afirma que: “[o] tribunal arbitral é constituído e funciona nos termos da lei sobre arbitragem voluntária, com as devidas adaptações”, permite concluir que, em regra, se encontrarão na Lei de Arbitragem Voluntária (LAV)[3], ainda que sejam necessariamente salvaguardadas as suas particularidades, as soluções para a arbitragem de Direito Administrativo.

Fica, no entanto, de fora destas pequenas observações a tomada de posição sobre o alcance de uma qualquer intervenção legislativa neste domínio e, muito especialmente, a questão de saber até onde poderá o legislador “descaracterizar” o instituto da arbitragem, tal como se configura de forma clássica[4] em muitos ramos de Direito Privado[5].

Em contraponto e numa delimitação positiva, de entre os tópicos polémicos, a existência (ou não) de um recurso para os tribunais estaduais tem-se revelado como um dos mais complexos e difíceis. Esta é a razão que nos leva a escrever o presente texto.

A matéria em apreço não será, porém, analisada em toda a sua extensão. Na verdade, cumpre-nos explorar um problema muito particular que tem sido controverso na jurisprudência dos tribunais administrativos: a questão de saber se com a escolha de um centro de arbitragem na convenção de arbitragem, as partes ficam vinculadas às normas regulamentares do centro que dispõem sobre a (in)existência de recurso das decisões arbitrais para os tribunais administrativos (estaduais).

  • A inexistência de recurso na arbitragem de Direito Administrativo como regra fundamental?

Nos termos do artigo 39.º, n.º 4, da LAV, a sentença arbitral[6] “(…) só é susceptível de recurso para o tribunal estadual competente no caso de as partes terem expressamente previsto tal possibilidade na convenção de arbitragem e desde que a causa não haja sido decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável”.

De acordo com esta norma, só há possibilidade de recurso para os tribunais estaduais das sentenças arbitrais quando exista uma “manifestação expressa” das partes nesse sentido[7]. Caso contrário, não podem as mesmas socorrerem-se desse mesmo recurso (ordinário)[8].

A lógica da “definitividade da sentença arbitral”[9] subjacente à inexistência de recurso das sentenças arbitrais para os tribunais estaduais conforme se encontra previsto no Direito Privado é também uma realidade no Direito Administrativo[10], exceptuando as situações em que o recurso é admitido na decorrência das alterações, em 2017, do Código dos Contratos Públicos (CCP) e, em 2019, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)[11]. Nas restantes situações em que não seja legalmente possível o recurso, a impugnabilidade da sentença arbitral só poderá ter lugar através da acção de anulação, prevista no artigo 46.º da LAV, a menos que as partes convencionem em sentido contrário e prevejam a existência de um recurso ordinário.

  • Brevíssimas notas sobre a arbitragem institucionalizada no Direito Administrativo

No que respeita à arbitragem voluntária de Direito Administrativo, a credencial legislativa prevista no artigo 187.º, n.º 1, do CPTA, permite concluir que: “[o] Estado pode, nos termos da lei, autorizar a instalação de centros de arbitragem institucionalizada destinados à composição de litígios passíveis de arbitragem (…)”. Neste contexto, a arbitragem institucionalizada reconduz-se à que se desenvolve no âmbito de um centro arbitral, contando com uma estrutura administrativa que existe em permanência e dispondo de um conjunto de regras/regulamentos próprios[12].

Estes centros, potencialmente competentes para administrar arbitragens em matéria arbitrável, carecem ainda do cumprimento dos pressupostos que permitem obter um acto administrativo autorizativo, nos termos previstos no Decreto-Lei n.º 425/86, de 27 de Dezembro[13].

Nem sempre é legalmente admissível que as partes resolvam os seus litígios fora do âmbito da arbitragem institucionalizada, conforme decorre, por exemplo e em regra, do artigo 476.º do CCP[14]. Não obstante, nos restantes casos, é comum que a arbitragem ad hoc seja também utilizada como forma de resolução de litígios no Direito Administrativo.

