Paulo Ferreira da Cunha

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Doutor em Direito pelas Universidades de Paris e Coimbra, agregado (Univ. do Minho), Pós-Doutor (Univ. de São Paulo) e Catedrático da Faculdade de Direito da Univ. do Porto, é Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.


A pálida morte bate

com força igual

nas cabanas dos pobres

e nos palácios dos ricos

Horácio, Odes, I, 4.

I.Desafio Ético

Sim, é verdade: crises podem ser oportunidade. Mas não para nos contentarmos com a crise e esperarmos um milagre que realmente abra a tal janela, que nos dizem aberta por cada crise. O Coronavírus e a sua pandemia são mesmo enormes oportunidades de pensar o mundo e a vida, e de mudar a vida e o mundo. Alguns nunca mudarão, a não ser que levados por constrangimentos brutais. E, mesmo assim, a mudança será superficial e por isso durará o que durar a pressão. Mas muitos sabem que só há a ganhar com a renovação. É possível mesmo que, em alguns casos, seja uma questão de sobrevivência do Homem no Planeta.

Já é tempo para verificar (e com orgulho) que, apesar de todos os fracassos, de todas as fake news, de todos os oportunismos, de todas as improvisações, de toda a irresponsabilidade de alguns, apesar do medo e dos números de morte, é inegável que a Humanidade, globalmente falando, se tem mobilizado para sobreviver, e muitos se têm dedicado fervorosamente e com os maiores riscos, à defesa contra a nova peste. Há heróis de hoje, ao nosso lado, há modelos já a admirar e a seguir. E a criatividade e inventiva humanas sempre com a adversidade se viram potenciadas.

Estamos em trincheira da Vida e da Dignidade. Porque a luta não é (e cada vez mais não será) apenas uma questão de limpeza, testes, de camas, ventiladores e vacinas, mas muito um problema se solidariedade e de escolhas éticas. Algumas, certamente, de vida e de morte. Como as de tratar ou não tratar, estes ou aqueles, ceder ou não ceder camas, profissionais de saúde, conhecimentos, testes, medicamentos, vacinas, tratamentos, e outras opções no domínio económico e social, com dilema ético evidente. E essas escolhas serão decisivas para o nosso grande julgamento axiológico como Humanidade.

Não se pode salvar alguma Humanidade apenas. Porque se se salvarem restritamente alguns, pela mesquinhez de certos, não se salvou a Humanidade, mas triunfou apenas a soberba e a avareza, tendo ficado apenas desumanidade.

Não parece ser verdade, como diz Horácio, que a morte trate de igual forma a cabanas dos pobres e os palácios dos reis. Ou os países ricos e os países pobres. Ou será que o poeta latino tem afinal razão, e a desigualdade, mesmo na morte, é coisa nossa (ou seja, humana, social, histórica e criada) e não vem da peste, essa cega como quem não faz aceção de pessoas?

II.Sociedade e Direito: que futuro?

A crise social interna nos diferentes países e a crise mundial que certamente se seguirá às sucessivas vagas da pandemia (o que assim se convencionou chamar) – falemos sem profetismos, mas não nos eximamos à previsão lógica –, serão naturalmente tão agudas, tão devastadoras de certezas e comodidades, que apenas uma mudança de mundividência e de paradigma de vida poderá fazer-lhes frente.

Decerto só conseguiremos não vir a sofrer brutalmente, se mudarmos os nossos padrões de vida, e tivermos objetivos de existência diferentes, tanto individual como coletivamente.

 Da comoção geral, tanto poderá resultar uma economia de guerra e uma sobrevivência de catacumbas, certamente com reforço das hierarquias e das dependências e vigilância com elementos de controle reforçados (sabe-se lá se autoritários ou totalitários), como poderá vir a criar-se uma sociedade diferente. Por exemplo, com uma outra conceção de trabalho, de emprego, de consumo, de lazer, a que presidirá uma outra noção de felicidade. Mantendo quanto possível os altos valores de Liberdade, Igualdade e Justiça (talvez até já a caminho da Fraternidade) do nosso universo constitucional ainda vigente – mas já muito vilipendiado.

Neste novo mundo, que se espera não venha a ser um Brave new world, nem nenhuma das múltiplas distopias (muitas delas pensadas para o day after, pós-catástrofe), haverá ainda Direito, e desejar-se-ia que também Justiça.

