Artur Flamínio da Silva

Doutor e Mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Licenciado em Direito, na menção de Jurídico-Políticas, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Investigador do CEDIS-FDUNL. Árbitro.

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1. O mundo mudou em 2020. Já ninguém duvida. A pandemia conhecida comummente como COVID-19 já influenciou, de forma negativa, todos os sectores sociais, sendo que se desconhece, ainda, a magnitude dos efeitos que venha a produzir.

A recente declaração de estado de emergência operada pelo Decreto n.º 14-A/2020 do Presidente da República, de 18 de Março[1], bem como a autorização concedida pela Assembleia da República pela Resolução n.º 15-A/2020, de 18 de Março, permitiu que se tivesse procedido à regulamentação do estado de emergência pelo Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março, estabelecendo um dever geral de recolhimento domiciliário[2].

Sendo certo que o estado de emergência poderá ser prolongado, muitas incertezas existem sobre a duração das medidas que visam prevenir o contágio da COVID-19.

No domínio do desporto, o que, mais recentemente, se tem discutido é precisamente qual o ponto de equilíbrio que possibilite, neste contexto, evitar de modo inequívoco, colocar em causa a saúde de todos os intervenientes na competição desportiva, por um lado, sem, por outro lado, esquecer a sustentabilidade económica da mesma, a qual afecta milhares de sujeitos.

2. O movimento desportivo teve a sua génese num contexto de forte autonomia associativa, num registo de por vezes quase independência, em relação ao Estado, desde logo, quando durante o Séc. XIX e o início do Séc. XX as primeiras federações internacionais foram criadas. A relação entre o Estado e o associativismo desportivo fica, desde a sua origem, marcada por uma constante tensão entre uma ciosa autonomia normativa do segundo e a necessidade de regulação do Estado, especialmente, quando estão em causa direitos fundamentais dos atletas[3].

Criou-se, durante muito tempo, a ideia de que o Desporto era “especial”, diferente de qualquer outro sector social, muitas vezes com um poderio até para enfrentar, com total desrespeito, as normas estaduais. A profissionalização do Desporto veio complexificar esta compreensão da normatividade desportiva.

Na verdade, a partir do momento em que passamos a ter competições desportivas organizadas e em que a actividade desportiva passa a ser uma profissão, alguns ordenamentos jurídicos, entre os quais se encontra Portugal, por razões históricas ou por perceberem a proximidade substancial do “poder desportivo privado” com a actuação dos poderes públicos, publicizaram, através de instrumentos jurídicos, a actividade das federações desportivas nacionais com vista a proteger a esfera jurídica dos agentes desportivos[4].

É, portanto, o Direito Administrativo que se aplica, em Portugal, na relação que se estabelece entre a federação desportiva nacional e os seus “regulados” (atletas, clubes, etc).

Sucede, porém, que os ímpetos de “independência” em relação ao Estado ainda se reflectem durante os dias de hoje, com menos intensidade é certo, num discurso que é adoptado por muitos dos responsáveis e dirigentes destas entidades. Destaque-se, a arrepio da tradição histórica da negação dos direitos fundamentais dos agentes desportivos, a coragem da UEFA em adiar, sem grande alarido, o EURO 2020 para 2021.

Mais recentemente, a narrativa descrita ficou, porém, evidenciada pela conduta temerosa do Comité Olímpico Internacional, a qual consistiu numa demora em adiar a competição, chegando, inclusivamente, a admitir a possibilidade dos Jogos Olímpicos se realizarem na data prevista, ainda que essa posição tivesse gerado grande desconforto junto de alguns Comités Olímpicos nacionais.

É certo que já existiu um adiamento dos Jogos Olímpicos para 2021, mas as resistências iniciais parecem deixar um lastro político – totalmente inaceitável – de que os interesses económicos são mais relevantes do que a saúde dos atletas e, no limite, dos cidadãos.

Por outro lado, e passando para o plano nacional, muitas das competições profissionais de futebol foram suspensas – tanto quanto sabemos só a Bielorrússia é que mantém a competição – sem data previsível de regresso.

Também é sabido que a Federação Portuguesa de Futebol (FPF), depois de uma suspensão inicial das competições, optou, numa decisão de aplaudir, por cancelar as competições do escalão de formação. Não estão, contudo, acauteladas soluções – sem ser a sua suspensão – para as restantes competições organizadas pela FPF.

