Paulo Ferreira da Cunha
Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.
Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (em licença para exercício da magistratura).
Autor de mais de 130 livros e várias centenas de artigos.
Prémio Jabuti de Direito.
Constitucionalismo Moderno – Origens e Futuro (1820 a 2023) é a mais recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado a 23 de Fevereiro de 2023.
O Constitucionalismo moderno tem duzentos anos no mundo de Língua Portuguesa. Talvez nunca tenha estado tão em risco como agora. O diagnóstico que o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, fez ainda há pouco sobre a situação no mundo poderá bem levar-nos a essa perigosa conclusão[1]. Guerras, pobreza, opressão, recuo nos Direitos Humanos são tudo elementos de profunda crise no complexo jurídico-político do Constitucionalismo moderno.
Duzentos anos é uma tradição razoável em Portugal (o Marquês de Pombal exigia só metade para se considerar haver um costume enraizado) e parece ser uma eternidade no Brasil. Se no ano passado se comemorou o início do Constitucionalismo moderno lusófono com a Constituição de 1822, sente-se agora que estamos numa encruzilhada constitucional. As constituições cidadãs portuguesa e brasileira vigentes indicam o caminho. E não podem ser subvertidas por hermenêuticas distorcidas a favor de gregos ou de troianos. Felizmente há órgãos de soberania encarregados da interpretação da Constituição. São Tribunais, têm de ser somente tribunais. Espera-se que 2023 seja o ano de um retomar tranquilo da linha bicentenária do Constitucionalismo moderno. Nem devem tresler-se as Constituições nem rever in pejus, só in melius. Ou seja, para só para melhorar, nunca para piorar ou para desvirtuar.
Mas o que é esse Constitucionalismo moderno que consideramos ser um essencial adquirido civilizacional? Uma das mais conseguidas sínteses sobre ele é a que Cardoso da Costa, antigo presidente do Tribunal Constitucional, escreveu para o verbete respetivo (“Constitucionalismo”) da Enciclopédia Pólis. Aí se explicita, nomeadamente:
“Fala-se de constitucionalismo ou movimento constitucional para designar o movimento histórico-político que, sob o impacto da Revolução Americana e da Revolução Francesa dos finais do séc. XVIII, mas colhendo a sua primeira inspiração nas revoluções inglesas do século anterior e aí encontrando os seus pródromos (…) se traduziu na progressiva e generalizada substituição do regime de monarquia absoluta até então vigente na Europa Continental, por outro fundado na Constituição escrita e obedecendo ao princípio da separação dos poderes”[2].
Mas nem todo o Constitucionalismo é moderno. Latamente se englobará num outro tipo de Constitucionalismo, o Constitucionalismo tradicional, histórico, consuetudinário, natural, etc. (os nomes podem ser vários) tudo o que precede esta conceção e este movimento.
Uma pergunta se coloca: será que se deveria também considerar um Constitucionalismo “pós-moderno”, porque quer a pura modernidade quer o puro constitucionalismo moderno parece terem já, ao menos em muitos aspetos, deixado de existir em alguns países ou nalguns momentos? Tal poderia animar os espíritos mais dados ao fogo-fátuo das novidades há algumas décadas. Mas não hoje, quando se viu já claramente vista a associação do pós-moderno negador das meta-narrativas a uma afasia demissionária de valores e de programa, objetivamente aliada de uma “mão invisível” desreguladora, que redundou naquilo a que Adriano Moreira chamou “neoliberalismo repressivo”.
O Constitucionalismo ou é tradicional ou moderno. Há unidade e dualidade do Constitucionalismo. Unidade que decorre do conceito histórico-universal de Constituição, cunhado por Ferdinand Lassalle. Dualidade, que resulta de haver um constitucionalismo histórico, natural, tradicional, consuetudinário, pré-moderno, que é, em Portugal, representado por leis fundamentais do Reino, a seu tempo plasmadas sobretudo no Livro II das Ordenações – todas elas: Afonsinas, Manuelinas e Filipinas –, e um constitucionalismo moderno, que se inaugurou, entre nós, com a revolução veteroliberal do Porto de 1820 e a Constituição de 1822.
É verdade que esse Constitucionalismo moderno sofreu recuos, logo com a Carta Constitucional de 1826, outorgada e não fruto do poder constituinte originário do Povo. E a Constituição de 1933, aprovada por um plebiscito por uma votação cujos números ainda hoje não são consensuais nas fontes correntes, se no plano teórico talvez não fira na sua letra em absoluto os preceitos do artigo 16.º da clássica Declaração francesa, obviamente na prática os atropelou quotidianamente. Mas, na marcha geral dos tempos, com alguns recuos, a que se seguiriam avanços, a verdade é que continuamos no mesmo caminho do Constitucionalismo Moderno do Vintismo. Somos ainda Vintistas, com aperfeiçoamentos, com desenvolvimentos. Não houve qualquer mudança de rumo essencial, nem salto qualitativo.
Vivemos, pois, plenamente, com a nossa ordem Constitucional atual, sob o paradigma do Constitucionalismo Moderno, que aos dois elementos explícitos do referido artigo fundador francês acrescentou a sacralidade textual que se analisa na rigidez da Constituição, e que associou a esse bloco constitucional fundador a soberania popular, o sufrágio universal e o controlo da constitucionalidade.
