João Pires Marujo
Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Mestre em Direito, especialidade de Ciências Jurídico-Forenses, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Encarregado de Proteção de Dados certificado pela Universidade de Maastricht
Jurista na Direção-Geral da Administração da Justiça
Do Agravamento da Responsabilidade do Arguido em Segunda Instância – Uma Perspectiva sobre a Constitucionalidade do Regime do Código de Processo Penal – é a mais recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponível no mercado a partir 21 de Novembro de 2024.
Numa entrevista conduzida por Jon Stewart[1], conhecido representante da comédia política americana, o Senador do Oklahoma, Natham Dahm, defendeu que a Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América, especificamente na componente em que configura o direito[2] de deter armas, não deve estar sujeito a nenhuma limitação, considerando que qualquer intervenção legislativa no espetro da mesma é ilegítima, por consubstanciar uma inconstitucionalidade. No seguimento da entrevista, tornada debate por força do formato, o Senador assume, todavia, que no que respeita ao direito de livre expressão[3], plasmado na Primeira Emenda, deve o Executivo impedir que drag queens possam ler para crianças[4], considerando legítima a supressão de uma componente daquele direito, posição que padece de notória incoerência, se comparada com a anteriormente reportada.
Esta incoerência advém, naturalmente, do facto de se basearem os critérios decisórios quanto a uma potencial maleabilidade de determinadas posições jurídicas (mais a mais, as de caráter reforçado, por conta da fonte de onde brotam, como seja a Constituição de qualquer Estado soberano que adote um documento-quadro dessa natureza) em racionais de cariz exclusivamente político (por isso abstratos) que não respeitam um processo prévio de consideração do caso jurídico-concreto. Temos, portanto, que o direito de deter armas é, para o Senador, absoluto; já o direito de livre expressão é relativo (ainda que, em ambos os casos, a força normativa seja equivalente, dada a coincidência da hierarquia das fontes). Não é difícil imaginar que, para Natham Dahm, o direito de livre expressão seja já impassível de compressão quando esteja em causa uma potencial intervenção legislativa numa fatia daquele que se revele desconforme à prossecução dos objetivos políticos do Partido Republicano.
É precisamente para evitar a contaminação da hermenêutica jurídica pelo discurso ancorado em considerações do foro moral – portanto de natureza exclusivamente íntima (ainda que a mesma possa derivar da inserção do intérprete num determinado grupo ou comunidade) – que se têm desenvolvido mecanismos de ponderação de interesses contrapostos que possam auxiliar os legisladores e os operadores jurídicos na árdua tarefa de trazer luz à solução de conflitos normativos.
Pense-se no direito ao recurso do arguido: plasmado expressamente no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, a sua concreta abrangência depende, designadamente, da solução a encontrar quando conflitue com o direito a um processo equitativo e a uma decisão em prazo razoável, vertido no n.º 4 do artigo 20.º da Lei Fundamental, sempre que do exercício daquele possa surgir uma compressão da garantia corporizada por este, situação potencialmente verificável aquando de uma massificação de recursos que paralise as instâncias superiores, deixando estas, portanto, de manter uma capacidade de resposta compatível com a prolação de decisões (em todos os processos sobre os quais se debruçam) em intervalos de tempo aceitáveis.
A resolução desta tensão tem sido tentada pelo legislador processual penal ao longo das últimas décadas, maioritariamente em desfavor do direito ao recurso do arguido, através da limitação das situações em que uma determinada decisão é recorrível. Interessam-nos, especificamente, as decisões finais das Relações, que, atuando em segunda instância, apliquem a uma pessoa individual uma pena privativa da liberdade não superior a cinco anos, ou uma pena não privativa da liberdade, em ambos os casos constituindo um agravamento face à decisão condenatória da primeira instância.
O Tribunal Constitucional tem sancionado as medidas legislativas, confirmando a compatibilidade das mesmas com a Constituição da República Portuguesa (especificamente, com o direito ao recurso do arguido), recorrendo a três argumentos essenciais[5]: o primeiro, sustentado na ideia de que se verifica um efetivo perigo de paralisação do STJ, que se interpõe àquele direito; o segundo, avançando que os casos cuja irrecorribilidade é questionada, tratam de situações de menor merecimento penal, e que essa asserção justifica, também, a restrição operada (remetendo para o n.º 2 do artigo 2.º do PA n.º 7 à CEDH); e, por fim, o terceiro, enraizado na ideia de que o direito ao recurso do arguido, se perspetivado quanto à função que desempenha na redução do risco de erro judiciário, se encontra salvaguardado por conta da existência de duplo grau de jurisdição (decisão da primeira instância somada ao acórdão da Relação).
