Miguel Duarte Santos

Advogado. Especialista em Direito Bancário e dos Seguros pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Licenciado e Mestrando em Direito Bancário e dos Seguros pela FDUL. Autor de artigos científicos e monografias nas áreas de Direito dos Seguros, Direito Bancário, Direito das Garantias, Direito do Consumo, Fundos de Pensões e da Prevenção do Branqueamento de Capitais e do Financiamento do Terrorismo. Colabora em pós-graduações e formações do Centro de Investigação de Direito Privado (CIDP) e do Instituto de Direito do Consumo (IDC).


Dever de Adequação de Produtos de Seguros ao Cliente é a recente obra de sua autoria. Obra que o Grupo Almedina publica e disponibiliza no mercado desde 3 de Novembro 2022.

Consulte a obra neste link.


O dever de adequação pode ser entendido como o dever de averiguar a adequação de um determinado produto a um cliente, previamente à celebração de um determinado negócio jurídico.

Esta averiguação partirá do conhecimento do produto a oferecer e do perfil típico de clientes que poderão estar interessados no mesmo e envolverá, num primeiro momento, uma avaliação objetiva da integração do potencial cliente no tipo de cliente a quem o produto se destina, e a que daremos o nome de appropriateness test. Num segundo momento, poderá envolver a avaliação subjetiva de adequação do produto ao cliente especificamente considerado, tendo em conta as suas características, necessidades e condições concretas – suitability test.

Os procedimentos e critérios a tomar em conta no âmbito da execução do dever de adequação e as consequências de eventuais juízos de não-adequação variam substancialmente consoante o âmbito de atividade em que estes sejam executados e as normas jurídicas especificamente aplicáveis.

O dever de adequação foi primeiro consagrado e teorizado nos ordenamentos jurídicos anglo-saxónicos, em cujos quadros dogmáticos foram primeiro desenvolvidos, tendo sido subsequentemente previsto no Direito Financeiro europeu e, consequentemente, português, e, finalmente, nas normas de distribuição de seguros. Considerando a relativa novidade da matéria na dogmática do Direito dos Seguros e o seu comparativamente amplo desenvolvimento no dogmática do Direito dos Mercados e Instrumentos Financeiros, afigura-se relevante ter em conta elementos resultantes de tal tratamento dogmático como ponto a considerar em qualquer análise a efetuar a respeito do dever de adequação no Direito dos Seguros.

Apesar da relevância do tratamento dogmático no Direito dos Mercados e Instrumentos Financeiros, a especial complexidade do contrato de seguro, combinada com a assimetria informativa e a relação de confiança normalmente existentes entre produtores e distribuidores de seguros, por um lado, e tomadores do seguro e segurados, por outro, condicionam fortemente o regime de formação de contratos de seguro e determinaram o surgimento de um regime pré-contratual específico, composto por normas decorrentes de múltiplas fontes legais e regulamentares, nacionais e da União Europeia, decorrentes de uma cultura própria, que impuseram soluções diferenciadas.

Conjugando o regime jurídico do contrato de seguro , comummente designado de “lei do contrato de seguro” ou “LCS” , com o regime jurídico de acesso e exercício da atividade seguradora e resseguradora (“RJASR”)  e, ainda, com o mais recente regime jurídico da distribuição de seguros e de resseguros (“RJDSR”) , fica evidenciada a existência de um dever de adequação no Direito dos Seguros, composto por um regime complexo e diferenciado, sempre aplicável perante o tomador do seguro na distribuição de seguros de massa e que ganha contornos especiais quanto a distribuição seja efetuada sob as modalidades de aconselhamento ou aconselhamento baseado em análise imparcial e pessoal.

A interpretação e aplicação das normas introduzidas pelo RJDSR e a sua inserção sistemática no regime pré-contratual do contrato de seguro introduz particulares dificuldades e dúvidas, não tendo a novidade da matéria permitido à doutrina da especialidade analisar detidamente as novas normas e estabilizar entendimentos em diversos pontos, nomeadamente no respeitante ao reflexo sistemático do RJDSR sobre o artigo 22.º da LCS e ao conteúdo do dever geral de adequação, em particular no que respeita à depuração e concretização do dever de conhecimento do produto e aos deveres do distribuidor em caso de venda inadequada – mis-selling.

