João Leal Amado

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.


Consulte a sua obra neste link.


Teresa Coelho Moreira

Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho.


Consulte a sua obra neste link.


            Continua animada a discussão jurisprudencial em torno da qualificação jurídica do vínculo contratual que une uma plataforma digital aos seus estafetas. Muito recentemente, a Relação de Lisboa proferiu mais um acórdão sobre a questão – Acórdão de 12-02-2025, cujo relator foi o Desembargador Alves Duarte –, no qual acabou por concluir pela inexistência de qualquer contrato de trabalho entre uma determinada plataforma digital e um dos seus estafetas. Lê-se no sumário deste aresto:

 «I. Tendo a relação jurídica havida entre as partes tido início em 11 de Abril de 2022, relevam, para a sua qualificação jurídica, os artigos 11.º e 12.º do Código do Trabalho, e não a presunção ora consagrada no art. 12.º-A do Código do Trabalho, apenas entrada em vigor em 1 de Maio de 2023 por via das alterações ali introduzidas pela Lei n.º 13/2023, de 3 de Abril.

II. Ainda que o autor logre demonstrar, como lhe compete à luz do art. 342.º, n.º 1, do Código Civil, a existência de dois ou mais factos indiciários da presunção de laboralidade na relação controvertida, sempre estes deverão ser sopesados globalmente com os demais provados e relevantes para a caracterização da natureza da relação jurídica estabelecida pelas partes para, desse modo, se concluir se se configura a mesma como de trabalho ou de prestação de serviços.

III. A plataforma tecnológica, sendo essencial na triangulação da prestação de serviços, visto ser através dela que os comerciantes e seus clientes contactam entre si e com o estafeta que encaminha para aqueles os produtos por eles vendidos, sendo também através dela que os comerciantes, a ré e o estafeta comunicam entre si, não é o único instrumento necessário para viabilizar a atividade de entregas, pois que sem os demais a mesma também não poderia ser realizada.

IV. O poder de direção tem por significado a possibilidade de dirigir, comandar e ordenar como e quando o trabalhador executa as suas tarefas, sob pena de, assim não sendo, aquele poder perder o seu sentido mais básico.

V. Estando provado que o estafeta decidia livremente o local onde prestava a sua atividade, podia escolher os serviços que prestava, era livre para escolher os dias e horas em que pretendia ligar-se e o horário em que o fazia, podia escolher o itinerário que ia utilizar para realizar as entregas, podia selecionar e alterar um ‘multiplicador’, uma vez por dia, para valores iguais ou superiores a 1.0, podia subcontratar noutro prestador de serviços de entrega e, por fim, podia, sem qualquer controlo da empregadora, prestar a mesma atividade para plataformas concorrentes e até mesmo prestar outras atividades, a racionalidade impõe concluir que tudo isto colide com o poder de direção referido em IV., a par, também, da colisão com a natureza intuitu personaecaracterística do contrato de trabalho».

*

           Este acórdão mostra-se particularmente interessante porque assenta numa conceção bastante tradicional – e, quiçá, demasiado estreita – daquilo em que consiste a subordinação jurídica, elemento decisivo, como se sabe, para efeitos de se aferir da existência ou não de um contrato de trabalho. O aresto sublinha a centralidade do poder de direção patronal, o qual, como se lê no ponto IV do sumário, «tem por significado a possibilidade de dirigir, comandar e ordenar como e quando o trabalhador executa as suas tarefas, sob pena de, assim não sendo, aquele poder perder o seu sentido mais básico». De resto, o texto do Acórdão é particularmente impressivo a este propósito, nele se lendo, em ordem a afastar a ideia de que poderia existir, no caso, uma relação de dependência entre o estafeta e a plataforma digital, e após se enunciarem os traços apontados no supracitado ponto V do sumário: «Repare-se até no contraponto de tudo isto com os mais significativos deveres laborais instituídos no art.º 128.º do Código do Trabalho: era inexistente o dever de comparecer ao serviço com assiduidade e pontualidade (pelo contrário, desde logo era livre de se ligar ou não à plataforma e, na afirmativa, quando quisesse); de o realizar com zelo e diligência (podia escolher os serviços a realizar e os itinerários a observar); não cumpria ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho (antes podia escolher fazer, quando e como); nem estava adstrito a guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele (pelo contrário, podia livremente prestar o mesmo tipo de serviço a outras plataformas ou até mesmo prestar outras atividades)».