Aquela posição sofreu, todavia, uma positiva inversão parcial a partir de 2015: os acórdãos n.º 412/2015, 429/2016 e 595/2018[6] vieram a terreiro pugnar pela inconstitucionalidade da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, quando da mesma se extraísse a irrecorribilidade de primeiras decisões condenatórias exaradas em segunda instância, das quais resultasse a aplicação de pena privativa da liberdade. Posteriormente, verificou-se uma tentativa, por parte de uma corrente do Tribunal Constitucional[7], de alargar esta jurisprudência a todas as situações de primeira condenação em segunda instância, independentemente da pena aplicada, logo afastada[8] em Plenário, por não se fundar no argumento central que presidiu à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral vertida em 2018: a tutela recursória reforçada, devida por conta do maior potencial restritivo dos direitos fundamentais do arguido que resulta da aplicação de uma pena privativa de liberdade. O legislador, no entanto, não se compadeceu com este arrazoado argumentativo, tendo através da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, tornado recorríveis todas as primeiras decisões condenatórias prolatadas pelas Relações.
Continuam, ainda assim, a ser irrecorríveis as decisões condenatórias das Relações que agravem a situação substantiva do arguido, desde que não ultrapassem os 5 anos de prisão. O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta matéria em concreto[9], repetindo os argumentos anteriormente mobilizados para defender a compatibilidade constitucional do regime processual penal vigente[10].
Parece-nos manifesto que a irrecorribilidade resultante de uma situação de agravamento em segunda instância é constritora do direito ao recurso do arguido, desde logo se tivermos em conta que se trata de uma nova decisão condenatória, sendo que não só o conceito de menor merecimento penal (ou de bagatelas penais) é de muito difícil concretização[11], como até é dogmaticamente duvidoso que se possa, em abstrato (i.e., prima facie), conferir menos meios de defesa ao arguido por conta desta qualificação, especialmente se tivermos em linha de conta que qualquer condenação de cariz penal comporta uma função expressiva de comunicação de censura que não pode ser ignorada, no que à interferência com os direitos fundamentais do arguido diz respeito.
É apenas natural, portanto, que a aferição da constitucionalidade da atual redação da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, tenha de ser feita através da intermediação do princípio da proporcionalidade, plasmado no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa. E este princípio deve ser trabalhado, em primeiro lugar, tendo em conta a argumentação expendida pelo Tribunal Constitucional, do ponto de vista da adequação e da necessidade, especificamente no que respeita à existência de alternativas que não passem pela restrição do direito ao recurso do arguido para dar resposta aos desafios impostos pela criminalidade bagatelar; ultrapassados estes testes (e é duvidoso que tal seja possível, dadas as várias e boas alternativas que se colocam, tanto do ponto de vista do direito substantivo, como – e talvez principalmente – do direito adjetivo), será nevrálgico colocar em confronto o direito ao recurso do arguido com o direito a um processo equitativo e a uma decisão em prazo razoável, aferindo, entre outras nuances, da fiabilidade das premissas que fundam a potencial restrição de um dos princípios em confronto (v.g., qual o grau de probabilidade, comprovável por recurso a factos e não a simples temores, de paralisação do STJ, caso a recorribilidade seja estendida aos casos em apreço?).
A apreciação da proporcionalidade em sentido estrito (mais contextualizada nos parece a sua designação como justa medida) deve, em nossa opinião, seguir uma metodologia previamente estruturada, dando a fórmula do peso, proposta por Robert Alexy e apurada por doutrina diversa e alargada, resposta fundada em critérios objetivos de análise do problema da conflitualidade normativa. E assim é porque, ainda que sempre fundamentadas, as decisões do Tribunal Constitucional quanto a esta matéria têm padecido, na nossa perspetiva, de uma posição de princípio pouco compaginável com um aprofundamento das razões de sinal contrário que justificam a compressão do direito ao recurso do arguido. Não basta, por isso, que se assinale o caráter pouco relevante (qualificação que, só por si, é já discutível) da situação em que fica um sujeito processual condenado em pena privativa de liberdade não superior a 5 anos, nem que se demonstre receio quanto à hipotética interferência de uma recorribilidade mais alargada no espetro do funcionamento do Supremo Tribunal de Justiça (ainda mais quando se ligue esta questão ao facto de, eventualmente, o tribunal que se situa no topo da hierarquia não se dever pronunciar sobre bagatelas penais); ou, ainda, que o direito ao recurso do arguido se funda exclusivamente na prossecução do objetivo de reduzir o risco de erro judiciário, que assim se mostraria diminuído para níveis suportáveis sempre que duas instâncias se tivessem pronunciado no processo (veja-se, desde logo, que o objeto das pronúncias não é, nem pode ser, coincidente, dado que uma se debruça sobre a causa, e outra sobre a decisão sobre a causa, pelo que dificilmente se defenderá uma redução suportável do risco de erro judiciário sempre que as prolações não sejam coincidentes).