A arbitragem institucionalizada pode, contudo, apresentar-se como mais vantajosa. Assim sucede quando além das suas receitas próprias, o centro é parcialmente apoiado financeiramente pelo Estado, permitindo adoptar um sistema de custas de valor reduzido ou até abolir a sua existência, prestando, assim, um serviço de arbitragem gratuito[15].

  • A convenção de arbitragem, o recurso e a “manifestação expressa” na remissão para regulamentos de centros de arbitragem

No que concerne ao recurso, estabelece-se, nos termos do artigo 185.º-A do CPTA, que: “[a]s decisões proferidas pelo tribunal arbitral podem ser impugnadas nos termos e com os fundamentos estabelecidos na lei de Arbitragem Voluntária”. Neste sentido, pode-se concluir, em princípio, pela aplicabilidade, como regra, da solução prevista no artigo 39.º, n.º 4, da LAV também na arbitragem de Direito Administrativo. Ficam, contudo, e naturalmente, excluídas as situações específicas em que o CCP e o CPTA admitem a existência de recurso.

O artigo 6.º da LAV, também aplicável na arbitragem de Direito Administrativo, no qual se dispõe que: “[t]odas as referências feitas na presente lei ao estipulado na convenção de arbitragem ou ao acordo entre as partes abrangem não apenas o que as partes aí regulem directamente, mas também o disposto em regulamentos de arbitragem para os quais as partes hajam remetido”, tem gerado algumas dúvidas na jurisprudência administrativa.

A hipótese prática que, quanto à interpretação deste artigo, tem sido mais controversa consiste na situação em que se verificando silêncio das partes relativamente à existência dos recursos, existe uma adesão das mesmas a um regulamento de um centro de arbitragem que os consagra.

Num momento inicial, argumentou, a este respeito, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) que: “a existência de expressa manifestação da vontade das [partes] quanto [à] possibilidade ou a admissibilidade de existência de recurso jurisdicional duma decisão arbitral a realizar-se (…) na convenção de arbitragem celebrada ou, então, nos articulados produzidos no processo arbitral por cada um dos seus intervenientes, [constitui] a existência duma tal manifestação expressa das partes, [a qual é] condição de verificação necessária para o assegurar da recorribilidade de tal decisão”[16].

Numa síntese, só poderia existir recurso se as partes o tivessem expressamente – e de forma inequívoca – previsto na convenção de arbitragem ou no decurso do processo arbitral.

Todavia, o STA veio, em 2019, a contrariar frontalmente este entendimento, admitindo que, com a submissão de um litígio ao tribunal arbitral, as partes aceitam o regulamento do centro de arbitragem, o qual determinava a existência de recurso, pelo que, nesta situação, se conclui pela possibilidade de recurso da sentença arbitral[17].

Contextualizando o caso em apreciação, deve referir-se que estava em causa determinar se haveria recurso de uma sentença arbitral que negara o pedido dos autores com vista ao reconhecimento do direito a receber um suplemento de risco a pagar pelo Ministério da Justiça. O recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul (TCA Sul) foi rejeitado, interpondo uma das partes dessa mesma decisão recurso de revista para o STA.

A disputa neste recurso para o STA remetia para a questão de saber se uma das condições de recorribilidade, designadamente o requisito da manifestação “expressa”, previsto no artigo 39.º, n.º 4, da LAV, se encontrava preenchido no caso concreto com a “expressa” escolha e remissão das partes na convenção de arbitragem para um regulamento de um centro de arbitragem que postulava a existência de recurso.

Neste sentido, as dúvidas passariam por esclarecer se um regulamento de arbitragem ao dispor que: “[s]e as partes não tiverem renunciado aos recursos, da decisão arbitral cabem os recursos que caberiam da sentença proferida pelos tribunais de 1.ª instância”[18] era ilegal por violação do artigo 39.º, n.º 4, da LAV.

