Doutora em Direito – ramo empresarial (Universidade de Santiago de Compostela). Mestre em Direito Tributário e Fiscal (Universidade do Minho). Advogada (sócia) na sociedade Yolanda Busse, Oehen Mendes & Associados, S.P., R.L.. Docente no Instituto Politécnico do Cávado e do Ave e na Universidade Portucalense. Formadora do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados e em diversas formações avançadas, na área do Direito Fiscal, organizadas pela UNIFOJ – Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Participação, como oradora, em diversas conferências/seminários e publicação de vários artigos em revistas e livros nas áreas do Direito Tributário e Direito da Insolvência.


É comum encontrarmos a Autoridade Tributária e a Segurança Social como credoras nos processos de insolvência e nos processos judiciais de recuperação, apresentando estas entidades, muitas vezes, créditos de valor significativo e graduados de forma privilegiada ou garantida.

Da intervenção destes credores públicos nestes processos, muitos são os problemas que surgem com a harmonização das normas e princípios tributários, que ressaltam o caráter indisponível e privilegiado deste crédito público, com as regras e ditames da insolvência, em especial os que versam sobre a recuperação económica do devedor, a aprovação de planos de pagamento e o tratamento igualitário dos credores.

A nível comunitário, o Direito da insolvência tem vindo a sofrer, nos últimos anos, uma metamorfose estrutural, tendo sido envidados esforços no sentido de fomentar as medidas recuperatórias das empresas viáveis e a revitalização dos devedores que se encontrem numa situação económica difícil ou já numa situação de insolvência[1].

Esta orientação comunitária conduziu o legislador português a inverter o arquétipo das normas jurídicas internas respeitantes a esta matéria, no sentido de favorecer a recuperação e a reestruturação das empresas. Aliás, o Estado Português, no seguimento da assistência económica prestada pela União Europeia em 2011, assumiu expressamente o compromisso de adotar medidas que fomentem a recuperação das empresas viáveis[2].

O Código da Insolvência e Recuperação de Empresas[3], apesar da sua designação, sempre se revelou muito débil no que às normas de recuperação diz respeito, prevendo, com muito pouco relevo, a possibilidade de aprovação de um plano de insolvência destinado à revitalização do devedor. Assim, fomos assistindo a uma torrente de alterações legislativas que almejaram a referida mudança de paradigma do processo insolvencial, focando-o na recuperação económica dos devedores.

Esta inversão de paradigma iniciou-se com alterações operadas pela Lei n.º 16/2012, de 20 de abril no CIRE, que passaram a destacar o plano de recuperação das empresas declaradas insolventes, e criaram o PER (processo especial de revitalização) para as empresas que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente. Posteriormente, foi criado o PEAP (processo especial para acordo de pagamento) destinado à recuperação dos devedores não empresas. Com a Lei 8/2018, de 02 de março foi criado o RERE (regime extrajudicial de recuperação de empresas), de natureza extrajudicial, voluntária e sigilosa, destinado igualmente às empresas em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente. Recentemente, em face da situação de pandemia motivada pela doença COVID-19 e da crise económica e social que, em face das medidas comerciais e empresariais restritivas que se têm adotado, se tem vindo a instalar, foi criado, pela Lei n.º 75/2020, de 27 de novembro, o PEVE (processo extraordinário de viabilização de empresas), destinado às empresas afetadas pela crise económica decorrente da pandemia da doença COVID-19. Este diploma aprovou, ainda, outras medidas que visam simplificar o recurso a outros processos de recuperação e promover a revitalização das empresas (regime excecional e temporário de prorrogação do prazo para conclusão das negociações encetadas com vista à aprovação de plano de recuperação ou de acordo de pagamento; aplicação do RERE, a empresas que se encontrem em situação de insolvência atual em virtude da pandemia da doença COVID-19, entre outras).

Outrossim, e como referimos, escassos são os processos de insolvência ou de recuperação em que os devedores não apresentam, também, dívidas tributárias, sendo comum a participação da AT como credora nestes processos. Esta, em defesa dos interesses públicos que lhe compete prosseguir, intervém ativamente nos referidos processos, assumindo uma posição sui generis, que se caracteriza pela titularidade de créditos, que têm natureza pública, indisponível[4] e têm um caráter privilegiado que possibilita a sua execução prévia, a sua autotutela. A posição intransigente e autoritária dos credores fiscais – que é imposta por normas legais de cariz tributário – levanta ainda maiores problemas e objeções nos processos de natureza recuperatória (cada vez mais comuns), em que os credores, de forma igualitária, aceitam reduzir ou perdoar os seus créditos.

De facto, a convivência e a coordenação do Direito da insolvência e do Direito tributário, ramos de Direito com axiologias totalmente díspares, não é fácil nem pacífica, sendo vários os problemas que se levantam na sua interação[5], que vão desde a qualificação dos créditos tributários, à (des)consideração, na graduação, dos seus privilégios e garantias até aos efeitos que a declaração de insolvência ou a abertura de um processo de recuperação provoca nos processos de execução fiscal. Tais problemas adensam-se quando estão em causa processos de recuperação, em que se exige à generalidade dos credores que faça cedências e acorde na concessão de perdões e moratórias. Tais concessões, apesar de necessárias e potenciadoras da efetiva recuperação dos agentes económicos, podem revelar-se totalmente incompatíveis com a natureza indisponível do crédito tributário e colidir com as limitações impostas pelas normas tributárias, constitucional e legalmente consagradas.

