Miguel Nogueira de Brito

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Advogado e professor auxiliar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, por onde é licenciado, mestre e doutor. Exerce a sua actividade predominantemente no direito constitucional. Foi assessor no Tribunal Constitucional. Entre as suas publicações contam-se os livros A Constituição Constituinte (2000), A Justificação da Propriedade Privada numa Democracia Constitucional (2008).


Raramente um governo em funções esteve sujeito à prova em tantas e tão graves situações de emergência como aquelas que o atual Governo tem enfrentado. Basta recordar, para além da atual situação de pandemia, os incêndios de 2017. A conclusão que neste momento se impõe é, porém, simples: o Governo não tem estado à altura dos desafios com os quais tem sido confrontado, com consequências trágicas para a vida de muitos Portugueses.

Para além da incapacidade demonstrada na resolução dos múltiplos problemas suscitados, com alterações sucessivas de critérios nas medidas adotadas, impressiona a falta de consciência quanto à mudança de paradigma subjacente às situações extremas que se têm verificado. O facto de Portugal ter sido, até ao momento, poupado às investidas do primeiro dos novos quatro cavaleiros do Apocalipse, isto é, o terrorismo, tem sido largamente compensado pelos danos profundos já sofridos às mãos dos restantes três: a crise financeira, a pandemia e o colapso ambiental. As situações extremas não vão abrandar, muito menos nos tempos mais próximos, mas antes fazem parte do novo horizonte em que deve situar-se a atuação de qualquer governo responsável[1].

As recentes medidas legislativas adotadas pelo Governo – que, em geral, só pecam por terem sido tardiamente adotadas – revelam, todavia, uma nova faceta, em certa medida inesperada. Trata-se da introdução de uma dimensão ideológica nas medidas de combate à propagação da doença COVID-19, em matéria de liberdade de ensino e igualdade.

Com efeito, o recente Decreto n.º 3-C/2021, de 22 de janeiro, veio aditar um novo artigo 33.º-A ao Decreto n.º 3-A/2021, de 14 de janeiro, cujo n.º 1, alínea a), consigna que «ficam suspensas as atividades educativas e letivas dos estabelecimentos de ensino públicos, particulares e cooperativos e do setor social e solidário, de educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário».

Não está em causa, obviamente, a suspensão das atividades letivas presenciais em todos os estabelecimentos de ensino, sejam públicos, privados ou cooperativos. O que está em causa é a circunstância de se pretender também impor a suspensão de atividades letivas à distância a todos os estabelecimentos de ensino, independentemente da respetiva natureza.

A Prof.ª Maria de Lurdes Rodrigues, ex-ministra da Educação, veio reagir de imediato, com inteira justeza e acerto, nos seguintes termos: «Maioria dos colégios quer continuar com aulas à distância. Governo manda parar. Por que razão se proíbe a diversidade de iniciativas que podem manter as crianças com atividades e que podem ajudar os pais na tarefa difícil de conciliar o trabalho com a vida familiar? As desigualdades existem, mas não é com proibições que os problemas se resolvem»[2].

Para além de politicamente desastrada e reveladora de uma incoerência preocupante em matéria de posicionamento quanto à permanência do ensino, que a opinião pública não deixou de evidenciar, a medida é claramente inconstitucional. Por uma razão simples: porque é excessiva no modo como afeta as liberdades de ensinar e de aprender dos docentes e alunos dos estabelecimentos de ensino privados que tenham condições para desenvolver desde já o ensino à distância e de modo algum justificada pelas razões de saúde pública que são inerentes às medidas adotadas no decreto do Governo.

Este aspeto parece evidente e não carece de grandes desenvolvimentos, sobretudo se tivermos presente que as liberdades de ensino e de aprendizagem previstas no artigo 43.º da Constituição, não foram objeto de suspensão pelo Decreto do Presidente da República n.º 6-B/2021, de 13 de janeiro[3]. Em relação a tais liberdades pode apenas existir uma restrição mediante lei parlamentar. Com efeito, mesmo admitindo que a suspensão das atividades letivas presenciais pode ainda ser abrangida pela suspensão dos «Direitos à liberdade e de deslocação»[4], a que se refere o artigo 4.º do Decreto do Presidente da República n.º 6-B/2021, o mesmo já não acontece, sem qualquer margem para dúvida, com a suspensão das atividades letivas à distância.

Haverá igualmente uma violação do princípio da igualdade? Foi já amplamente notado que a medida do Governo significa um intolerável “nivelamento por baixo” do ensino e dos alunos. Desde logo, é necessário não esquecer que, na origem da medida, está o mesmo Governo que ainda recentemente advogou a diminuição do número de vagas nas universidades dos grandes centros urbanos do litoral, para forçar a afluência de estudantes aos estabelecimentos universitários das zonas interiores do País, assim concebidos como “campos de reeducação” que irão certamente permitir o grande salto em frente das zonas mais despovoadas e carenciadas.

