
José Gonçalves Machado
Professor Auxiliar na Faculdade de Direito da Universidade Lusófona.
Advogado.
Investigador Integrado no Centro de Estudos Avançados Francisco Suárez.
Destacamos a obra Reflexões sobre a Conduta Devida dos Gestores na Pré-Insolvência, publicada pelo Grupo Almedina e disponível no mercado desde Novembro de 2024.
A obra Reflexões sobre a ‘Conduta Devida dos Gestores na Pré-insolvência, recentemente publicada, dá voz a algumas das principais problemáticas que o art. 19.º Diretiva 2019/1023/UE suscita. Aqui, o legislador europeu estabelece que os Estados-Membros devem assegurar que, caso haja uma probabilidade de insolvência, os gestores tenham em devida conta, em particular, os seguintes aspetos: a) os interesses dos credores, dos detentores de participações e das outras partes interessadas; b) a necessidade de tomar medidas para evitar a insolvência; c) e a necessidade de evitar uma conduta dolosa ou com negligência grosseira que ameace a viabilidade da empresa.
Em transposição da referida Diretiva, por via da Lei n.º 9/2022, nada se diz sobre a referida necessidade de tomar medidas para evitar a insolvência. Os trabalhos que a antecederam revelam que o tema nem sequer foi objeto de análise ou discussão. Duas leituras são possíveis. Primeira: o legislador considerou que o nosso ordenamento jurídico já acomodava devidamente o art. 19.º, al. b), da Diretiva; segunda: o legislador português não deu a devida atenção à norma em causa. Na primeira hipótese, o legislador deveria, pelo menos, ter explicitado os motivos pelos quais entendeu não ser necessário transpor o referido art. 19.º, em especial a sua al. b). Com efeito, o debate doutrinal em torno do tema havia sido iniciado após a divulgação da proposta da Diretiva em 2016, tendo-se mantido (até aos dias de hoje) com a publicação da Diretiva em 2019. Teria sido útil que os trabalhos preparatórios tivessem tido em consideração tal debate. Pelo menos, ficaríamos seguros de que a matéria tinha sido devidamente ponderada. Não havendo qualquer referência, ficamos convencidos de que o legislador português se manteve à margem deste debate, o que gera alguma perplexidade.
É certo que uma parte da doutrina considera que o ordenamento jurídico português já acomoda devidamente tal norma, não se justificando, segundo esta corrente de pensamento, qualquer alteração legislativa relativamente aos deveres dos gestores na pré-insolvência. Mas não podemos escamotear que outra parte importante da doutrina sustenta que tal norma acarreta algo de novo quando se refere à necessidade de tomar medidas para evitar a insolvência. Antevendo (ou não podendo ignorar) a ocorrência de uma situação de insolvência num futuro relativamente próximo, os gestores ficariam adstritos a um (sub)dever de adotar atempadamente medidas razoáveis e adequadas a evitar a insolvência, na perspetiva de manter a empresa em atividade e de minimizar as perdas para os vários stakeholders. Este (sub)dever – estando intimamente ligado aos (sub)deveres de controlar e vigiar a atividade da empresa (maxime, o seu desempenho económico-financeiro) e de tomar decisões devidamente informadas e substancialmente razoáveis – assumiria uma vocação específica e concretizadora do dever de cuidado no domínio da discricionariedade decisória, fruto do especial contexto que a pré-insolvência proporciona. De tal sorte que há, na doutrina, quem ouse defender um dever de promover a negociação de um acordo (plano) de recuperação.
A pré-insolvência constitui, efetivamente, uma oportunidade séria para se evitar a liquidação e encerramento desnecessários de empresas viáveis, para se evitar a perda considerável de postos de trabalho, para se impedir o não pagamento significativo de créditos, e para se evitar a deterioração da economia e do bem-estar social em geral. Tal oportunidade só pode ser devidamente acautelada se aqueles que gerem as empresas adotarem as medidas necessárias e adequadas a acautelar aqueles interesses, o que, em muitas situações, passará por promover, procedimental e substancialmente, a negociação de um acordo de recuperação. Trata-se de contribuir, ao nível procedimental, para que existam as condições necessárias ao desenvolvimento estável de um processo negocial, por um lado; e de apresentar propostas ou contrapropostas, substancialmente, sérias e razoáveis, ou não se opor às mesmas sem que exista um motivo atendível, por outro lado.
