Jorge Reis Novais
Doutor em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa, especialista em Direito Constitucional e Direitos Fundamentais. É Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
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Análise de Jorge Reis Novais, na manhã de 19 de Março de 2020, com base no projecto de decreto presidencial que consta aqui.
1. Um erro grave de enquadramento
A primeira nota incide sobre uma deficiência grave e surpreendente na enumeração que o decreto presidencial faz dos direitos fundamentais que ficam parcialmente suspensos. Sucede que dessa enumeração não consta o direito à liberdade pessoal (art. 27º da Constituição), quando eram, afinal, a rigidez e taxatividade presentes nos enunciados constitucionais que consagram este direito que justificavam, em grande medida, a necessidade de declaração de um estado de emergência.
Com efeito, da conjunção do nº 2 e do nº 3 do art. 27º resulta que no nosso quadro constitucional, para além da privação da liberdade individual em consequência de sentença judicial condenatória, só são admissíveis as privações totais ou parciais da liberdade pessoal expressamente enunciadas no nº 3 deste artigo, onde se inclui apenas, no domínio sanitário ou de saúde, a possibilidade condicionada de internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico. Isto significa que, na vigência plena das normas constitucionais que consagram o direito à liberdade pessoal, não é constitucionalmente admissível o internamente compulsivo de portador de doença contagiosa ou o confinamento de não doentes em qualquer espaço, residencial ou de outra natureza. Da interpretação mais adequada das normas constitucionais, resultaria ser apenas excepcionalmente admissível o confinamento de doentes em risco iminente e actual de contaminação de outras pessoas, dado, aí, o imprescritível e colidente dever estatal de protecção da saúde das outras pessoas (art. 64º).
Precisamente, não se tendo atempadamente verificado a exigível e correspondente revisão constitucional que, neste domínio, atenuasse a actual rigidez do art. 27º, há no nosso quadro jurídico-constitucional uma anomalia que se reflecte, por exemplo, na impossibilidade/dificuldade de determinar quarentenas gerais e obrigatórias de não doentes ou o internamento compulsivo de doentes. Então, no quadro constitucional vigente, a superação dessa anomalia só seria possível, no caso, através da suspensão parcial das garantias individuais que decorrem do art. 27º (direito à liberdade pessoal), ou seja, através da declaração do estado de emergência.
Porém, e de forma surpreendente, o direito à liberdade pessoal não foi suspenso no presente decreto presidencial de declaração do estado de emergência, o que significa que, do ponto de vista jurídico, o direito fundamental em causa continua a constranger fortemente a actuação dos poderes públicos neste domínio.
De facto, eventualmente influenciado pelas anteriores declarações públicas do Primeiro-Ministro —que reiteradamente sugeriu não haver necessidade premente de uma declaração do estado de emergência, dado que o que estava em causa era o direito de deslocação e esse poderia ser limitado através dos instrumentos jurídicos já existentes—, o Presidente da República suspendeu parcialmente o direito de deslocação (art. 44º da Constituição), mas não a liberdade pessoal (art. 27º).
Dir-se-á que nos exemplos atrás referidos também está em causa a liberdade de deslocação e não deixa de haver aí alguma razão, mas, em estritos termos jurídicos, não é assim. Se o Estado decide internar compulsivamente, para fins terapêuticos, um doente portador de doença contagiosa, está a afectar remota ou indirectamente, é certo, o seu direito de deslocação, mas restringe ou viola directamente e em primeira linha a sua liberdade pessoal. É esta que está directamente em causa do ponto de vista da constitucionalidade, independentemente da concorrência de outros direitos. Se o Estado confina compulsivamente não doentes no espaço das suas residências ou de outros estabelecimentos, pode afectar indirectamente o seu direito de deslocação, mas restringe/viola directamente o direito fundamental garantido no art. 27º, já que priva parcialmente da sua liberdade pessoal tais cidadãos.