Façamos por momentos um exercício de utopia, ou de imaginação política: e se vivêssemos numa sociedade sem direitos fundamentais, com confusão e concentração dos poderes, com soberania exclusiva de um soberano, coroado ou não, se não houvesse votação para os titulares do poder, e se as normas fossem fruto incontrolado deste, sem controlo da constitucionalidade? Mais ainda, se não obrigassem os seus próprios autores, mas apenas os súbditos ou vassalos? Bastaria este mundo às avessas assim esquiçado para podermos ver quão apegados (pelo menos a imensa maioria dos nossos contemporâneos – os que são “modernos”, para lembrar uma lúcida advertência de Teilhard de Chardin) estamos – e ainda bem – aos fundamentos do Constitucionalismo Moderno, que (inspirado nas ideias de 1789 e na sua tríade sagrada – Liberdade, Igualdade, Fraternidade) em Portugal e no Brasil floresceu há pouco mais de meros 200 anos. Não é muito tempo. Embora já seja bastante para consolidar uma nova tradição, e motivo para recordar e refletir.
Não deixa de ser significativo que, quando começou a ganhar força o projeto (que seria um culminar do Constitucionalismo Moderno) de avançar para a criação, sob a égide da ONU, de um Tribunal Constitucional Internacional, além dos Tunisinos, que foram os autores dessa proposta no séc. XX, e obviamente de alguns outros, de vários países (Canadá, Alemanha, França, por exemplo), foram Portugueses e Brasileiros dos que mais apoiaram a ideia, e se desmultiplicaram em atividades e publicações. Infelizmente, com as presentes condições internacionais, marcadas pelo rescaldo da pandemia e vivendo-se o conflito armado da Ucrânia, é um projeto que não poderá andar ao ritmo desejado. Mas não está esquecido…
Há, entretanto, coincidências perturbadoras. Terminava eu um livro sobre o Constitucionalismo moderno, sobretudo em Portugal e no Brasil[3], quando eclodiu a invasão, ocupação, depredação e pilhagem dos palácios sede dos três poderes em Brasília, claríssima e violenta afronta ao Estado de direito democrático. Tendo a situação sido apelidada já de muitas coisas na análise política e jornalística, competirá, contudo, ao poder judicial vir a qualificar criminalmente, e legalmente apurar responsabilidades. Tais atos foram verberados de imediato pelas mais altas autoridades portuguesas, espanholas, francesas, da União Europeia, de países da América Latina e da CPLP, dos EUA, etc., numa onda de solidariedade com as instituições democráticas brasileiras.
Não nos cabe comentar politicamente esses eventos. Mas o pensamento constitucional (a Constituição é “estatuto jurídico do político”) a eles não pode ficar indiferente. É, porém, patentemente imprescindível que deles se tirem lições, não apenas no Brasil, mas também nos países que se creem com sólidas democracias e que estultamente se julgam, como que por obra e graça de um escudo invisível, imunes a sobressaltos institucionais de monta.
Sendo as nossas Constituições, justamente apelidadas de “cidadãs” (a começar pela brasileira: no Brasil se cunhou a designação), os grandes monumentos que consagram o nosso viver democrático coletivo, os tempos que se vivem aconselham redobradamente a maior prudência em qualquer revisão constitucional.
Nos últimos tempos, tem-se assistido, sobretudo no Brasil, a perigosíssimas e muitíssimo erróneas interpretações da Constituição Federal, dando mostras de uma imaginação – deve reconhecer-se – que antes de mais nos espanta, mas chega a indignar também. A capacidade de manipulação hermenêutica deixou de ser apanágio de alguns juristas menos escrupulosos, para se difundir pela comunicação social formal e informal e atingir o mais iletrado. Pois se se argumenta contra a Ciência que a Terra seria plana, como não distorcer a Constituição, fazendo-a dizer o contrário do que realmente diz? Felizmente que vigora nos nossos países um regime em que há um órgão concentrado de controlo da constitucionalidade.
Talvez até mais perigoso que o desprezo ou o ataque direto à Constituição seja o massacrá-la com interpretações a si contrárias, invocá-la precisamente com intuitos subversivos, antidemocráticos, inconstitucionais.
Numa
revisão formal da Constituição como na sua interpretação, pequenos passos podem
redundar em grandes males. Uma pequena derrapagem aqui, um pequeno descuido
acolá, uma ligeira cedência neste ponto ou naquele, grão a grão podem ir-se
baixando as guardas, como aparentemente estiveram bastante desprotegidos os
símbolos do Poder democrático em Brasília. Importa que, com conta, peso e
medida – muita prudência – se melhore a Constituição, se aperfeiçoe o seu
texto. Jamais que claudique como bastião, que é, do Estado de Direito
democrático.
[1] https://eco.sapo.pt/2023/01/06/guterres-alerta-para-mundo-a-caminhar-para-beco-sem-saida/
[2] J. M. Cardoso da COSTA – Constitucionalismo, in “Polis. Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado“, Lisboa, Verbo, 1983, vol. I , col. 1151.
[3] Constitucionalismo Moderno. Origens e Futuro (1822*2023), Coimbra, Almedina, 2023.