João Leal Amado

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

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A questão da vacinação obrigatória de trabalhadores, em tempo de pandemia, tem vindo a ser suscitada em diversos quadrantes. Só para referir dois exemplos muito recentes, em Itália foram aprovadas medidas legislativas que tornam a vacinação obrigatória para todos os trabalhadores acima do limiar etário dos 50 anos, independentemente das funções que desempenhem. Já antes, nesse país, a vacinação era obrigatória para determinado tipo de trabalhadores (profissionais de saúde, do ensino, de forças de segurança, etc.). A recusa de vacinação, por parte dos trabalhadores em causa, implicará, além de uma sanção pecuniária, de natureza administrativa, a suspensão da respetiva prestação de trabalho (as ausências serão consideradas faltas injustificadas, mas sem consequências disciplinares), com a inerente perda de retribuição. Nos Estados Unidos da América, por outro lado, o Citigroup, uma das maiores instituições bancárias do país, com cerca de 65.000 trabalhadores ao serviço, anunciou que, em breve, irá proceder ao despedimento dos seus funcionários que, injustificadamente, se recusem a tomar a vacina[1].

A matéria é, como se sabe, muito polémica. Prima facie, a vacinação obrigatória atenta contra a liberdade individual, contra a faculdade de cada um de nós decidir e optar, pensando pela sua própria cabeça, se irá ou não ser vacinado. Sabemos, porém, que não há direitos absolutos e que o interesse coletivo pode justificar a restrição de certos direitos e liberdades individuais. Nas certeiras palavras de Vital Moreira, «a liberdade de não se vacinar ou o direito a morrer na pandemia não podem prevalecer sobre o direito à vida e à saúde dos outros. Como ensinaram os clássicos do liberalismo, a liberdade de uns termina onde começa a liberdade alheia»[2].

Não me repugna, por isso, que o governo ou o parlamento aprovem medidas do tipo das adotadas em Itália, tornando a vacina obrigatória para determinadas camadas de trabalhadores, cujas funções pressuponham o contacto frequente com outras pessoas (pessoal de saúde e do ensino, polícias, taxistas, empregados de lojas, cabeleireiros e restaurantes, caixas em supermercados, etc.), ou para todo e qualquer trabalhador, acima de uma determinada idade (visto que, como é sabido, o vírus tende a produzir consequências mais graves à medida que atinge o organismo de pessoas mais velhas), ou, no limite, para todo e qualquer trabalhador, tout court, numa situação de emergência sanitária.

Em qualquer caso, é bom não esquecer que, com este tipo de medidas, se restringe a liberdade individual, se comprime o direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, direito que tutela a liberdade comportamental de cada indivíduo. A liberdade de desenvolvimento da personalidade supõe a tutela da liberdade geral de ação da pessoa humana, a proteção da liberdade comportamental de cada um de nós requer a livre decisão sobre a ação ou omissão própria, incluindo a liberdade de aceitar ou rejeitar ser inoculado.

O direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade impõe, pois, que a intervenção na liberdade geral de ação do indivíduo, mediante imposições ou proibições, seja cuidadosamente ponderada e limitada. Mesmo quando, sobretudo quando, esteja em causa uma decisão que, para muitos ─ entre os quais me incluo ─, é uma decisão estúpida, quando não imbecil: a decisão de, em contexto pandémico, não se vacinar.

A liberdade de cada pessoa, de cada trabalhador, implica, inevitavelmente, isso mesmo: a liberdade de, por vezes, acabar por tomar decisões estúpidas, idiotas ou imbecis. Essa liberdade deve ser ciosamente salvaguardada, tanto mais ciosamente quanto ela se manifeste em ações, omissões e opiniões das quais discordamos, até ao momento em que entre em choque com a liberdade alheia, até ao momento em que essa decisão individual colida com os direitos de outrem ou com o interesse coletivo. Quando isto suceda, os órgãos de soberania constitucionalmente competentes devem fazer uso dos seus poderes, restringindo a liberdade individual, em nome de outros valores fundamentais, como a tutela da saúde e da vida (do próprio e de terceiros), a salvaguarda da operacionalidade e sustentabilidade dos serviços de saúde, etc.

Tal ponderação, contudo, poderá e deverá ser feita pelos órgãos de soberania constitucionalmente competentes, não já por decisão de uma entidade privada, desprovida de poderes públicos, como é a entidade empregadora, no seio de uma qualquer empresa. Se, porventura, os poderes públicos entendem não tornar obrigatória a vacina, em contexto de pandemia, não cabe ao poder privado da entidade empregadora substituir-se aos órgãos de soberania democraticamente legitimados e tomar essa decisão, supostamente arrimado nos seus poderes enquanto entidade empregadora (poder de direção e poder disciplinar) ou até no alegado cumprimento dos seus deveres em matéria de segurança e saúde dos trabalhadores.

