João Carlos Carvalho Godinho

Investigador no Centro de Estudos Jurídicos, Económicos e Ambientais. Mestre em Direito (Ciências Jurídico-Políticas) pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Licenciado em Direito pela Universidade Lusíada – Norte (Porto).


Para uma visão geral sobre este tema recomendamos: “A (Re)Discussão dos Fundamentos da Vacinação Humana Obrigatória”, Almedina, lançamento a 20 janeiro 2022 (em breve disponível para pré-venda)


1. Considerações introdutórias

As epidemias de doenças infeciosas têm acompanhado a humanidade desde os seus primórdios, provocando crises sanitárias e gerando transformações sociais[i]. Sem surpresa, constata-se que a atual pandemia de covid-19 veio acelerar ainda mais a mudança no volátil mundo contemporâneo, tendo trazido consigo novos desafios para a proteção dos direitos fundamentais. A necessidade de prevenir a disseminação do vírus SARS-CoV-2 levou a que, na maioria dos países do mundo, parlamentos e governos tivessem de tomar medidas restritivas destes direitos, como a obrigação de confinamento, o uso obrigatório de máscara, o teletrabalho obrigatório, os certificados digitais de vacinação e, em alguns pontos do globo, a vacinação obrigatória.

Haveria, evidentemente, muito a dizer sobre a suscetibilidade constitucional de o legislador restringir direitos fundamentais com base na necessidade de defender a saúde pública, designadamente num contexto de pandemia[ii]. No entanto, tendo em conta o seu caráter breve e conciso, o presente artigo focar-se-á na legitimidade constitucional dos certificados digitais de vacinação, cuja apresentação constitui condição para o acesso, em Portugal, a um largo conjunto de atividades e serviços. 

2. O caráter restritivo dos certificados de vacinação

A possibilidade de o legislador estabelecer a vacinação como condição para “o exercício de determinadas atividades, como o acesso das pessoas ao mercado de trabalho, a estabelecimentos comerciais ou à fruição de certos serviços”[iii], tem gerado grande controvérsia. Com efeito, a exigência de certificado de vacinação é suscetível de conflituar com um grande número de direitos fundamentais, que variam consoante as atividades que forem condicionadas. Exemplificativamente, “o direito à segurança no emprego, o direito ao trabalho, o direito ao ensino, a liberdade de iniciativa económica privada e o princípio da igualdade de acesso a bens e serviços”[iv] correspondem apenas a algumas das posições jurídicas jusfundamentais que podem ser afetadas por esta medida. Assim sendo – e tendo em conta os requisitos materiais de restrição de direitos fundamentais, ínsitos nos n.os 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição – a imposição de tal medida só será possível nos casos em que a mesma seja adequada, necessária e proporcional à proteção de outros direitos ou valores constitucionais[v].

Uma vez que os benefícios da vacinação não se esgotam na proteção da saúde individual da pessoa inoculada – protegendo, igualmente, a saúde pública, por via da indução da imunidade de grupo[vi] – parece evidente que a exigência de certificado de vacinação para o acesso a determinadas atividades pode constituir uma medida de proteção da saúde coletiva. Ora, tendo em conta o artigo 64.º da Constituição, que estabelece a proteção da saúde como direito e dever fundamental (numa perspetiva subjetiva)[vii], assim como bem constitucionalmente protegido (numa perspetiva objetiva, na lógica da “dupla dimensão” dos direitos fundamentais)[viii], é seguro afirmar que a saúde pública é um bem constitucional, cuja proteção pode justificar a limitação de direitos fundamentais, desde que verificados os requisitos constitucionais de restrição destes direitos.

3. Os certificados de vacinação e o princípio da proporcionalidade

É, desde logo, de rejeitar a possibilidade de o legislador estabelecer os certificados de vacinação com o objetivo único de promover a adesão das pessoas à vacinação ou de garantir a observância de eventuais normas que venham a tornar a vacinação obrigatória[ix]. É que, mesmo que se verificasse a necessidade de estabelecer a vacinação com caráter obrigatório (medida que, por ser restritiva de direitos fundamentais, está sujeita a apertados requisitos de validade[x]), verifica-se que “a possibilidade de o legislador tipificar a recusa vacinal como contraordenação, sancionável com uma coima e uma [eventual] sanção pecuniária compulsória”[xi], seria “suficiente para realizar funções preventivas e compulsórias, que garantam a observância efetiva das normas que estabeleçam a vacinação obrigatória”[xii]. Assim sendo, e por restringir um largo conjunto de direitos fundamentais, a exigência de certificados de vacinação seria desnecessária e desproporcional, uma vez que o objetivo a atingir poderia ser prosseguido por medidas menos restritivas, designadamente pela aplicação de uma coima (e, eventualmente, uma sanção pecuniária compulsória), que limitaria somente o direito de propriedade privada[xiii].

Existem, contudo, atividades que, por implicarem a partilha de espaços físicos, representam um perigo acrescido de propagação de doenças infeciosas, que é agravado sempre que “sejam exercidas presencialmente por pessoas não vacinadas”[xiv]. Nestes casos, desde que não hajam medidas menos restritivas que permitam, simultaneamente, mitigar os riscos da atividade para a saúde pública e manter o seu funcionamento presencial, a exigência de certificados de vacinação não será desconforme com o princípio da necessidade. No entanto, sempre que possível, deverão aceitar-se alternativas ao certificado de vacinação, como a apresentação de teste negativo à covid-19 ou de certificado de recuperação da doença[xv].

