João Leal Amado

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.


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Teresa Coelho Moreira

Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho.


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A saga dos estafetas continua, com os nossos tribunais superiores a produzirem decisões sobre o reconhecimento (ou não) da existência de contratos de trabalho entre tais estafetas e as plataformas digitais para que prestam serviços remunerados. Recentemente, a Relação de Évora voltou ao tema, proferindo dois arestos, ambos datados de 7 de novembro, relatados pela Desembargadora Paula do Paço e ambos tirados por maioria (com voto concordante do Desembargador João Luís Nunes, nos dois acórdãos, e voto vencido do Desembargador Mário Branco Coelho, num deles, e da Desembargadora Emília Ramos Costa, no outro).

Em ambos os casos, a Relação de Évora entendeu que o Ministério Público tinha logrado provar algumas das características enunciadas na base da presunção de laboralidade vertida no artigo 12.º-A do Código do Trabalho, pelo que o tribunal presumiu a existência, nesses casos, de contrato de trabalho; mas, em ambos, o tribunal acabou por entender que a plataforma digital teria logrado ilidir a presunção legal, mediante prova em contrário, nos termos do n.º 4 daquele artigo 12.º-A.

A leitura dos arestos sugere que o tribunal ponderou diversas circunstâncias factuais que, na sua opinião, apontariam para a inexistência de uma relação de trabalho dependente entre o estafeta e a plataforma digital em apreço – assim, o estafeta pode recusar qualquer proposta de entrega apresentada pela plataforma, inclusive depois de ter aceitado e antes da recolha, sem que as recusas, aparentemente, tenham qualquer impacto para si; é o estafeta quem escolhe a sua área de atividade, dentro da cobertura territorial da plataforma; o estafeta teria a faculdade de poder pedir o pagamento antecipado do que lhe é devido; o estafeta decide quando se liga e desliga da plataforma e pode passar dias, semanas ou meses sem se ligar; além disso, pode selecionar ou bloquear clientes e/ou comerciantes; pode, igualmente, escolher a forma como se apresenta, nomeadamente no que respeita à roupa e ao veículo (mota ou bicicleta) que utiliza para efetuar as entregas; não lhe está vedada a prestação de atividades a terceiros, incluindo via outra plataforma; apesar de o GPS da aplicação definir uma rota a percorrer para a entrega da encomenda, mediante a qual é calculado o valor devido ao estafeta, este pode, se bem o entender, seguir por um caminho alternativo; o estafeta encontrava-se inscrito como trabalhador por conta própria nas Finanças e na Segurança Social.

Estas circunstâncias sugeririam ao tribunal que a atividade desenvolvida pelo estafeta seria realizada com efetiva autonomia. Contudo, importa lembrar que, do ponto de vista probatório, a prova por presunção ilidível assume o valor de prova plena, apenas podendo ser afastada mediante a prova do contrário, ou seja, de que o facto presumido não se verificou ou de que se verificou outro com ele incompatível, não bastando a mera contraprova, ou seja, a prova que gere a simples dúvida no espírito do julgador (vide, a este propósito, o disposto nos artigos 346.º e 347.º do Código Civil). Os tribunais deverão, por isso, ser exigentes quanto a esta prova em contrário, não se bastando com a simples presença de elementos factuais que gerem dúvida na mente do julgador. A presunção legal serve, precisamente, para isso, para guiar o tribunal nos casos de dúvida, estabelecendo que quem tem a seu favor a presunção escusa de provar o facto (in casu, o contrato) a que ela conduz.

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Ora, lendo ambos os arestos, afigura-se que o game changer, aquilo que permitiu vencer as dúvidas do tribunal e negar a existência, in casu, de um contrato de trabalho entre a plataforma digital e o estafeta foi a possibilidade de este se fazer substituir por outrem na execução da prestação. Lê-se, com efeito, em ambos os arestos: «Por ser absolutamente incompatível com a existência de um contrato de trabalho, destaca-se que resultou demonstrado que o prestador pode fazer-se substituir, no exercício da atividade, por outro estafeta registado na plataforma. Ora, como é sabido o contrato de trabalho tem um carácter intuitu personae, ou seja, é um contrato em que apenas uma determinada pessoa pode cumprir o acordado, uma vez que foi celebrado em razão das suas características pessoais».        