O argumento fundamental tribunal para recusar a hipótese da inexistência de recurso resultou de uma leitura integrada do CPTA, da LAV e do regulamento do centro de arbitragem. Com efeito, tendo presente que solução ínsita no artigo 181.º do CPTA remete, com as “devidas adaptações”, para a LAV, e no caso concreto, num primeiro momento, para o artigo 39.º, n.º 4, admitiu o tribunal, em primeiro lugar, o STA que, por hipótese, pudesse existir “um regime específico para a arbitragem administrativa”.

Estas dúvidas dissipam-se, porém, quando na interpretação da compatibilidade legal da solução (da existência de recurso, a menos que as partes declarem o contrário) prevista nos regulamentos de arbitragem encontramos uma norma que determina expressamente a aceitação do conteúdo do regulamento de arbitragem com a submissão do litígio a tribunal arbitral constituído no seio do centro.

Não obstante, concordamos maioritariamente com a argumentação desenvolvida pelo STA nesta última decisão[19], uma vez que com a “aceitação” e a eleição na convenção de arbitragem de um centro de arbitragem, as partes aceitam “expressamente” também a solução da recorribilidade enquanto princípio geral que se encontra previsto no regulamento do mesmo. Deste modo, o regulamento do centro de arbitragem não viola a regra da irrecorribilidade prevista no artigo 39.º, n.º 4, da LAV, uma vez que existe uma escolha (expressa) das partes em sentido contrário, conforme é admitido por esta última regra.

Não existem, no nosso entendimento, dúvidas de que as partes ao remeterem e aceitarem a submissão de um litígio para um certo centro (e com esta circunstância as regras processuais que são aplicáveis por via do regulamento por este adoptado), acolhem, igualmente, as soluções nele previstas. Logo, acaba por não existir uma incompatibilidade com o quadro legalmente aplicável, tratando-se, portanto, de uma interpretação que, conforme reconhece (e bem) o STA, “não deixa de se coadunar com o espírito do artigo 6.º da LAV”.

Esta é, aliás, a posição que o TCA Sul passou, muito recentemente, também a sufragar[20], após um período inicial onde não divergiu da jurisprudência anterior do STA[21].

  • Notas conclusivas

A arbitragem de Direito Administrativo propicia discussões que estão longe de se encontrar resolvidas. A jurisprudência tem auxiliado na criação de espaços de autonomia da arbitragem, respeitando, regra geral, a sua essência. Sucede, porém, que nunca poderemos colocar em causa uma das bases fundamentais da arbitragem: a vontade das partes. Numa situação como aquela em que as partes escolhem especificadamente um centro de arbitral – aceitando o seu regulamento – não pode deixar de ser respeitada a solução por elas querida.

Neste sentido, andou bem o STA – e, posteriormente, o TCA Sul – em inverter a sua jurisprudência inicial na qualificação da “manifestação expressa” no âmbito da escolha que as partes devem tomar relativamente a um recurso da sentença arbitral.


[1] O que nem sempre é do conhecimento da comunidade jurídica e dos potenciais utilizadores da arbitragem. Por outro lado, estas conclusões não valem para a arbitragem necessária de Direito Administrativo, tal como aquela que o legislador configurou nas regras legais aplicáveis ao centro de arbitragem conhecido como “Tribunal Arbitral do Desporto”.

[2] Neste sentido, v., com desenvolvimentos, Artur Flamínio da Silva, A Resolução de Conflitos Desportivos: Entre o Direito Público e o Direito Privado, Coimbra, Almedina, 2017, pp. 433 e ss. e, especialmente, p. 434.

[3] Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro.

[4] Ainda que tenhamos presente que o instituto apresenta muitas nuances quer no âmbito da arbitragem interna, quer da arbitragem internacional.