A disponibilização de instrumentos pré-insolvenciais de recuperação de empresas, de que são exemplo o PER e o RERE, a par dos mecanismos de alerta precoce e do recurso a apoio especializado, entre outros, visam auxiliar os gestores na negociação de um acordo de recuperação de uma forma adequada e equilibrada, isto é, agindo prontamente e tendo em devida conta os direitos e interesses de todos os afetados.
Poder-se-á dizer, sem sobressalto de espírito, que os instrumentos pré-insolvenciais de recuperação de empresas prestam um importante contributo no preenchimento e concretização da conduta devida, em particular no que concerne à necessidade de tomar medidas para evitar a insolvência. Com efeito, os gestores sabem de antemão quais são os requisitos substanciais de acesso e quais são as regras procedimentais que devem presidir à negociação, aprovação e homologação (quando aplicável) de um acordo de recuperação pré-insolvencial.
Em concreto, sabem que para aceder a tais instrumentos a empresa deve estar pré-insolvente e deve ser suscetível de recuperação. Sabem que as partes afetadas devem cooperar no sentido de conceder um “período de suspensão” reservado à negociação e que impeça que, cada um, individualmente, leve a cabo condutas que coloquem em causa o processo negocial. Sabem que existem instrumentos mais garantísticos, como é o caso do PER, onde tais efeitos protetores decorrem de uma imposição legal. Sabem em que termos o acordo de recuperação pode e deve ser negociado e quais os requisitos mínimos que devem ser cumpridos para que o acordo se considere adequado, razoável e justo para todos. Por fim, sabem que o respeito pelo cumprimento daqueles pressupostos e regras será, normalmente, avaliado e ponderado pelos intervenientes e, quando aplicável, poderá ser fiscalizado e controlado por um administrador judicial e pelo tribunal.
Sabendo de tudo isso, a discricionariedade dos gestores fica, de certo modo, limitada, uma vez que, em princípio, apenas ficam dispensados de promover a negociação de um acordo de recuperação se poderem concluir que existe uma alternativa mais vantajosa. Para chegarem à conclusão de que existe uma hipótese alternativa que seja mais vantajosa, os gestores devem naturalmente considerar o benefício (ou proveito) que, razoável e previsivelmente, poderia ser obtido por meio dos instrumentos de recuperação pré-insolvencial. Não podem, pura e simplesmente, ignorar ou abandonar a hipótese da recuperação pré-insolvencial, sem antes avaliarem e ponderarem devidamente as suas vantagens e desvantagens.
Para que os gestores não sejam dissuadidos de tomar decisões razoáveis, o sistema de responsabilidade civil não deve ser demasiadamente punitivo e determinista, nem excessivamente benevolente e indeterminado. Deve partir de um conjunto de requisitos ou elementos pré-determinados e relativamente fixos ou estáveis, que digam claramente qual é a conduta devida, mas também deve possuir a flexibilidade necessária para se adaptar, adequadamente, ao caso concreto, sem agredir, excessivamente, a discricionariedade dos gestores.
Nessa conformidade, os gestores devem dispor da discricionariedade suficiente para tomar as medidas recuperatórias e preventivas que considerem mais adequadas, desde que o façam em termos informados, de forma ponderada e racional, e com o objetivo de proteger devidamente o interesse social e os demais interesses, potencialmente conflituantes, dos sócios, credores e trabalhadores. Mas já não lhes é permitido tomar decisões que manifestamente coloquem em causa a sobrevivência da empresa e que prejudiquem injustificadamente tais interesses.