É justamente aqui que, a nosso ver, bate o ponto. E é justamente aqui que, salvo o devido respeito, a argumentação expendida pelo tribunal soçobra. Trata-se, a nosso ver, de uma argumentação assente num equívoco, que importa esclarecer e corrigir[1]. Sim, uma das características que concorre para que a presunção de laboralidade seja ativada reside na circunstância de a plataforma digital restringir a autonomia do prestador de atividade quando à organização dessa atividade, designadamente no que tange à possibilidade de utilização de subcontratados ou substitutos por banda do prestador (al. d) do n.º 1 do artigo 12.º-A). Vale dizer, se essa possibilidade de se fazer substituir por outrem não existir, ou, existindo, se só for admitida em molde muito restritivos, tal constitui um dos factos-base da presunção legal; se, pelo contrário, o prestador de atividade dispuser de ampla possibilidade de se fazer substituir na execução do serviço, tal não ajudará a presumir a existência, in casu, de um contrato de trabalho.  

Em qualquer caso, o certo é que a nossa lei revela, à evidência, que este elemento, por si só, não é bastante nem decisivo, em ordem a qualificar a relação jurídica sub judice. Isto porque: i) a impossibilidade de o prestador de atividade se fazer substituir não basta para, por si só, fazer presumir a existência de um contrato de trabalho (com efeito, para que tal existência se presuma é ainda necessário que se verifique, pelo menos, uma outra das características enunciadas nas alíneas do n.º 1 do artigo 12.º-A); ii) a possibilidade de o prestador de atividade se fazer substituir também não obsta, por sua vez, a que a lei presuma a existência, naquele caso, de um contrato de trabalho, contanto que se verifiquem as características descritas em duas das alíneas do n.º 1 do artigo 12.º-A; se isso acontecer, a lei presume que estaremos perante um contrato de trabalho, cabendo ao beneficiário da atividade o ónus de ilidir a presunção, mediante prova em contrário; nessa tarefa probatória, o beneficiário da atividade poderá, decerto, invocar a seu favor o facto de o prestador de atividade se poder fazer substituir por outrem, mais ou menos livremente, mas a palavra final caberá, sempre, ao julgador, que apreciará e ponderará, globalmente, se essa e outras eventuais circunstâncias do caso demonstram que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, ao poder de direção e ao poder disciplinar de quem o contrata, como se lê no n.º 4 da norma em apreço.

Este é o ponto que urge sublinhar. Resulta da nossa lei que a possibilidade de o prestador de atividade se fazer substituir não impede que, ainda assim, a lei presuma que existe, in casu, um contrato de trabalho – para tanto bastando que se verifiquem algumas das outras características enunciadas nas alíneas do n.º 1 do artigo 12.º-A. Se assim for, com base nesses outros factos conhecidos, a lei tira a correspondente ilação, firmando a natureza subordinada da relação contratual em causa.

Pelo exposto, não existe, nesta complexa matéria da qualificação contratual, qualquer “bala de prata”. É metodologicamente errado assumir que, perante uma relação contratual em que é dada ao prestador de atividade a possibilidade de se fazer substituir, a solução estaria encontrada, como que num passe de mágica, na medida em que o contrato de trabalho seria totalmente incompatível com essa possibilidade de substituição. Este raciocínio não é correto e pode conduzir o intérprete a conclusões precipitadas e, em última análise, erradas. E o disposto no novo artigo 12.º-A demonstra, justamente, que aquele raciocínio não é rigoroso, vale dizer, que é necessário mais, quiçá bem mais, para chegarmos a uma correta qualificação da relação contratual em causa.