[5] Fica, naturalmente, de fora desta configuração a arbitragem no Direito do Consumo, pois a sua existência tem preocupações evidentes na protecção jurisdicional do consumidor.

[6] Sobre este conceito, António Pedro Pinto Monteiro, Artur Flamínio da Silva e Daniela Mirante, Manual de Arbitragem, 1.ª Reimpressão, Coimbra, Almedina, 2020, pp. 361 e ss.

[7] A par da inexistência de decisão segundo a equidade ou composição amigável.

[8] Esta solução abrange só o recurso ordinário, visto que o recurso extraordinário é sempre admitido, v. António Pedro Pinto Monteiro, Artur Flamínio da Silva e Daniela Mirante, Manual de Arbitragem, 1.ª Reimpressão, Coimbra, Almedina, 2020, p. 408.

[9] V. António Pedro Pinto Monteiro, Artur Flamínio da Silva e Daniela Mirante, Manual de Arbitragem, 1.ª Reimpressão, Coimbra, Almedina, 2020, p. 407.

[10] V., a este respeito, a leitura conjugada do artigo 476.º, n.º 5 do CCP e do artigo 180.º, n.º 3, do CPTA, bem como os recursos previstos no artigo 185.º-A, n.º 3, alíneas a) e b) do CPTA.

[11] Com as alterações promovidas pelo Decreto-Lei n.º 111-B/2017, 31 de Agosto e pela Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro.

[12] Sobre o que distingue a arbitragem institucionalizada e a arbitragem ad hoc, v. António Pedro Pinto Monteiro, Artur Flamínio da Silva e Daniela Mirante, Manual de Arbitragem, 1.ª Reimpressão, Coimbra, Almedina, 2020, pp. 18 e ss.

[13] Com outros desenvolvimentos, v. António Pedro Pinto Monteiro, Artur Flamínio da Silva e Daniela Mirante, Manual de Arbitragem, 1.ª Reimpressão, Coimbra, Almedina, 2020, pp. 28 e ss.

[14] Só em circunstâncias muito excepcionais pode ser escolhido que o litígio seja resolvido por arbitragem ad hoc.

[15] Da qual é expressão máxima o caso de centros de arbitragem de consumo que não praticam quaisquer custas.

[16] V., paradigmaticamente, o acórdão do STA de 30 de Maio de 2018, processo n.º 066/18.

[17] Cfr. o acórdão do STA de 4 de Abril de 2019, processo n.º 0113/17.0BCLSB0296/18.

[18] V. o STA de 4 de Abril de 2019, processo n.º 0113/17.0BCLSB0296/18.

[19] Ainda que não seja um regime específico da “arbitragem administrativa”.

[20] Conforme reconhece precisamente este tribunal “há que concluir que o STA terá invertido a sua anterior jurisprudência. Nesta mesma medida, passaremos a acompanhar o entendimento sufragado no Ac. do STA n.º 0113/17.0BCLSB (0296/18), de 04/04/2019, que corresponde à jurisprudência mais recente daquele Tribunal Superior, que também vem subscrita por três dos mesmos juízes que antes adoptaram decisão diferente”. Cfr. o acórdão do TCA Sul de 17 de Dezembro de 2020, processo n.º 115/19.1BCLSB.

[21] V. por exemplo, o acórdão do TCA Sul de 11 de Julho de 2008, processo n.º 11462/14.9BCLSB, admitindo-se que “[n]ão pode assim ter-se como preenchido na situação vertente o requisito legal definido ou exigido como condição da recorribilidade da decisão arbitral pela simples inferência ou juízo implícito decorrente do simples facto de as partes haverem submetido o litígio ao tribunal arbitral funcionando no âmbito do «CAAD» e do respetivo processo ser tramitado e julgado segundo o previsto no regulamento em referência daquela associação e, bem assim, do facto de nos termos do previsto nesse regulamento no silêncio das partes ou de uma ausência de renúncia destas haver lugar sempre a recurso jurisdicional”.