A entidade empregadora não poderá, entre nós, tomar uma decisão como aquela que, parece, terá sido tomada, nos EUA, pelo Citigroup: obrigar os trabalhadores a tomar a vacina, apontando-lhes, em alternativa, o caminho da rua. Também não poderá uma empresa, sem arrimo na lei, reservar as vagas de emprego, em processos de recrutamento, a candidatos que demonstrem ter cumprido o processo de vacinação. Se, nos termos da lei, a vacinação for tida como facultativa, aquele seria um despedimento ilícito, esta seria uma prática discriminatória. E também não poderá o empregador fazer o que fez o legislador italiano, considerando que os trabalhadores não vacinados estariam impedidos de comparecer ao serviço e marcando-lhes faltas injustificadas.

Entendamo-nos: que o presidente francês, Emmanuel Macron, tenha dito que pretendia “emmerder les non-vaccinés” não é de estranhar, pense-se o que se pensar sobre a (im)prudência política de tal afirmação (afinal, ele é o Presidente da República, tem, entre outros, o direito de “irritar” os seus concidadãos); mas ninguém mandatou a entidade empregadora para “emmerder” os seus trabalhadores ou candidatos a trabalhadores, exigindo-lhes a vacina. Esse juízo e essa ponderação, que restringe a liberdade individual (y compris a liberdade de manifestar a imbecilidade de cada qual), cabe aos poderes públicos, aos órgãos de soberania, não a uma entidade privada como é, tipicamente, a entidade empregadora. Um qualquer trabalhador francês confrontado com tal exigência patronal exclamará, com razão: Mon patron n’est pas Macron! E isto vale também, mutatis mutandis, em Portugal.

Creio, em suma, que, se e enquanto a vacina for, à luz da nossa lei, facultativa, o empregador não poderá torná-la obrigatória para os “seus” trabalhadores, por mera decisão unilateral. Note-se, aliás, que o problema não se cinge ao plano da liberdade. Tem também muito a ver com a tutela da privacy, com o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada[3]. Com efeito, o trabalhador não tem de ser transparente, de vidro, para o seu empregador (ou para os seus companheiros de trabalho, para os clientes, etc.). O trabalhador tem direito a uma certa dose de opacidade perante o empregador, assim resguardando a sua privacidade em face deste.

A tutela da privacy implica que o empregador não tem o direito de saber tudo sobre o trabalhador, designadamente sobre a sua condição de vacinado ou não. Esse é um dado pessoal do trabalhador, assumindo-se, em princípio, como informação reservada, que não tem de ser prestada à entidade empregadora, a qual, pura e simplesmente, não tem o direito de “meter o nariz” nessa matéria. Isto, claro, a não ser que o legislador determine o contrário. Mas lá está: o legislador, não o empregador.

Importa acrescentar que, a meu ver, a situação não muda de figura na hipótese de a entidade empregadora obter a concordância ou o parecer favorável da comissão de trabalhadores, ou da comissão sindical ou intersindical da empresa, para a exigência de vacinação. Estão em causa, repete-se, direitos fundamentais e de personalidade do cidadão-trabalhador, os quais não podem ser postos em xeque pela eventual vontade convergente do empregador e das estruturas de representação coletiva dos trabalhadores da empresa[4].

A liberdade individual no tocante à vacinação pode, decerto, ser restringida, em nome da tutela de outros valores. A privacidade pode ter de ceder, em nome da salvaguarda desses outros valores. Mas essa operação de balanceamento e de ponderação terá de ser feita pelo legislador, não pelo empregador, por si só ou em articulação com as estruturas de representação coletiva de trabalhadores. Não compete a estes tornar obrigatório aquilo que aquele considera facultativo. Neste quadro, a liberdade de cada qual deve ser preservada – mesmo que alguns, ao dela fazerem exercício, tomem opções reveladoras de inteligência assintomática…


[1] Ver www.dn.pt/internacional/citigroup-vai-despedir-funcionarios-nao-vacinados-nos-eua-14472383.html.

[2] Ver causa-nossa.blogspot.com/2021/12/pandemia-62-irresponsabilidade-moral.html.

[3] Trata-se de dois direitos fundamentais e de personalidade do cidadão-trabalhador, ambos consagrados no art. 26.º da CRP: o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada.

[4] Não se trata de mera hipótese académica. Assim sucedeu, por exemplo, com a tomada de posição da Comissão de Trabalhadores da RTP, em 6 de outubro de 2021, na qual se sustentava que “quem recusou a vacinação não deve ser admitido em espaços fechados de utilização coletiva”. Mas a própria CT recuou, poucos dias após, e moderou a sua posição ─ ver www.dn.pt, de 13 de outubro de 2021.