Todavia, independentemente da incongruência e incorrecção evidentes no facto de ter sido suspenso o direito de deslocação e não também, como devia ter sido, o direito à liberdade pessoal, dir-se-ia não vir daí mal ao mundo, uma vez que, nas normas de suspensão do direito de deslocação constantes do decreto presidencial de declaração do estado de emergência, se diz (art. 4º) que “podem ser impostas pelas autoridades públicas competentes as restrições necessárias para reduzir o risco de contágio… incluindo o confinamento compulsivo no domicílio ou em estabelecimento de saúde”.
De algum modo, ficam dessa forma atenuados os efeitos nocivos práticos da lacuna que vimos criticando. Ainda assim, e mais uma vez, do estrito ponto de vista jurídico-constitucional, há uma outra dificuldade, a seguir abordada, que não fica em qualquer caso resolvida e que pode, em última análise, ter consequências negativas no plano da estabilidade e segurança jurídicas.
Como se diz no art. 19º, nº 7, da Constituição, “a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na Constituição e na lei, não podendo nomeadamente afectar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania…”. Assim, aparentemente, apesar de nos encontrarmos em estado de emergência, Governo e Assembleia da República mantêm as suas competências no domínio da função legislativa, pelo que, apesar dos extensos poderes que lhe são atribuídos no decreto presidencial de declaração do estado de emergência, o Governo continua a não poder legislar sobre direitos, liberdades e garantias a não ser que obtenha a correspondente autorização legislativa parlamentar (art. 165º, b), da Constituição).
Pode, em estado de emergência, o Governo legislar sobre direito de deslocação, sobre direito à greve e direitos dos trabalhadores, sobre liberdade de reunião e de manifestação, sobre iniciativa económica privada e sobre direito de propriedade? Não continua toda essa matéria reservada à Assembleia da República, já que, mesmo em estado de emergência, se mantém em vigor, como vimos, a repartição constitucional de competências?
A nosso ver o Governo pode legislar e por uma razão muito simples. A Constituição reserva a competência para legislar sobre “direitos, liberdades e garantias” à Assembleia da República, mas, naturalmente, sobre os direitos, liberdades e garantias que estejam em vigor. Ora, precisamente, na parte em que foram suspensos através do decreto presidencial, os referidos direitos não estão em vigor, pelo que quando o Governo eventualmente legislar sobre esses domínios dentro do espaço que lhe foi delimitado pela suspensão, não está a legislar sobre “direitos, liberdades e garantias”, não está a legislar em matéria reservada à Assembleia da República.
E sobre limites à liberdade pessoal, sobre internamento compulsivo de doentes para fins terapêuticos e sobre confinamento de não doentes a espaços delimitados (excluindo, aí, o risco actual e iminente de contágio), pode o Governo legislar ou dispor normativamente? Precisamente, aí está a dificuldade de que temos vindo a falar. Não tendo havido a correspondente suspensão, o direito à liberdade pessoal mantém-se plenamente em vigor. Tratando-se de direito, liberdade e garantia, o Governo só pode legislar —desde que pretenda inovar em matéria relevante, essencial ou controversa— com a necessária autorização legislativa. Esse é o grande inconveniente prático da deficiência do decreto presidencial que estamos a apreciar. Obviamente, deixará de ser assim se, entretanto, o Presidente da República, durante a vigência do estado de emergência, proceder à devida suspensão do direito à liberdade pessoal.
2. A especial amplitude dos poderes atribuídos ao Governo
A segunda nota de realce no decreto presidencial de declaração do estado de emergência é a amplitude e extensão materiais dos poderes conferidos ao Governo na gestão da presente crise. Designadamente no que se refere à iniciativa económica privada, ao direito de propriedade e aos direitos dos trabalhadores, o Governo fica dotado de extraordinárias e praticamente ilimitadas capacidades de intervenção, pelo que não será por insuficiência ou constrangimentos jurídicos que o combate à epidemia deixará de se desenvolver com plena eficácia.
Continuando integralmente nas mãos do Governo a gestão sobre a oportunidade e adequação do recurso a esses instrumentos, resta assim ainda mais intrigante a anterior aparente relutância do Governo quanto à hipótese do estado de emergência, a não ser que se insinue residir aí, no desaparecimento de um, de outro modo, invocável constrangimento jurídico e, consequentemente, no advento de uma maior responsabilização política, a explicação para o incómodo com que o Governo acolheu a intenção presidencial de declaração do estado de emergência.