Os interesses em jogo no Direito da insolvência e no Direito tributário são, na sua génese, antinómicos e aparentemente inconciliáveis, pois, enquanto no primeiro o objetivo primordial é o ressarcimento proporcional e igualitário de todos os credores do insolvente – princípio par conditio creditorum – conseguido pela liquidação do património e repartição entre eles do produto ou obtido pela manutenção em atividade e recuperação da empresa, através da aprovação de um plano de revitalização; o segundo foca-se no crédito tributário, que tem uma natureza indisponível, irrenunciável e intransmissível, surgindo a AT como titular deste crédito, tendo como funções principais a arrecadação de receitas e o combate contra a evasão e fraude fiscais[6].

Há já alguns anos que nos dedicamos à investigação e análise desta problemática[7], que se mantém pertinente e relevante. Apesar do tempo decorrido, poucos são ainda os estudos que, na doutrina portuguesa, abordam este tema[8], sendo pouco clara e às vezes contraditória a escassa jurisprudência relativa a estas questões. E a Lei pouco ou nada evoluiu ou foi sujeita a alterações no sentido de encontrar uma solução satisfatória para esta temática, suscitando, ainda, como veremos, muitas indagações e críticas.

Como fruto deste nosso estudo, aprofundado durante a realização do doutoramento em Direito, surge a obra «O crédito tributário no processo de insolvência e nos processos judiciais de recuperação», publicada pela Almedina, que analisa várias problemáticas relativas ao tratamento do crédito tributário nestes processos e se foca nos princípios do Direito tributário e do Direito da insolvência que se confrontam quando estas duas áreas jurídicas convergem, averiguando os princípios e valores que se confrontam, analisando, de forma sistemática, algumas questões práticas que nos parecem relevantes, reunindo e referenciando opiniões doutrinais sobre o tema, as posições jurisprudenciais existentes, para daí retirar algumas conclusões e procurar propor soluções. Cremos que os problemas decorrentes da articulação destas áreas distintas do Direito ganharão maior destaque e discussão num futuro próximo em face da crise económica e social provocada com a pandemia do COVID-19, prevendo-se um aumento do número de insolvências e a adoção de novas medidas – além das que, em situação de emergência, tem vindo a ser tomadas[9] – com vista à proteção do tecido empresarial.


[1] Destacamos a Recomendação da Comissão de 12 de março de 2014 sobre uma nova abordagem de falência e de insolvência das empresas, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014H0135&from=EN[13/04/2020] e as alterações operadas no Direito da insolvência a nível europeu, com a entrada em vigor do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, acessível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A32015R0848 [13/04/2020].

[2] Vd. pontos 2.17 e ss do Memorando de Entendimento sobre as condicionalidades de política económica, assinado pelo Governo português, em 17 de maio de 2011, com Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional.

[3] Doravante CIRE.

[4] Vide artigos 30.º, 36.º e 43.º da LGT (Lei Geral Tributária) e artigos 196.º e 199.º do CPPT (Código de Procedimento e Processo Tributário).

[5] Como prenunciava MORAIS, R. D., A Execução Fiscal, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2010, pp. 198 e 199: “São muitas as questões que se suscitam na pendência de um processo de insolvência relativamente aos créditos tributários. A recente entrada em vigor do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) recolocou praticamente no ponto de partida muitas dessas interrogações e, certamente, dará azo, a curto prazo, no futuro, a muitas outras”.

[6] Vide artigo 2.º (“Missão e atribuições”) do Decreto-Lei 118/2011, de 15 de dezembro, que aprovou a orgânica da Autoridade Tributária e Aduaneira.

[7] Na dissertação de mestrado, redigida em 2012, abordámos já algumas questões sobre esta matéria (O crédito tributário e as obrigações fiscais no processo de insolvência, disponível em http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/21395/4/Sara%20Lu% C3%ADs%20da%20Silva%20Veiga%20Dias.pdf). Vd., ainda, entre outros artigos, DIAS, S. L. “O crédito tributário no processo de insolvência – breves considerações”, Revista Fiscal, n.º 3, Maio/Junho de 2013.

[8] Provavelmente porque estão aqui mescladas duas áreas totalmente distintas do Direito, o que, além de implicar o estudo aprofundado de numerosa legislação diferente e o conhecimento de conceitos basilares específicos de Direito público e Direito privado, levanta problemas e grandes dúvidas, por não ser fácil conjugar duas realidades materialmente opostas e deficientemente articuladas.

[9] Destacamos, no que à insolvência diz respeito, destacamos, no Direito português, a Lei n.º 4-A/2020 de 6 de abril e, na legislação espanhola, o Real Decreto-Ley 16/2020, de 28 de abril