Parece-nos que, assim sendo, em grande medida poderá
contribuir a metodologia acima referida para o aprofundamento da matéria
concernente à proporcionalidade da restrição do direito ao recurso
operada pela atual letra da lei, sendo que intuímos, baseados em trabalhos
prévios, que a solução mais conforme à Constituição da República Portuguesa é a
de estabelecimento da irrecorribilidade apenas em casos de dupla conforme
(na qual cabem, também, mas já por uma questão de falta de pressupostos
processuais para recorrer, as situações de reformatio in mellius).
[1] The Problem with Jon Stewart. “Interview with Oklahoma State Sen. Nathan Dahm”. YouTube, 3 de março de 2023. Vídeo, 8:38. https://www.youtube.com/watch?v=tCuIxIJBfCY
[2] E assim o denominamos dado que o operador deôntico da norma é uma obrigação, sendo que a posição jurídica que daqui resulta é, assim sendo, um direito. Caso se tratasse de uma permissão, estaríamos perante uma liberdade.
[3] Não teceremos considerações quanto à questão de ser exatamente esta o direito que está em causa neste caso concreto, pressupondo, sem mais, que foi corretamente identificado pelos intervenientes.
[4] Referindo-se, especificamente, à iniciativa Drag Queen Story Hour, criada em São Francisco, em 2015, que rapidamente cresceu pelos Estados Unidos da América, cujo objetivo é a promoção da leitura de livros a crianças, em bibliotecas, escolas e livrarias, através da arte de drag, com o objetivo de lhes demonstrar a possibilidade de cada indivíduo se expressar da forma que entender mais fiel à sua identidade.
[5] A título exemplificativo, o Acórdão n.º 49/2003 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), o n.º 255/2005 (Maria João Antunes) ou o n.º 682/2006 (Benjamim Rodrigues), todos disponíveis, assim como os restantes citados no presente artigo, em https://www.tribunalconstitucional.pt.
[6] Os três relatados pela Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros, tendo este último declarado a inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
[7] Acórdãos n.º 31/2020, n.º 100/2021 e n.º 102/2021, todos relatados pela Conselheira Mariana Canotilho, que se pronunciaram, respetivamente, sobre casos de aplicação de pena de multa, de pena de prisão com suspensão da execução e de pena de prisão com suspensão da execução quanto a crimes em relação aos quais, por se encontrarem em relação de concurso, tinha o arguido sido absolvido.
[8] Respetivamente quanto à nota anterior, pelos Acórdãos n.º 523/2021, n.º 524/2021 e n.º 525/2021, todos relatados pela Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros.
[9] A título exemplicativo, os Acórdãos n.º 64/2006 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), n.º 419/2010 (Catarina Sarmento e Castro), o n.º 357/2017 (Lino Rodrigues Ribeiro), o n.º 101/2018 (José Teles Pereira) ou o n.º 70/2023 (Maria Benedita Urbano).
[10] Aos quais foi aditando a desnecessidade do direito ao recurso do arguido sobre a decisão da Relação, pelo facto de já ser possível àquele exercer o contraditório em relação às alegações de recurso do Ministério Público ou do assistente. Parece-nos, salvo o devido respeito, logicamente impossível dizer-se que o direito ao recurso de uma decisão da segunda instância se esgotou (ou, até, que materialmente apresenta o mesmo efeito) através da resposta à interposição de recurso de uma decisão da primeira instância. Aliás, a possibilidade de contra-alegar na sequência da interposição de um recurso para a Relação configura um corolário das garantias de defesa do arguido, na componente não atinente ao direito ao recurso, que por motivos como este foi (pedagogicamente) individualizado no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, sendo que não realizam, notoriamente, a mesma função, dado que recaem sobre objetos absolutamente distintos.
[11] As diferenças encontradas na doutrina quanto a uma definição são tão vastas e assinaláveis, que se torna impossível estabelecer um critério único, olhando não só ao direito interno, como ao comparado.