            Estes trechos do aresto são muito sugestivos, porque mostram bem como a divisão, nesta matéria, é profunda entre os autores. É que basta, por exemplo, consultar o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho[1], para vermos como tudo é diferente, neste livro se podendo encontrar a seguinte recomendação, como uma das linhas de reflexão para as políticas públicas em matéria de plataformas digitais: «Criar uma presunção de laboralidade adaptada ao trabalho nas plataformas digitais, para tornar mais clara e efetiva a distinção entre trabalhador por conta de outrem e trabalhador por conta própria, sublinhando que a circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como o facto de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital» (itálico nosso).

            Ou seja, aquilo que, segundo este aresto da relação de Lisboa, seria demonstrativo da inexistência de um contrato de trabalho – a ausência de sujeição do estafeta a deveres de assiduidade e de pontualidade, a um dever de obediência a ordens emanadas da plataforma, a um dever de não concorrência, até a um dever de zelo e diligência[2] – era expressamente considerado, ao menos em larga medida, como compatível com a existência desse contrato, pelos autores do Livro Verde.

*

           Em qualquer caso, cabe perguntar se continua a ser rigoroso, em pleno ano de 2025, na era digital em que vivemos, acentuar a nota do poder de direção patronal e do correlativo dever de obediência às ordens emanadas, como elemento indefetível para existir uma relação de trabalho subordinado. É que, convém frisar, a atual noção de contrato de trabalho, vertida no artigo 11.º do Código do Trabalho, de 2009, veio afastar-se da noção que provinha de meados do século XX, consagrada no artigo 1152.º do Código Civil, de 1966. A lei, hoje, já não alude à direção pelo empregador, tendo essa referência sido substituída pela ideia de inserção do trabalhador no âmbito de organização do empregador. O conceito de subordinação, dir-se-ia, flexibilizou-se, tornou-se mais dúctil e sofisticado, acompanhando o processo de transição para uma sociedade pós-industrial.

           O ponto não escapou, de resto, à nossa melhor doutrina, designadamente a Monteiro Fernandes, o qual, referindo-se ao elemento organizatório da subordinação, observou: «Há, pois, uma progressiva desvalorização dos comportamentos diretivos na caracterização do trabalho subordinado. Se se adotar como critério identificativo a ocorrência de ordens e instruções pelas quais o trabalhador, em regime de obediência, paute o seu comportamento na execução do contrato, deixar-se-á à margem da regulamentação laboral um número crescente de situações de verdadeiro ‘emprego’, em tudo merecedoras do mesmo tratamento. Na verdade, a subordinação consiste, essencialmente, no facto de uma pessoa exercer a sua atividade em proveito de outra, no quadro de uma organização de trabalho concebida, ordenada e gerida por essa outra pessoa. O elemento organizatório implica que o prestador de trabalho está adstrito a observar os parâmetros de organização e funcionamento definidos pelo beneficiário, submetendo-se, nesse sentido, à autoridade que ele exerce no âmbito da organização de trabalho, ainda que execute a sua atividade sem, de facto, receber qualquer indicação conformativa que possa corresponder à ideia de ‘ordens e instruções’»[3].

           Não se pense que isto se traduz numa singularidade nacional. Bem pelo contrário, a discussão vai muito para lá do nosso ordenamento. Veja-se, a título de exemplo recente, a interessante reflexão de Elena Gramano, autora que defende um alargamento do perímetro da subordinação, propondo uma «shift from the notion of directive power to that of organizational power as the legal parameter for ascertaining subordination»[4]. Nos seguintes moldes: «If we were to draw a conceptual distinction between the employer’s directive power and organizational power, such as to identify their content and scope of exercise, we could say that the former affects the content of work performance, while the latter affects the organization within which that performance takes place. (…). In this sense, while the exercise of directive power has regard to the worker as an actor to be directed in production, the exercise of organizational power has regard to the scenic context in which the actor operates, as well as to the construction of the plot that the actor, by playing her part, helps to enact»[5]. E a autora conclui, em termos que cremos corresponderem plenamente aos dados do nosso atual ordenamento jurídico-laboral: «This conceptual shift acknowledges the changes in organizations whereby the manifestation of authority might be less intrusive in the sphere of performance of the employee than in the past. It helps detects authority even when it is not directed at working activities, but at the organizational context in which the activities are supposed to be performed».

