Por:

Jorge Morais Carvalho (obras publicadas)

Joana Campos Carvalho (obras publicadas)


Em texto publicado aqui no Observatório Almedina a 9 de fevereiro de 2021[1], Marco Caldeira veio defender – e bem – a publicação integral (garantindo a proteção de dados e outros valores em concreto prevalecentes) de todas as decisões judiciais, incluindo as dos tribunais de primeira instância.

Neste texto, pretendemos demonstrar a necessidade absoluta e urgente de também as decisões dos centros de arbitragem de consumo serem publicadas e, assim, estarem disponíveis a quem as queira ler.

A Portaria n.º 165/2020, de 7 de julho, trata esta matéria, embora noutro domínio (matéria administrativa e tributária). O art. 5.º determina que a publicação de cada decisão arbitral é acompanhada, entre outros elementos, do “texto da decisão, com conteúdo pesquisável, expurgado de todos os elementos suscetíveis de identificar as pessoas a que diz respeito”.

É precisamente esta a regra que defendemos para a arbitragem (institucionalizada) de consumo, seguindo de perto o que já escrevemos sobre o tema[2].

No que diz respeito à publicitação das sentenças arbitrais, o art. 30.º-6 da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV) estabelece que o dever de sigilo previsto no art. 30.º-5 “não impede a publicação de sentenças e outras decisões do tribunal arbitral, expurgadas de elementos de identificação das partes, salvo se qualquer destas a isso se opuser”.

No caso das decisões arbitrais de consumo, a publicação assume uma relevância particular, tendo em conta a necessidade de controlo da aplicação das regras de proteção do consumidor, especialmente imposta pelo art. 14.º-1 da Lei 144/2015, de 8 de setembro[3].

O princípio da publicidade, na vertente da publicação das sentenças, cumpre alguns propósitos adicionais[4].

O direito tem o poder de mudar a sociedade. As normas jurídicas conformam a atuação das pessoas e, quando uma norma jurídica é alterada, o comportamento das pessoas adapta-se a essa alteração. No nosso sistema jurídico, a maior parte das normas jurídicas é criada por via legislativa. Contudo, a interpretação por parte dos tribunais é muitas vezes fundamental para a compreensão cabal de determinada norma jurídica. A publicidade, neste caso das decisões finais dos tribunais, assume, portanto, relevância para o cabal conhecimento do direito pela sociedade.

Associada a esta ideia, o princípio da publicidade contribui, também, para assegurar a certeza jurídica e a uniformidade jurídica.

Por um lado, o princípio da certeza jurídica, isto é “o conhecimento prévio daquilo com que cada um pode contar, para, com base em expectativas firmes governar a sua vida e orientar a sua conduta”[5], apenas pode ser alcançado se o Direito for conhecido por todas as pessoas. Assim, a publicidade e o acesso às decisões judiciais, na medida em que estas são, também, fonte de Direito, é fundamental para garantir que as pessoas conhecem o Direito e sabem, portanto, com o que contar, conformando a sua conduta.

Por outro lado, é fundamental também que os próprios julgadores conheçam e tenham acesso às decisões dos colegas para garantir a uniformidade das decisões. Com isto não se pretende, de forma alguma, afirmar que, em Portugal, os juízes e os árbitros estão vinculados ao que os colegas decidiram em casos anteriores, já que o nosso sistema jurídico não é baseado na regra do precedente. Contudo, é importante que quem julga tenha disponível toda a informação para garantir uma boa decisão, que pode, naturalmente, implicar uma discordância da jurisprudência anterior, mas neste caso esclarecida e ponderada.

Por último, importa ainda referir a importância do princípio da publicidade no avanço da ciência. Para fazer avançar qualquer ciência é habitualmente necessário o conhecimento profundo da matéria em estudo. São necessários dados que permitam ao cientista perceber o objeto da sua análise e, posteriormente, construir raciocínios sobre esse conhecimento. Nessa medida, a publicidade do processo e das decisões judiciais contribui para o avanço da ciência, seja jurídica, sociológica, antropológica, etc., porque permite o acesso a dados de estudo.

No âmbito do direito do consumo, são raros os casos que chegam aos tribunais judiciais, em grande medida tendo em conta o baixo valor da maior parte dos litígios. Nessa medida, os tribunais arbitrais dos centros de arbitragem de consumo são a principal sede de aplicação prática da legislação de consumo. Revela-se, pois, de primordial relevância a publicação das suas decisões.

Assim, se na arbitragem comercial faz todo o sentido que o art. 30.º-5 da LAV seja interpretado no sentido de o tribunal dever solicitar autorização a ambas as partes antes da publicação da decisão[6], na arbitragem de consumo tal interpretação não será a mais adequada. Tendo em conta a importância da publicação das decisões arbitrais acima explicitada, essa publicação deve ser a regra nos centros de arbitragem de consumo.

As partes podem opor-se à publicação, nos termos do art. 30.º-5 da LAV, mas a iniciativa terá de ser sua, e fundamentada, não cabendo ao tribunal pedir-lhes autorização. Se a decisão for expurgada de qualquer elemento de identificação das partes e estas não puderem ser identificadas de outra forma, não há qualquer razão para que a decisão não seja publicada, pelo que as partes não têm o direito de oposição à publicação.

Um argumento adicional que pode ser utilizado no sentido de diferenciar a arbitragem de consumo da arbitragem comercial é o seu financiamento público quase integral. Além do financiamento pelo Estado central e pelo Fundo para a Promoção dos Direitos dos Consumidores, sentiu-se até necessidade nos últimos anos de reforçar o financiamento pelas entidades reguladoras (v. arts. 4.º-A e 4.º-B da Lei n.º 144/2015, aditados pela Lei n.º 14/2019, de 12 de fevereiro) e de esclarecer que os municípios, as associações de municípios e as comunidades intermunicipais podem conceder apoios financeiros aos centros de arbitragem de consumo (v. art. 4.º-C da Lei n.º 144/2015, aditado pela Lei n.º 75B/2020, de 31 de dezembro). Como entender este financiamento quase integralmente público sem estar associado às vantagens que assinalámos relativamente à publicação das sentenças? Se é verdade que os centros são associações de direito privado, trata-se, na verdade, de associações de direito privado muito públicas. Além do financiamento (ou talvez em consequência do financiamento), o controlo da atividade e dos procedimentos por parte do Estado é particularmente apertado.

Além das páginas dos centros de arbitragem de consumo na internet, defendemos que estas decisões deveriam ser publicadas numa base de dados única, que incluísse toda a jurisprudência arbitral de consumo. Tendo em conta que, tal como os tribunais judiciais e os julgados de paz, os tribunais arbitrais têm consagração constitucional (art. 209.º-2 da CRP), sugerimos, mesmo, a sua colocação no site www.dgsi.pt, imediatamente após a Jurisprudência dos Julgados de Paz, no campo relativo à Justiça de Proximidade.


[1] https://observatorio.almedina.net/index.php/2021/02/09/pela-publicidade-das-decisoes-judiciais/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=4360-24022021.

[2] Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, 2017, pp. 138 a 140.

[3] Marte Knigge e Charlotte Pavillon, “The Legality Requirement of the ADR Directive: Just Another Paper Tiger?”, in EuCML, n.º 4, 2016, p. 1631.

[4] Szonja Navratil, “Publicity in the Administration of Justice and the Disclosure of Court Decisions”, 2009, pp. 9 a 11.

[5] João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 2002, pp. 56 e 57.

[6] António Menezes Cordeiro, Tratado da Arbitragem, Almedina, 2015, p. 308.