No plano do princípio constitucional da igualdade, é usual fazer-se uma distinção entre a igualdade como critério de controlo judicial da atuação dos poderes públicos e como critério de atuação destes últimos[5]. Basicamente, o que está em causa é o reconhecimento de que o legislador e o executivo estão sujeitos à realização do princípio da igualdade em termos que vão para além do controlo que os tribunais podem exercer sobre essa mesma realização. Isto significa que os tribunais – e, em especial, o Tribunal Constitucional – só podem atacar medidas do poder com fundamento em violação do princípio da igualdade quando essas medidas ultrapassarem um certo limiar. Em regra, e sem prejuízo de desenvolvimentos que agora não vêm ao caso, esse limiar só é ultrapassado quando o Parlamento ou o Governo adotam normas que discriminam as pessoas de forma arbitrária, sem justificação, ou ainda, quando as discriminam excessivamente, para além da medida que a justificação inerente possa tolerar[6].

Os poderes públicos podem, pois, e devem, realizar a igualdade num plano que aos tribunais já não caberá avaliar. Será esse o caso? Será que ao suspender todas as atividades letivas, presenciais ou à distância, de todos os estabelecimentos de ensino, o Governo está a realizar a igualdade num plano que aos tribunais não cabe controlar? Ou deverá entender-se, pelo contrário, que está a tratar do mesmo modo situações que deveria diferenciar, isto é, a situação dos estabelecimentos de ensino públicos e privados?

Não há dúvida que, no que toca à suspensão das atividades letivas presenciais, não cabe diferenciar. A transmissão do vírus da doença COVID-19 ocorre de igual modo em todos os estabelecimentos e, por essa razão, em todos eles se deve suspender o ensino presencial. Pode até questionar-se se afetação da liberdade de aprender e ensinar não será aqui meramente derivada. A questão que se coloca é a de saber se existe uma obrigação de diferenciar juridicamente exigível quanto à suspensão de atividades letivas à distância. Uma vez que os estabelecimentos de ensino público não dispõem aparentemente de meios que permitam o ensino à distância (sem prejuízo de qualquer pessoa com um mínimo de instrução não poder deixar de antecipar a situação atual e compreender que a mesma se vai prolongar por muito mais do que quinze dias), proíbem-se todos os estabelecimentos privados que deles disponham de os utilizarem. Deste modo, prejudica-se por igual todos os alunos com a certeza de todos eles se encontrarão igualmente mal preparados para uma avaliação final que pouco mais será do que uma passagem administrativa.

Parece evidente que este tratamento uniforme dos alunos é inadmissível, mas é-o por estarem em causa as já mencionadas liberdades de ensinar e aprender por parte de docentes e alunos das escolas privadas numa dimensão – o ensino à distância – que não é certamente abrangida pelas preocupações sanitárias que justificam a medida do Governo. É claro que a liberdade de aprender e de ensinar dos docentes e alunos do ensino público também se encontra gravemente afetada, mas o Governo parece não estar em condições de a assegurar.

Independentemente destas considerações, é preocupante a conceção de justiça subjacente à medida em causa. Torna-se necessário, desde logo, efetuar uma outra distinção, entre a igualdade como direito comparativo e como parte de uma conceção de justiça distributiva[7]. A igualdade no primeiro sentido diz-nos apenas que aquilo que é imposto (ou atribuído) a alguns, tem que ser imposto (ou atribuído) a todos os outros, salvo razões atendíveis. Uma dessas razões pode ser a existência de um direito ou liberdade, como sucede no caso que nos ocupa. Neste sentido, a igualdade é um constrangimento na atuação dos poderes públicos[8], não um objetivo. Mas a igualdade pode também constituir um objetivo, se for entendida, no segundo sentido aludido, como parte de uma conceção de justiça, isto é, como parte de uma conceção sobre a relação das pessoas numa comunidade estruturada sobre o tratamento que lhes é devido em virtude de uma dimensão natural, como a necessidade, o bem-estar, o esforço, etc. Neste contexto, a igualdade consiste em assegurar a todos a satisfação das mesmas necessidades, em garantir o mesmo nível de bem-estar, em atribuir a todos os mesmos recursos, ou as mesmas oportunidades, e assim sucessivamente, consoante o critério que se entenda dever presidir à distribuição.

Existe, sem dúvida, uma grande diversidade de entendimentos sobre o significado da igualdade no contexto de uma conceção de justiça. Alguns entendem a igualdade como forma de neutralizar os dois grandes fatores de diferenciação na distribuição de recursos e oportunidades entre os membros de uma sociedade: a sorte, ou acaso, e a natureza. Por outro lado, é possível encarar a justiça e a igualdade numa perspetiva completamente diversa: o que está em causa não é já assegurar que a distribuição dos bens numa sociedade não sofre a influência de fatores que estão para além do controlo de cada um, como a sua origem social, a influência genética ou a simples má sorte, mas, mais limitadamente, excluir que aquela mesma distribuição seja uma fonte de opressão social[9]. A igualdade é, no primeiro caso, um objetivo positivo, um fim que importa realizar, enquanto no segundo caso surge como um objetivo essencialmente negativo, isto é, como o resultado da eliminação de um estado de coisas intolerável. Como facilmente se compreende, a realização da igualdade no âmbito da primeira conceção envolve uma atuação consideravelmente mais interventiva por parte dos poderes públicos.