 Não será certamente muito diferente o dilema na área jurídica face ao que se passará noutras. Em síntese, a escolha será entre opostos muito diversos entre si:

De um lado, vemos um mundo triste, servil e de sobrevivência, certamente comandado com mão de ferro (é para o que apontam as utopias negativas), servido pela sofisticação das tecnologias da informação e pelas políticas do espírito, agora, além da ideologia, baseadas nas capacidades de controle que o desenvolvimento das neurociências e afins, assim como a engenharia genética, colocam ao serviço de quem as domine.

De outro lado, vemos um mundo não acabrunhado, mas de galharda resistência à adversidade, de algum heroísmo até, com lugar para a individualidade, o rasgo e a aventura, e em que as sociedades poderão escrever a sua própria História, controlando democraticamente e com sabedoria os instrumentos da ciência. Mas fiéis ao aprofundamento dos grandes valores republicanos, democráticos, sociais, que foram sendo desenvolvidos desde o Iluminismo e culminaram nos Estados de direito, democráticos, sociais, ecológicos e pluralistas.

Num caso, vemos formiguinhas submissas, vergadas ao controlo de um Big Brother (numa variante, seres narcotizados e substituídos por robots no emprego); no outro, cidadãos responsáveis, certamente durante algum tempo ainda lavando muitas vezes as mãos, não socializando certamente ainda muito, não se abraçando e beijando ad libitum, e mesmo usando socialmente máscara, mas com o coração e a cabeça livres, com instituições democráticas, e protegidos socialmente. Será, pois, o tempo de dar mais espaço, mais concretização, ao Direito Fraterno Humanista, que já desde antes da pandemia vinha fazendo o seu caminho… A cooperação e não a rivalidade internacional terá que estar na ordem do dia. Não num Estado mundial sufocante de onde não se poderia jamais fugir, mas com soluções federativas ou afins, em que, na pluralidade e na independência, os Estados dialogarão. Não deverá ser possível (desde logo porque ilógico – mas quando o mundo foi lógico?), num globo em grande medida devastado, insistir em guerras e em egoísmos. Donde a cooperação, e desde logo a coordenação económica e jurídica, terão de aprofundar-se. Por exemplo, com formas de regulação dos mercados, de cooperação e mesmo apoio sincero e desinteressado ao desenvolvimento dos estados mais carenciados, e com instituições universais de regulação de conflitos, como o sonhado Tribunal Constitucional Internacional.

A História não está definitivamente escrita. E realmente tudo depende nós. Não de uma entidade anónima, sem rosto, para que remetemos as culpas e à sombra da qual saboreamos o nosso álibi de nada fazer, ou muito pouco agir. Mas essa entidade, a que chamamos Sociedade, Comunidade, Povo, Estado e outros coletivos que nos discursos soam a platónico, ou até, não raro, retinem a falso, não é muito mais, no fundo das coisas, que supremo e complexo agregado de ti e de mim e do outro/a e de mais outra/o.

 Será banal, mas tem de sempre repetir-se que, para lá de grandes momentos e golpes de teatro, que raramente existem sozinhos (se é que alguma vez ocorrem mesmo com o protagonismo que já se lhes atribuiu), a História é obra da agregação dos vetores de forças que são as ações individuais de milhões de pessoas, que cuidam que o seu usar ou não usar máscara, confinar ou desconfinar, ser honesto ou desonesto, votar ou não votar, não tem qualquer interesse para o futuro. Mas a verdade é que o tem. Ele está realmente nas mãos de cada um, embora não seja dado a ninguém ver o resultado final das suas ações, na cadeia causal dos tempos.

E hoje em dia são gestos simples, e até num certo sentido pueris, aqueles de que pode tudo depender: sair ou não sair de casa, colocar ou não colocar máscara, reunir ou não reunir com a família, os amigos, os colegas, lavar ou não lavar as mãos. Raramente como hoje se pode ver a imensa importância das pequenas coisas.

Há, portanto, uma enorme responsabilidade de cada um de nós, porque realmente o futuro depende de cada um/a. E começou já no passado; não é sequer agora, nem ontem ou anteontem. O nosso tempo já é passado. Há que cuidar do futuro, desde logo, até, para que possa haver Futuro.