Ao colocar a impossibilidade de o prestador de atividade se fazer substituir por outrem como um ─ apenas um ─ dos vários factos-base da “presunção de laboralidade”, a nossa lei andou bem, visto que a presença desse dado, sendo relevante, não basta para ativar a presunção de existência de contrato de trabalho, assim como a ausência desse dado não constitui óbice a que, ainda assim, a lei possa presumir a existência de contrato de trabalho, naquele caso (se se verificarem outras duas características enunciadas nas alíneas do n.º 1). Tudo depende de uma cuidada análise de todos os elementos relevantes, cuja judiciosa ponderação é necessária para que, no final, o tribunal formule um juízo global, em perspetiva holística, sobre a existência ou não de subordinação jurídica no caso, isto é, se há ou não trabalho dependente, vale dizer, prestação de atividade à plataforma digital, no âmbito de organização e sob a autoridade desta, nos moldes definidos no artigo 11.º do Código do Trabalho.

Em suma, a inserção de uma qualquer “cláusula de substituição” no contrato, atribuindo ao prestador a faculdade de se fazer substituir na realização do serviço, não é, decerto, juridicamente despicienda. Longe disso. Mas também não resolve o problema. Se as plataformas digitais pensarem que, com esta cláusula, encontraram a “bala de prata” que permitirá evitar a qualificação do contrato como sendo um contrato de trabalho, cremos que cometerão um erro. E cremos que o nosso artigo 12.º-A comprova isso mesmo ─ o que, convenhamos, deve ser levado a crédito desta nova, intrincada e polémica norma.

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   Em jeito de conclusão, dir-se-ia que a pessoalidade do contrato de trabalho, isto é, a circunstância de a obrigação do trabalhador ser pessoal, infungível, quiçá intuitu personae, não autoriza que, perante um contrato em que se preveja a faculdade de o prestador de serviços se fazer substituir por outrem no cumprimento desta ou daquela prestação, se conclua, quase que inevitavelmente, pela natureza não laboral e não subordinada de tal relação. Pela nossa parte, afirmamos, sem hesitar, que, num contrato duradouro como é o contrato de trabalho, o facto de o trabalhador se fazer substituir por outrem no cumprimento de certas prestações não descaracteriza o vínculo jurídico-laboral.

Atente-se, a este propósito, nas sábias palavras de Júlio Gomes, o qual observa que mesmo a doutrina dominante não levanta dificuldades à possibilidade de o credor consentir que o devedor se faça substituir por outrem, acrescentando: «Esta circunstância deve alertar-nos para a possibilidade de se atribuir uma importância excessiva, no sentido de “descaracterizar” o contrato de trabalho, à existência num contrato de uma cláusula pela qual o trabalhador se possa fazer substituir excecionalmente por outrem na execução da prestação. Parece, por vezes, considerar-se que tal cláusula seria incompatível com a existência de um contrato de trabalho. No entanto, a conclusão parece-nos exagerada: em primeiro lugar, a referida cláusula pode não passar de uma “cláusula de estilo” que não corresponde à realidade da execução do contrato. Mas, e sobretudo, porque se existir um contrato de trabalho, por exemplo de um professor, contrato cuja qualificação jurídica pode nem sequer ser controvertida, e se o referido professor solicitar e obtiver a autorização do empregador para ser substituído por um colega seu, com idênticas qualificações ─ colega que não mantém qualquer relação contratual com aquele empregador ─ em certas datas em que terá de faltar, a ninguém ocorrerá a ideia de que, só por isso, o contrato de trabalho deixará de o ser»[2].