A visão do Governo que parece estar subjacente à medida em causa é a de que ninguém deve ser colocado numa posição pior do que os outros por razões que escapam ao seu controlo. Isto significa que, para neutralizar o impacto do acaso, a comunidade política, através do seu governo, tem a responsabilidade moral e política de fornecer aos grupos e indivíduos desprovidos os recursos materiais indispensáveis a uma vida decente. Pode discordar-se de uma tal conceção, mas não pode negar-se a sua coerência. O que há muito não se via, no entanto, é a defesa de uma conceção de igualdade visando neutralizar o impacto do acaso e da sorte na vida das pessoas, não através da atribuição de recursos àqueles que os não têm, mas através da proibição de utilização de recursos por parte daqueles que os tenham, isto é, uma conceção de igualdade baseada na generalização de uma situação de carência.

Lisboa, 26 de janeiro de 2021


[1] Uma das principais funções dos governos nos Estados contemporâneos consiste, com efeito, em lidar com os riscos existenciais, isto é, os riscos que ameaçam a destruição do potencial humano a longo prazo: cf. Toby Ord, The Precipice: Existential Risk and the Future of Humanity, New York, Hachette, 2020, pp. 37 ss. Pedir aos poderes públicos em geral, e em especial ao Governo português em funções, um pensamento a longo prazo é, obviamente, uma vã quimera.

[2] Publicação no Facebook de 22 de janeiro de 2021, reproduzida no jornal Observador da mesma data, disponível em https://observador.pt/2021/01/22/ex-ministra-do-ps-critica-proibicao-de-colegios-manterem-ensino-a-distancia-desigualdades-existem-nao-e-com-proibicoes-que-se-resolvem/?utm_source=Newsletters+Observador&utm_campaign=86f3e8ad1d-360_CAMPAIGN_2019_12_11_COPY_01&utm_medium=email&utm_term=0_4e99f7d1e5-86f3e8ad1d-184097401, último acesso em 22 de janeiro de 2021.

[3] Como acentua Catarina Santos Botelho, “Proibir o ensino online é inconstitucional”, jornal Expresso, edição de 23 de janeiro de 2021, disponível em https://expresso.pt/opiniao/2021-01-23-Proibir-o-ensino-online-e-inconstitucional, último acesso em 25 de janeiro de 2021.

[4] Esta fórmula regista uma evolução em relação à que constava da primeira declaração do estado de emergência, constante do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, em que se mencionava apenas o «Direito de deslocação e fixação em qualquer parte do território nacional». A evolução da terminologia usada é merecedora, por si só, de reflexão, a qual se terá, todavia, de guardar para uma outra ocasião.

[5] Cf., por exemplo, Miguel Nogueira de Brito, “Medida e Intensidade do Controlo da Igualdade na Jurisprudência da Crise no Tribunal Constitucional”, in Gonçalo de Almeida Ribeiro e Luís Pereira Coutinho (orgs.), O Tribunal Constitucional e a Crise: Ensaios Críticos, Coimbra, Almedina, 2014, pp. 118-119; Pedro Machete, “O Controlo do Princípio da Igualdade Segundo a Fórmula da «Igualdade Proporcional»”, in AA. VV., Estudos em Homenagem ao Conselheiro Presidente Rui Moura Ramos, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2016, p. 451.

[6] Estão aqui em causa as fórmulas bem conhecidas da nossa jurisprudência constitucional da igualdade como proibição de arbítrio e da igualdade proporcional, sobre as quais se podem consultar os trabalhos citados na nota anterior. Concretizando estas duas fórmulas, cf., respetivamente, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 39/88 e n.º 187/2013.

[7] Cf. Alexander Somek, “Equality and Constitutional Indeterminacy: An Interpretative Perspective on the European Economic Constitution”, European Law Journal, Vol. 7, No. 2, June 2001, pp. 174 ss. Se parece excessiva a posição do autor segundo a qual a igualdade não é uma regra de justiça distributiva, as considerações que desenvolve são úteis se entendidas como advertindo para a necessidade de distinguir a igualdade como grandeza comparativa e como parte de uma conceção de justiça.

[8] Cf. Robert Nozick, Anarchy, State, and Utopia, Oxford, Blackwell, 1991 [1974], pp. 28 ss.

[9] Cf. Elizabeth Anderson, “What Is the Point of Equality?”, Ethics, Vol. 109, No. 2, January 1999, pp. 288-289.