Por seu turno, mesmo nos casos em que se verifique que os certificados de vacinação são necessários para proteger a saúde pública, a sua exigência só será válida se for proporcional aos objetivos a atingir, numa lógica de justa medida ou razoabilidade[xvi]. Ora, considerando a intensidade da restrição, a exigência de certificados de vacinação “só será racional e razoável se a atividade em causa representar um risco elevado de contágio, tendo em conta a sua natureza e as circunstâncias de saúde pública”[xvii]. Assim, fatores como a gravidade da situação de saúde pública, as caraterísticas do espaço em que a atividade ocorre, o número de pessoas que exercem a atividade e a suscetibilidade de manter o distanciamento físico são essenciais para determinar se a exigência de certificado de vacinação é ou não constitucionalmente válida[xviii]. Deste modo, e a título de exemplo, perante a atual situação de pandemia, afigura-se, em regra, proporcional a exigência de certificados de vacinação para o acesso a espaços públicos fechados que sejam partilhados por um elevado número de pessoas (v.g., discotecas, restaurantes, estabelecimentos comerciais, estádios, auditórios, etc.), sobretudo nos casos em que não seja possível manter o arejamento dos espaços, o distanciamento físico e as demais medidas de proteção.

4. Considerações finais

A atual pandemia de covid-19 provocou mudanças profundas no nosso mundo. A necessidade de prevenir contágios e de evitar o colapso dos hospitais levou à adoção de medidas de exceção, que restringem fortemente os direitos fundamentais.

Se é certo que os poderes públicos no Estado constitucional são, precisamente, limitados pelos direitos fundamentais das pessoas[xix], é também verdade que estes direitos não são, em absoluto, insuscetíveis de restrição, visto que a Constituição prevê que, em certos casos, os mesmos possam ser restringidos, devido à necessidade de proteger ou salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionais[xx] que se revelem colidentes ou conflituais[xxi]. A exigência de certificados de vacinação para o exercício de atividades presenciais corresponde a uma medida que visa defender a saúde pública, que é um bem constitucionalmente protegido, cuja salvaguarda pode justificar limitações a direitos fundamentais, desde que verificados os requisitos constitucionais de validade das restrições destes direitos.

No entanto, só é lícito estabelecer a vacinação como condição para o exercício de atividades quando não exista outra medida menos restritiva que permita, igualmente, proteger a saúde pública. Aliás, rejeita-se a possibilidade de o legislador estabelecer os certificados de vacinação com o único fim de promover a adesão à imunização, visto que este objetivo poderá ser prosseguido através de meios menos lesivos dos direitos fundamentais. Por outro lado, sempre que possível, deverá aceitar-se alternativas aos certificados de vacinação, como os testes negativos à covid-19 ou os certificados de recuperação. Por fim, a exigência de certificados de vacinação para o exercício de atividades só será proporcional se em causa estiver a necessidade de afastar um risco grave para a saúde coletiva, tendo em conta as concretas circunstâncias de saúde pública e as caraterísticas da atividade condicionada.


[i] Cf. BARATA, Rita, Epidemias, Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, vol. 3, n.º 1, 1987, p. 9.

[ii] Para uma visão geral sobre este tema, cf. GODINHO, João, A (Re)Discussão dos Fundamentos da Vacinação Humana Obrigatória, Coimbra, Almedina, 2022.

[iii] Cf. ibidem, p. 120.

[iv] Ibidem.

[v] Cf. n.os 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição.

[vi] Sobre a imunidade de grupo, cf. SMITH, Peter, Concepts of herd protection and immunity, Procedia in Vaccinology, Elsevier, vol. 2, n.º 2, 2010, p. 134-139.

[vii] Cf. n.º 1 do artigo 64.º da Constituição.

[viii] Sobre o assunto, cf. ANDRADE, Vieira de, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5.ª edição, Coimbra, Almedina, 2016, p. 107-149; e ESTORNINHO, Maria J.; MACIEIRINHA, Tiago, Direito da Saúde, Universidade Católica Editora, 2014, p. 33-34.

[ix] Cf. GODINHO, João, A (Re)Discussão dos Fundamentos da Vacinação Humana Obrigatória, op. cit., p. 121.

[x] Sobre estes requisitos, cf. ibidem, p. 82-115.

[xi] Ibidem, p. 121.

[xii] Ibidem.

[xiii] Cf. artigo 62.º da Constituição.

[xiv] GODINHO, João, A (Re)Discussão dos Fundamentos da Vacinação Humana Obrigatória, op. cit., p. 122.

[xv] Cf. Gstrein, Oskar J.; Kochenov, Dimitry V.; Zwitter, Andrej, A terrible great idea? Covid-19 ‘Vaccina­tion Passports’ in the spotlight, Working Paper n.º 153, University of Oxford, 2021, p. 21-23.  

[xvi] Cf. CANOTILHO, Gomes; MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª edição revista, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 393.

[xvii] GODINHO, João, A (Re)Discussão dos Fundamentos da Vacinação Humana Obrigatória, op. cit., p. 123.

[xviii] Cf. ibidem, p. 123-124; e HONEIN, Margaret [et al.], Summary of guidance for public health strategies to address high levels of community transmission of SARS-CoV-2 and related deaths, December 2020, MMWR, CDC, vol. 69, n.º 49, 2020, p. 1860-1867.

[xix] Cf. artigo 2.º da Constituição.

[xx] Cf. n.os 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição.

[xxi] Cf. NOVAIS, J. Reis, Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional, Lisboa, AAFDL, 2019, p. 78.