Vale isto por dizer que não há qualquer incompatibilidade ontológica entre o contrato de trabalho e a possibilidade de o trabalhador se fazer substituir por outrem, quando essa substituição é consentida pela entidade empregadora. Diferentemente, essa incompatibilidade ontológica já existirá se o suposto trabalhador se puder fazer substituir por outrem, sem a vontade da contraparte, pois, isso sim, já não é compatível com o elemento de pessoalidade, característico de um contrato de trabalho. Como um de nós escreveu alhures, «sem o consentimento do empregador, o trabalhador não se pode fazer substituir por outrem na execução do contrato, pelo que a infungibilidade da prestação laboral me parece inegável. Refiro-me, é claro, à infungibilidade em sentido jurídico, não em sentido económico (aliás, a debilidade negocial da maioria dos trabalhadores resulta, em boa medida, da circunstância de, para o empregador, eles serem facilmente substituíveis por outros)»[3].

Com a supramencionada “cláusula de substituição” pode apenas visar-se, a nosso ver, criar mais uma “cortina de fumo” ou uma “barreira de ocultação terminológica” em torno da relação jurídica subjacente. A referida incompatibilidade ontológica traduz-se, pois, numa conceção que, nem por ser partilhada por alguma jurisprudência (como se vê por estes dois arestos da Relação de Évora), merece acolhimento. Urge que seja repensada e revista, sob pena de deixar o tribunal refém de uma cláusula contratual que, num passe de mágica, descaracterizaria qualquer contrato de trabalho. Com efeito, assim sendo bastaria celebrar o contrato, intitulá-lo “contrato de prestação de serviço” (ou atribuir-lhe qualquer outro nomen juris com ressonância não laboral, mas civil ou mercantil) e incluir neste uma “cláusula de substituição” para o imunizar de um eventual escrutínio por banda dos tribunais ― uma espécie de escudo visível contra qualquer operação de requalificação judicial do vínculo…

Não pode ser assim. No máximo, a possibilidade de o trabalhador se fazer substituir será um – apenas um, apenas mais um – indício a levar em conta pelo tribunal no seu juízo qualificativo[4]. Mas sem, por si só, resolver o problema. Longe disso. Ainda mais quando estamos confrontados com uma nova realidade, com novas formas de prestar trabalho típicas da era digital – o chamado crowdwork offline –, em que o estafeta integra uma multidão de prestadores de atividade cuja mão de obra é objeto de gestão algorítmica, com tudo o que isso inevitavelmente implica em matéria de desgaste da tradicional nota pessoal ou intuitu personae do contrato de trabalho. Afinal, se o algoritmo parece ir substituindo o chefe ou o patrão, é natural que o trabalhador também se possa fazer substituir na execução desta ou daquela tarefa (uma substituição, note-se, previamente autorizada pela plataforma, não feita à revelia ou contra a vontade desta), sem que isso, ao invés do que alega a Relação de Évora, deva ser tido como “absolutamente incompatível” com a existência de um contrato de trabalho.


[1] Para desenvolvimentos sobre a questão, seja-nos permitido remeter para o nosso «Plataformas digitais, qualificação do contrato e substituição de estafetas: a “bala de prata”?», Revista Internacional de Direito do Trabalho, n.º 6, 2024, pp. 135 e ss.

[2] Direito do Trabalho, vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 90-91.

[3] João Leal Amado, Contrato de Trabalho – Noções Básicas, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, p. 65.

[4] Ainda que, como bem observa Joaquim Sousa Ribeiro, quanto à possibilidade de substituição enquanto elemento indiciário, se imponha «diferenciar os casos em que o substituto é, também ele, um trabalhador integrado na organização produtiva, escolhido, de igual modo, pela entidade patronal (casos de troca de turno, por exemplo), daqueles outros em que ele é um estranho a essa organização», sendo, «evidentemente, mais forte o valor indiciário desta última situação, no sentido de excluir uma relação de trabalho subordinado» – «As fronteiras juslaborais e a (falsa) presunção de laboralidade do artigo 12.º do Código do Trabalho», Direito dos Contratos – Estudos, Coimbra Editora, 2007, p. 365, n. 45.