           Vale dizer, o elemento nuclear de identificação do trabalho subordinado passou a encontrar-se no facto de o trabalhador se integrar numa organização de trabalho alheia, submetendo-se à autoridade do titular daquela organização. Este ponto é muito importante, desde logo em sede judicial, em ordem a lograr qualificar corretamente as novas formas de prestar trabalho próprias da era digital em que vivemos, máxime o trabalho prestado para plataformas digitais. Como se disse, haverá subordinação jurídica quando à integração do prestador de atividade no quadro de uma organização de trabalho alheia se soma a sujeição à autoridade do titular dessa organização alheia.

*

           Aqui chegados, impõe-se perguntar: não está essa dupla presente, por norma, no contexto do trabalho prestado por um estafeta a uma qualquer plataforma digital? Bem vistas as coisas, são as plataformas que detêm total autoridade para definir o modo como os seus estafetas devem prestar o correspondente serviço. São elas que ditam as regras, são elas que as alteram, são elas que definem se o estafeta é ou não avaliado pelo cliente, se ele tem ou não o dever de respeitar certas regras de conduta e de apresentação quando trabalha, se deve ou não conservar o seu sistema de GPS sempre ativo, se é ou não livre para escolher o percurso que o levará até ao cliente, se pode ou não fazer-se substituir por outrem, se pode ou não trabalhar para empresas concorrentes, se será ou não penalizado pelo algoritmo caso não se disponibilize para trabalhar a dadas horas ou recuse certas viagens, etc.

           Quer dizer, mesmo quando algumas margens de liberdade operacional são concedidas aos estafetas, tal resulta de uma unilateral e revogável decisão/concessão de quem manda, de quem ocupa a posição de domínio naquela relação. É verdade que faltam aqui deveres tradicionais dos trabalhadores, tais como o dever de assiduidade e pontualidade (não havendo aqui espaço para institutos como o horário de trabalho), bem como o dever de não concorrência, pelo que estamos longe, em muitos aspetos, do tradicional trabalho assalariado e industrial que fez nascer o Direito do Trabalho. Mas isso sucede porque a tecnologia permite hoje o que antes era impossível e impensável – o crowdwork, em que uma multidão de trabalhadores dispersos, fazendo login, se disponibiliza para que um algoritmo lhes atribua uma tarefa, várias tarefas, muitas tarefas.

           O estafeta integra-se assim, virtualmente, numa organização alheia e fica sujeito, dir-se-ia, à autoridade do novo chefe, o algoritmo. Não parece, pois, que se trate aqui de genuíno trabalho autónomo. Aliás, convenhamos, o verdadeiro autónomo é aquele trabalhador que define, ele mesmo, o preço que cobra pelos serviços que presta. E nada disso se passa com os estafetas, cuja remuneração é definida, no essencial, pela plataforma digital[6].

*

           Parece, pois, que, em rigor, estamos perante trabalho dependente, ainda que a dependência aqui surja sob novas vestes, em que a plataforma digital pode optar por não exercer alguns dos tradicionais poderes diretivos, conformativos da prestação e de controle da mesma, conservando, todavia, a sua posição de autoridade (dir-se-ia: de autoridade algorítmica) sobre o modo como os estafetas operam. E cremos que tanto a doutrina como os tribunais terão de fazer o respetivo reset, de forma a captar a existência de subordinação jurídica, mesmo quando esta não se manifesta através do efetivo exercício de poder diretivo por banda do empregador. Com efeito, e ao invés do que sugere o presente Acórdão da Relação de Lisboa, há ou pode haver subordinação mesmo para além daqueles casos clássicos, em que o empregador dirige, comanda e ordena como e quando o trabalhador executa as suas tarefas.

           A este propósito e neste sentido, veja-se, de resto, o também muito recente Acórdão da Relação do Porto, de 03-02-2025 (relatado pela Desembargadora Sílvia Saraiva), em cujo sumário se lê[7]:

«I – Considerando a data do início da relação contratual, não é aplicável a presunção de laboralidade prevista no artigo 12.º-A do Código do Trabalho, aditado pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril.

II – Impõe-se o recurso ao tradicional método indiciário para a qualificação jurídica da relação contratual.