Em todo o caso, e independentemente das especulações políticas, esta extraordinária amplitude de acrescidos poderes governamentais suscita, do ponto de vista jurídico, a renovada importância de um permanente controlo de necessidade e proporcionalidade das eventuais medidas restritivas que venham a ser adoptadas. Será sobretudo em torno da aplicação desse princípio estruturante, que naturalmente mantém toda a pertinência jurídica, que se fará a actualização dos controlos próprios de Estado de Direito à actuação dos poderes públicos durante um período que se antevê prolongado.
3. As limitações à liberdade de culto
É duvidosa e provavelmente equívoca a autonomização de medidas de suspensão da liberdade de culto a que o decreto presidencial de declaração do estado de emergência procede. É certo que o decreto se refere exclusivamente à “liberdade de culto, na sua dimensão colectiva”, mas há uma dúvida que pode ser levantada. Segundo o art. 19º, nº 6, da Constituição, há alguns direitos que, mesmo em situação de estado de sítio e estado de emergência, em caso algum podem ser suspensos. Entre eles encontra-se a liberdade de consciência e de religião. Nesses termos, a dúvida será a de saber se a possibilidade, aberta pelo decreto presidencial, de introduzir limitações à liberdade de culto na sua dimensão colectiva viola ou não o sentido da garantia constitucional que preserva a liberdade de religião de suspensões durante o estado de emergência.
A nosso ver, não viola, mas, para não deixar quaisquer dúvidas residuais a propósito, em vez de ter autonomizado a suspensão à liberdade de culto, o decreto presidencial deveria preferencialmente ter integrado essa possibilidade na suspensão do direito de reunião e de manifestação também constante do decreto presidencial.
Ou seja, para o efeito —prevenção do contágio em ajuntamentos de pessoas em situação de grande proximidade— as reuniões ou manifestações de carácter religioso não apresentam autonomia relativamente a quaisquer outros ajuntamentos de pessoas, sejam eles de carácter político, cultural, desportivo, lúdico ou qualquer outro. O que importa aí é o facto objectivo e potencialmente perigoso da congregação objectiva de pessoas em espaços delimitados, fechados ou abertos, e não o fim para que se congregam. Não é, portanto, a liberdade de religião —o seu conteúdo— que está a ser potencialmente limitado, mas sim o modo, a forma ou o lugar da reunião ou da manifestação.
Portanto, não havendo dúvidas de constitucionalidade quanto à possibilidade de futura limitação introduzida pelo decreto presidencial, teria sido mais adequado não autonomizar as manifestações e reuniões religiosas das que são organizadas para quaisquer outros fins, uma vez que não é a liberdade de culto que está a ser directamente suspensa, mas sim, em rigor, o direito de reunião e de manifestação.
4. O art. 7º do Decreto presidencial ou de como no melhor pano caem as nódoas
Finalmente, o decreto presidencial termina com a pior chave que se possa imaginar. No seu art. 7º diz-se:
“São ratificadas todas as medidas legislativas e administrativas adotadas no contexto da presente crise, as quais dependam da declaração do estado de emergência” (sic).
Não sendo fácil apurar um sentido normativo de uma composição tão linguisticamente estranha, aquele que parece mais plausível será o de que se pretende com esta norma sanar as eventuais inconstitucionalidades ou ilegalidades de medidas legislativas e administrativas que só pudessem ter sido emitidas com base e no quadro da declaração do estado de emergência e que realmente tivessem sido ou venham a ser emitidas na inexistência ou fora desse quadro.
Porém, se é de facto isso —e não se vê que mais possa ser—, o mínimo que se pode dizer é que esta norma é inconstitucional. Precisamente, a declaração do estado de emergência visa conferir cobertura constitucional às medidas legislativas e administrativas que venham a ser emitidas durante a sua vigência e de acordo com os seus limites e só a essas. Sanação retroactiva ou prospectiva de inconstitucionalidades e de ilegalidades não existe e muito menos seria competência do Presidente da República, sob pena de violação ostensiva do princípio constitucional da separação de poderes.
NOTA: Por opção do autor este artigo foi escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico.