A. Leones Dantas

Juiz conselheiro do STJ, jubilado.


Direito Processual das Contraordenações é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponível no mercado desde 12 de Janeiro de 2023.

Consulte a obra neste link.


1 – Referindo-se às diferentes abordagens de que o processo das contraordenações tem sido objeto, um autor afirmou que «nesta matéria de controlo da legalidade processual contra-ordenacional reina, entre nós, a cacofonia, tanto na doutrina, como na Jurisprudência»[1].

As díspares opiniões que se têm formado ao longo dos anos sobre esta parte do Direito das Contraordenações, ocorrem igualmente sobre alguns institutos da sua parte substantiva e têm múltiplas explicações.

É sabido que este ramo do Direito foi introduzido no sistema jurídico sem uma abordagem doutrinária prévia que orientasse os profissionais na sua aplicação, sobretudo, que evidenciasse a autonomia dos institutos que integra face ao Direito Penal, o que se agravou pelo facto de o mesmo surgir para substituir uma parte daquele direito – as transgressões, o que induziu uma aplicação do novo Direito das Contraordenações a partir dos parâmetros penais.

No que se refere ao processo, embora estejamos longe do tempo em que Cavaleiro de Ferreira[2] afirmava que o mesmo era uma forma de processo penal, a verdade é que o longo caminho percorrido justifica uma leitura crítica da forma como este instrumento normativo tem sido aplicado.

2 – Na ausência de um suporte doutrinário que servisse de apoio, sobretudo na individualização dos institutos que integra, generalizou-se a tendência de ler o processo das contraordenações, como se a fase administrativa do mesmo correspondesse às fases preliminares do processo penal, reconduzindo o recurso de impugnação à audiência de julgamento penal.

A verdade é que a cisão entre fases preliminares e fases subsequentes é especifica do processo penal, ali justificada pela necessidade de preservar a imagem do arguido de submissões a julgamento infundadas, preocupação que não existe no processo das contraordenações que só chega ao Tribunal por iniciativa do arguido inconformado com o sentido da decisão administrativa.

A desfocagem da fase administrativa do processo e da sua função no contexto do processo das contraordenações induziu à não compreensão do processo como um todo, em que não há cabimento para as fases preliminares do processo penal e à separação da fase administrativa deste da fase do recurso de impugnação, como se aquela desempenhasse a função das fases preliminares do processo penal.

Por outro lado, mau grado os atos processuais da fase administrativa sejam levados a cabo no âmbito da Administração, por uma autoridade administrativa, nem por isso eles estão submetidos à disciplina do procedimento administrativo, mantendo a plenitude da sua vigência quando o processo transita para a instância judiciária.

O facto de serem enquadrados por uma disciplina que tem como referente e direito subsidiário o processo penal, mas que com o mesmo se não confunde, justifica essa realidade.

3 – Esta focagem no processo penal levou a que institutos estruturais do processo das contraordenações, como o conhecimento por despacho, previsto no artigo 64.º do Regine Geral, o despacho liminar, a que se referem os artigos 63.º e 65.º daquele regime, passassem ao lado.

Mais grave, ainda, o papel do juiz na definição do âmbito da audiência – definição dos factos a discutir e dos meios de prova a produzir, que decorre do n.º 2 do artigo 72.º do Regime Geral, foi ignorado, reproduzindo-se o modelo da audiência penal, esquecendo o relevo da prova recolhida pela autoridade administrativa que o Tribunal tem de valorar como suporte da decisão a proferir.

Esta realidade que é consequência direta da natureza do recurso de impugnação e do papel que o mesmo atribui ao Tribunal, relativamente ao conhecimento dos factos que motivaram a condenação administrativa, tem escapado claramente na prática judiciária.

Com efeito, a intervenção do Tribunal é de jurisdição plena, sem que o mesmo esteja vinculado aos termos em que os factos foram fixados pela autoridade administrativa e independentemente do conteúdo da motivação do recurso. O recurso de impugnação implica a transferência para a esfera judiciária do litígio na sua plenitude.

4 – Mas o mimetismo com o processo penal, veio a projetar-se também no debate sobre o estatuto do Ministério Público.

 Com efeito, assiste-se à transposição para o processo das contraordenações dos poderes de síntese a cargo do Ministério Público no processo penal, esquecendo que esse espaço não existe no processo das contraordenações em vigor, que só chega à instância judiciária quando o arguido assim o entende.

Por outro lado, a decisão impugnada pelo arguido tem a potencialidade para resolver o litígio, assentando num juízo de prova plena dos factos a cargo da autoridade administrativa, o que nada tem a ver com o critério subjacente à decisão do Ministério Público de submeter alguém a julgamento.

A lógica subjacente ao critério de indiciação do artigo 283.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não releva aqui, uma vez que é o arguido que interpõe o recurso de impugnação do qual pode decorrer a realização de uma audiência de julgamento, cuja função tem pouco que ver com a audiência penal

Acresce que o conceito de acusação a cargo do Ministério Público, com o conteúdo e com a função que a mesma tem no processo penal, nada tem a ver com o processo das contraordenações e com a especificidade da sua estrutura.

5 – A não compreensão da autonomia e da especificidade de alguns dos institutos do Direito das Contraordenações esteve presente igualmente na revisão do Regime Geral de 1995, que importou do processo penal para o processo das contraordenações um regime de reformatio in pejus, imposto quer na fase administrativa do processo, quer no recurso de impugnação.

O instituto era alheio ao Regime Geral nas versões iniciais e representa um atropelo relativamente à natureza do recurso de impugnação e aos poderes que o Tribunal tem relativamente ao conhecimento dos factos, para além de ser contrário à justificação desjudicializadora que está subjacente à introdução deste sistema sancionatório.

O debate que hoje atravessa este instituto, motivado no facto de o mesmo ter sido recuperado em alguns regimes especiais, continua a evidenciar uma colagem do processo das contraordenações ao processo penal, esquecendo que o complexo de garantias de defesa que o mesmo consagra é equilibrado, mesmo perante a gravidade das contraordenações existentes em áreas como a da regulação, satisfazendo por inteiro o quadro decorrente do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República.

6 – Há muito que o Regime Geral das Contraordenações consagrado no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, perdeu a sua real natureza de Regime Geral – a disciplina comum da lei contraordenacional, no que se refere aos pressupostos da responsabilização pela prática de uma contraordenação e do regime de processamento, sendo pontualmente substituído por institutos autónomos cuja real justificação está por demonstrar.

A gravidade das contraordenações introduzidas em várias áreas, nomeadamente no domínio da regulação, veio justificar a consagração de institutos minimizadores, quer a nível substantivo quer ao nível processual. Foi por aqui que institutos consagrados no Direito Penal e que eram alheios ao Direito das Contraordenações surgiram neste ramo do Direito.

Por outro lado, os institutos consagrados no Código de Processo Penal de 1988, inspirados nos princípios do consenso, da oportunidade e da diversão foram exportados para o processo das contraordenações para os casos em que a realização das finalidades do processo seja possível fora do processamento e do sancionamento normal.

Sujeitos à criatividade jurídica, sem qualquer filtro, estes institutos vêm sendo modelados sem critério e sem qualquer justificação das diferenças que apresentam relativamente aos sectores em que são aplicados.

Multiplicam-se assim os chamados regimes especiais, evidenciando-se uma quebra da unidade e da sistematicidade que deve estar presente a esta área do sistema jurídico.

7 – Algumas destas temáticas são abordadas no livro «Direito Processual Das Contraordenações» da autoria do signatário que a Almedina publicou recentemente.

Procurando responder à questão de saber o que é o Direito das Contraordenações que temos neste momento, essa obra debruça-se sobre a evolução no tempo deste ramo do Direito, busca encontrar sentido para vários dos institutos que o integram e, numa perspetiva sistemática, procura, de uma forma aberta, colocar o debate sobre o processo das contraordenações num terreno que mostre a coerência das soluções resultantes do Regime Geral, muitas delas esquecidas na prática judiciária.

Evidencia-se, de facto, a necessidade de um regresso às origens, à coerência do sistema tal como o mesmo foi concebido, terreno onde deverão entroncar os ajustamentos que se impõem, ditados pela evolução da sociedade e da economia e pela expansão deste ramo do Direito a novas realidades.


[1] Nuno Brandão, “O controlo judicial da decisão administrativa condenatória manifestamente infundada no processo contra-ordenacional”, in BFD 94/1 (2018) 309-332.

[2] Curso de Processo Penal, Volume 2.º, Editora Danúbio, Ld.ª, 1986, p. 64.