Catarina Santos Botelho

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Professora Auxiliar na Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, onde coordena a disciplina de Direito Constitucional e a Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos. Membro do Conselho de Coordenação da Academic Network on the European Social Charter and Social Rights. Coeditora da série Constitutionalism in Latin America and the Caribbean (Hart Publishing). Correspondente nacional do European Law Institute Project on Common Constitutional Traditions in Europe.


A declaração do estado de exceção, seja de estado de sítio ou de emergência, visa defender (e, nalguns casos, salvar!) a ordem constitucional. Em reforço desta ideia, decretar a emergência pode configurar-se como uma genuína obrigação constitucional. Citando o caso Kennedy versus Mendonza Martinez, do Tribunal Supremo norte-americano, de 1963, a ortodoxia jurídica não pode transformar a constituição “num pacto suicida”. Ou seja, o direito não pode tornar-se um instrumento contra si próprio. Numa emergência ou calamidade, não podemos advogar a aplicação taxativa de todas as normas constitucionais, tornando impossível a salvação da sociedade ou, no limite, do Estado. Por esta razão, 90% das constituições hodiernas possuem disposições relativas ao estado de exceção, possibilitando algum nível de afetação de direitos e liberdades fundamentais,

No dia 18 de março de 2020, pela primeira vez em quase cinquenta anos de democracia, o Presidente da República decretou o estado de emergência. Este foi, a meu ver, o único decretamento do estado de emergência que se não configurava como uma obrigação constitucional. Em termos políticos, porém, tratou-se de uma declaração preventiva e, na minha opinião, politicamente adequada ao momento disruptivo de enorme incerteza e de pânico generalizado que se vivia.

As duas renovações da emergência constitucional, de 2 e de 17 de abril, respetivamente, ocorreram num contexto pandémico e sanitário mais agravado. Estas renovações assentaram numa lógica reativa e implicaram novas restrições às liberdades fundamentais. A 3 de abril, terminada a emergência constitucional, transitou-se para a normalidade constitucional, permitindo-se um certo relaxamento das restrições e uma reabertura da economia. Não obstante, o Conselho de Ministros implementou, ao longo de vários meses, diferentes estados gradativos de exceção administrativa: o estado de alerta, o estado de contingência e o estado de calamidade, tendo em conta diferentes patamares de infeção no território nacional.

A 6 de novembro, com o agudizar da situação pandémica, o Presidente da República, decretou o estado de emergência constitucional, numa configuração cirúrgica, em que a gravidade das medidas a adotar estava dependente do número de infetados por concelho. Desde então, Portugal permanece em estado de emergência constitucional e entrou, a 15 de janeiro de 2021, num novo confinamento geral. A renovação da emergência alicerçou-se na necessidade iminente de criar, nas palavras do Presidente, “um travão de reforçada emergência”. Em suma, uma emergência reforçada. Com efeito, este será porventura o mais gravoso período de emergência até então experienciado. 

O que dizer deste estado de coisas? Em primeiro lugar, assistimos, em particular entre abril e novembro, a uma fuga governamental ao crivo presidencial e parlamentar, através de resoluções do Conselho de Ministros. Os riscos que daqui advieram são evidentes: esses atos normativos não foram sujeitos à apreciação parlamentar (artigo 169.º da Constituição), nem à promulgação, veto político ou veto jurídico (na sequência de um pedido de fiscalização preventiva) do Presidente da República, nos termos do artigo 136.º da Constituição. Ora, estudos empíricos demonstram que, em estados de emergência que se prolongam no tempo, há um risco acrescido de erosão democrática e de autocratização por decreto.  

Em segundo lugar e consequentemente, não podemos deixar de salientar a total desadequação da nossa legislação ordinária para lidar com a pandemia. A Lei de Bases da Proteção da Saúde e a demais legislação de emergência não foram pensadas para situações deste tipo, nem lhe conseguem dar resposta. Assim, e na esteira do que tem sido defendido por vários constitucionalistas, também advogo a aprovação de uma lei de emergência sanitária. Esta lei já deveria estar em vigor há muito tempo, quer através de proposta de lei do Governo, quer mediante projeto lei da Assembleia da República.

A terminar, importa deixar claro que, aprovar a legislação sanitária não significa a desnecessidade de, no futuro, o Presidente da República declarar a emergência constitucional. Como bem se aceitará, há determinadas afetações dos direitos fundamentais que, por serem tão gravosas, se configuram como verdadeiras suspensões de direitos e não como meras restrições. Quanto a mim, a vantagem da adoção da legislação sanitária seria a de evitar a fuga para a legislação por resolução do Conselho de Ministros, mitigando o confuso saltitar entre estado de emergência constitucional e o estado de emergência administrativa.

Como pudemos observar em tantas situações (tais como os confinamentos inconstitucionais impostos nos Açores), o estado de emergência administrativa mascarou, até um certo ponto, um estado de emergência constitucional de facto. Clarificando as coisas, sofremos as desvantagens de uma quasi-emergência (as afetações gravosas dos direitos fundamentais), sem termos obtido os benefícios da mesma (todas as garantias de controlos mútuos de poder que a Constituição oferece). Chegados aqui, a pergunta naturalmente será esta: é este cenário político-legislativo que queremos para o nosso futuro?

Artigo publicado no Público:https://www.publico.pt/2021/01/19/politica/opiniao/emergencia-preventiva-reativa-cirurgica-reforcada-1946968