III – Os indícios devem ser considerados em conjunto e não isoladamente; o seu peso e valoração variam consoante o contexto específico e a forma como a atividade em causa se organiza, sendo crucial indagar a integração, ou não, do estafeta na estrutura organizativa da Ré.

IV – O estafeta não dispõe de clientes próprios e insere-se numa organização produtiva externa (a da plataforma digital); não assume riscos de ganhos ou perdas; o critério de remuneração é, em última análise, definido pela plataforma; esta controla a prestação do serviço em tempo real, através da gestão algorítmica e de sistemas de geolocalização, detém poderes sancionatórios, podendo, inclusive, desativar a conta do estafeta.

V – A possibilidade de os estafetas se fazerem substituir por outros, desde que registados na plataforma, a ausência de exclusividade e de horário de trabalho predefinido, a liberdade na escolha de rotas e a possibilidade de recusa de entregas, não infirmam os indícios de subordinação.

VI – A subordinação nesta era digital deve ser encarada de forma mais flexível e adaptada a esta nova realidade tecnológica, distanciando-se do modelo fordista tradicional».

*

           Aos tribunais pede-se, sem dúvida, rigor técnico-jurídico, nesta como em todas as matérias. Mas pede-se, outrossim, alguma ousadia, de forma a libertarem-se de amarras que, hoje por hoje, já não se justificam, cumprindo o propósito que, desde o início, anima o Direito do Trabalho. Afinal, como se lê no sumário deste último aresto, «a subordinação nesta era digital deve ser encarada de forma mais flexível e adaptada a esta nova realidade tecnológica, distanciando-se do modelo fordista tradicional». Tal qual!

[1] Livro elaborado por iniciativa do anterior Governo, no âmbito do Ministério do Trabalho e Solidariedade Social, que teve como coordenadores científicos Teresa Coelho Moreira e Guilherme Machado Dray.

[2] Cremos que aqui o presente acórdão vai demasiado longe, porque só com alguma ingenuidade se pode pensar que a falta de zelo e diligência na execução da tarefa pelo estafeta não irá desembocar na mais ou menos inevitável suspensão ou desativação da sua conta por parte da plataforma digital… 

[3] Direito do Trabalho, 22.ª ed., Almedina, Coimbra, 2023, p. 140. Em sentido próximo, ver Liberal Fernandes, para quem o novo segmento “no âmbito de organização”, em lugar da anterior “direção”, consiste numa alteração suscetível de agilizar a qualificação do elemento subordinação, adotando um conceito mais flexível de subordinação laboral, de forma a abranger as novas formas de organização do trabalho – «A noção de contrato de trabalho no Código de 2009: evolução ou continuidade?», Questões Laborais, n.º 51, 2017, pp. 113-122.

[4] «Nothing, Yet Everything New Under the Sun: Subordination, Authority, and Transformations of the Organization Work in a Labor Law Perspective», Comparative Labor Law & Policy Journal, vol. 44, n.º 3, 2024, pp. 305-325 (em especial, pp. 321-322).

[5] Parece-nos uma imagem feliz: ao empregador cabe, não tanto dirigir pari passu a atuação do ator na peça, mas antes montar o palco e criar o contexto cénico em que o ator atua, assim como construir o enredo que o ator, desempenhando o seu papel, ajuda a desenvolver.   

[6] No presente aresto, o tribunal parece atribuir relevo ao facto de o estafeta poder «selecionar e alterar um ‘multiplicador’, uma vez por dia, para valores iguais ou superiores a 1.0, o que permite aumentar o valor total recebido por cada serviço». Mas cremos que essa possibilidade pouco ou nada muda a situação: a faculdade de alterar o multiplicador é muito limitada e, claro, o estafeta que exerça essa faculdade corre o sério risco de o algoritmo não lhe atribuir a tarefa, caso haja concorrência por perto a oferecer o mesmo serviço a preço mais competitivo…  

[7] Especial referência merecem ainda dois outros acórdãos da Relação de Coimbra, ambos datados de 11 de dezembro de 2024 e relatados pela Desembargadora Paula Maria Roberto, em cujo sumário se afirma, no ponto IV: «Tendo em conta que a circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como o facto de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital e que  o estafeta está integrado na organização de trabalho da Ré, sujeito às regras por esta definidas, ao poder de direção e disciplinar da mesma, existe a subordinação jurídica característica essencial de uma relação laboral».