Numa outra perspetiva, a eventual responsabilidade do segurador em caso de mis-selling na distribuição indireta não tem sido objeto de análise aprofundada por parte da doutrina e da jurisprudência nacionais, não obstante alguns avanços no âmbito dos seguros de grupo.

A interpretação e aplicação das normas em causa deverá ter em conta que a produção e a distribuição de seguros são legalmente sujeitas a requisitos e exigências visando garantir o seu controlo por entidades especialmente competentes para o efeito e potenciar a adequação do produto ao cliente, quer a distribuição seja efetuada diretamente pelo produtor ou com a intervenção de outros distribuidores no ciclo de distribuição. Neste aspeto, cumpre ponderar a especial posição do segurador como gerador do risco de assimetria informativa e responsável pela conceção, aprovação e distribuição dos contratos de seguro.

A ponderação da posição do segurador e dos demais distribuidores na matéria será não apenas relevante à interpretação das normas em matéria de adequação e aconselhamento como à determinação de casos típicos em que se poderá sustentar a responsabilidade do segurador por venda inadequada no âmbito de distribuição indireta de produtos de seguro.

Assume particular relevância na matéria o artigo 22.º, n.º 1 da LCS, que estabelece um dever funcional complexo, a aplicar em fase de formação de contrato de seguro, para cuja interpretação contribuem diversos elementos, como seja a discussão havido em torno do § 6 do VVG alemão, mas também o facto de este traduzir uma primeira receção do dever de adequação já existente à data da preparação da LCS no que respeita à intermediação financeira, para o que muito contribuiu o desenvolvimento da regulação dos ICAE´s em Portugal.

Assume ainda manifesta relevância na estruturação de todo o sistema a política de conceção e aprovação de produto, primeiro prevista no ordenamento jurídico nacional no artigo 153.º do RJASR. Tal política impõe ao segurador o conhecimento de produto – essencial na perspetiva de know your product – e de definição de mercado alvo – essencial na perspetiva de know your client e, em particular, de avaliação de appropriateness – impondo a definição de meios e canais de distribuição, a atinência a tais regras em sede de preparação de documentação, a divulgação da política, formação e monitoração.

O RJDSR veio, contudo, desenvolver e sedimentar as soluções previstas em matéria de dever de adequação de produtos de seguros já resultante do artigo 22.º da LCS e do artigo 153.º do RJDSR, encontrando-se hoje previsto um dever geral de adequação nos artigos 30.º, n.º 1, c) e 31.º, n.º 6 do RJDSR, reconduzível à appropriateness , comportando o artigo 30.º, n.º 1, c) um dever funcional de adequação, analiticamente decomposto em diversos deveres, no qual figuram deveres de conhecimento do produto (sem o qual não é possível efetuar qualquer juízo de conveniência do produto ao cliente), de recolha de informação e de realização de teste de appropriateness (“Respeitando as necessidades e exigências do cliente… de acordo com a complexidade do tipo de produto e com o tipo de cliente…”), culminando num dever de informação ao cliente (o qual deve especificar, no mínimo, as respetivas exigências e as razões que nortearam as informações ou aconselhamento prestado”).

Tal dever distingue-se do dever de aconselhamento por via do tipo de avaliação que o distribuidor terá de fazer – avaliação objetiva, construída a partir do tipo de produto indiciado pelas necessidades e exigências do cliente, e do tipo de cliente, por oposição a uma análise personalizada – e com o conteúdo da informação a prestar – produtos convenientes, por oposição informação quanto ao produto considerado adequado às necessidades do cliente.

Encontram-se ainda previstos deveres de adequação reconduzíveis a suitability, aplicáveis aos seguros de massa, e previstos no artigo 31.º, n.º 4 e 5 , mais marcados na distribuição de PIBS (artigos 40.º a 42.º) , que impõem a especial análise dos distribuidores em causa para efeitos de aplicação, nomeadamente considerando a limitação de objeto a que os seguradores se encontram sujeitos.

Tanto quanto fica referido permite identificar um regime completo, complexo e denso de dever de adequação na distribuição de seguros, em cuja interpretação e dogmatização deverá ser especialmente considerada a história dos preceitos que o compõem e o desenvolvimento legislativo e doutrinal paralelo do dever de adequação na intermediação financeira.