Mais problemática tem sido a posição da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP). Sem prejuízo da suspensão a que as competições de futebol profissional têm sido sujeitas, começam a levantar-se vozes que defendem a hipótese de “forçar” a realização, até ao final de Junho de 2020, dos jogos que foram suspensos[5].

É, assim, preocupante – e inadmissível – que se pretendam sobrepor os interesses económicos em relação à saúde da saúde de todos os intervenientes na competição desportiva. Vejamos brevemente o que se deve, a este respeito, discutir.

3.  Neste contexto, destaque-se que a competição desportiva (e os interesses económicos que lhe subjazem), por muito que custe a alguns, será sempre secundária em relação à necessidade de proteger a saúde dos atletas em particular e dos cidadãos em geral. Este é inequivocamente o postulado da exposição que se segue.

Com efeito, muitas, e algumas das quais até bastante originais, têm sido as propostas que foram avançadas com possíveis para resolver o problema que se tem vindo a enunciar.

De entre as mais diversas hipóteses para resolver o problema que envolve a época 2019/2020 na modalidade do Futebol encontramos as seguintes:

(i) suspensão da competição até, numa oportunidade próxima e ainda que com alguns riscos, ser possível realizar os jogos restantes (à porta fechada), desde que em data não posterior a Julho;

(ii) terminar a competição com os resultados obtidos até à sua suspensão, não realizando os jogos que faltam;

(iii) suspender a competição, alterando-lhe o calendário e o da competição da época de 2020/2021, caso não seja possível;

(iv) cancelar a competição desportiva de 2019/2020, assumindo, para todos os efeitos, que se deve ter como referência os resultados obtidos na competição desportiva de 2018/2019.

As mais seguras e menos danosas quer para a competição, quer para os agentes desportivos seriam as soluções (ii) e (iv). Muito se tem discutido sobre qual a solução que é compatível com o quadro jurídico vigente. Não existindo, ainda, respostas unívocas, poderá avançar-se com um fundamento para a solução (ii) ou (iv) que não parece ter sido ponderada.

Com efeito, não podemos ignorar que o artigo 3.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo dispõe precisamente que: “[o]s atos administrativos praticados em estado de necessidade, com preterição das regras estabelecidas no presente Código, são válidos, desde que os seus resultados não pudessem ter sido alcançados de outro modo, mas os lesados têm o direito de ser indemnizados nos termos gerais da responsabilidade da Administração”.

O que se deve a partir de agora discutir é se a LPFP poderá com base nessa norma dar como terminada (assumindo os resultados obtidos até à suspensão) ou cancelar a competição desportiva da época de 2019/2020, não existindo campeão, nem descidas, ficando, como referência para a próxima época os resultados obtidos na época de 2018/2019.

Uma coisa é certa: primeiro a vida e a saúde de todos, a competição vem depois.


[1] Suspendendo o exercício de alguns direitos fundamentais, entre outros, o direito de deslocação e fixação, a propriedade e iniciativa privada, dos trabalhadores ou mesmo de reunião e manifestação.

[2] V. o artigo 5.º.

[3] Sobre esta relação, v. Artur Flamínio da Silva, A Resolução de Conflitos Desportivos: entre o Direito Público e o Direito Privado, Coimbra, Almedina, 2017, pp. 185 e ss.

[4] Esta regulação administrativa é, naturalmente, diferente da que existiu num contexto histórico das ditaduras europeias, cfr. Artur Flamínio da Silva, A Resolução de Conflitos Desportivos: entre o Direito Público e o Direito Privado, Coimbra, Almedina, 2017, pp. 67 e ss.

[5] Nos termos do artigo 4.º, n.º 1, do Regulamento de Competições da LPFP “[a] época desportiva das competições organizadas pela Liga Portugal tem início em 1 de julho e termina em 30 de junho do ano seguinte”.

A LFPF pode, contudo, de acordo com o artigo 4.º, n.º 2, do mesmo regulamento, “em caso de força maior e em circunstâncias excecionais, devidamente justificadas, prorrogar o termo da época desportiva, assim como suspender total ou parcialmente qualquer competição oficial por si organizada”.