Man Teng IONG

Docente (Senior Instructor) e Coordenador do Curso de Mestrado em Direito de Macau e Práticas Jurídicas, da Faculdade de Direito da Universidade de Macau.
Investigador Integrado no Centro de Investigação em Justiça e Governação da Escola de Direito da Universidade do Minho.
Doutorado em Ciências Jurídicas Privatísticas pela Escola de Direito da Universidade do Minho.
Editor Chefe Adjunto do Conselho Editorial do jornal China Ocean Law Review.
Co-Editor Chefe do jornal Marine Law and Policy.


Responsabilidade Civil na Medicina Tradicional Chinesa – Análise na Perspetiva do Ordenamento Jurídico Português é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado desde 11 de Abril de 2024.

Consulte a obra neste link.


Atualmente, os cuidados de saúde englobam não apenas os atos da medicina convencional – também chamada “medicina alopática”, “biomedicina”, “medicina ortodoxa” ou “medicina ocidental”, que se entende por “um sistema no qual médicos e outros profissionais de saúde (como enfermeiros, farmacêuticos e terapeutas) tratam sintomas e doenças usando drogas, radiação ou cirurgia”[1] –, como também os atos praticados pelos profissionais das terapêuticas não convencionais. A importância da Medicina Tradicional Chinesa (MTC), de origem chinesa, tem crescido gradualmente nos últimos anos, quer nacionalmente quer internacionalmente. Essa importância pode ver-se na “The WHO Traditional Medicine Strategy 2014–2023[2], que se destina a reforçar o papel que a medicina tradicional[3] desempenha para manter a saúde da população dos estados-membros da OMS.

Em Portugal, temos a Lei n.º 45/2003, de 22 de agosto (Lei do Enquadramento Base das Terapêuticas Não Convencionais), a Lei n.º 71/2013, de 2 de setembro (Acesso às Profissões no Âmbito das Terapêuticas Não Convencionais) e a Portaria n.º 207-G/2014, de 8 de outubro, que regula especificamente a MTC no âmbito da sua competência, o que demonstra a atenção que Portugal tem dedicado à MTC. A MTC, não sendo uma forma de medicina, é legalmente reconhecida como uma das terapêuticas não convencionais a partir da entrada em vigor da Lei n.º 45/2003, de 22 de agosto (Lei do enquadramento base das terapêuticas não convencionais). Deste modo, embora os profissionais da MTC pratiquem atos de cuidados de saúde, estes não correspondem a atos médicos.

Mesmo não sendo uma forma de medicina, a MTC tem efetivamente a sua prática legalmente reconhecida em Portugal. A sua importância tem gradualmente crescido nos anos recentes, quer nacionalmente quer internacionalmente. Uma tal importância constata-se quando há cada vez mais pessoas que preferem os serviços da MTC sobre os da medicina convencional. Neste contexto, os profissionais da MTC podem ter dúvidas se os seus atos profissionais podem causar responsabilidade civil durante o seu contacto com utilizadores de MTC[4], nomeadamente entre o início de consulta e o fim de tratamento ou intervenção.

É exatamente com base neste contexto que existe necessidade de resolver as questões relevantes que relacionam os atos profissionais da MTC com a responsabilidade civil. Em primeiro lugar, é necessário saber se a MTC deveria ser uma forma de medicina, como ocorre em Macau e na China, em vez de ser apenas uma terapêutica não convencional. A sua solução é muito importante para o desenvolvimento deste círculo profissional em Portugal. Em segundo lugar, é necessário esclarecer a ligação entre o enquadramento teórico da responsabilidade civil médica existente e os atos profissionais da MTC. Em terceiro lugar, é necessário analisar e resolver, sob uma perspetiva da responsabilidade civil, as questões que se relacionem com o que resulta dos atos profissionais da MTC, como com o erro de diagnóstico, com a aplicação de métodos inadequados e com a falha na execução de métodos.

Convém realçar que as soluções propostas para as questões levantadas nesta obra são importantes para vários aspetos, como para o esclarecimento de dúvidas que os profissionais da MTC possam ter, para a segurança de utilizadores de MTC e até para o desenvolvimento da MTC em Portugal.

Pela pesquisa feita, em Portugal não há nenhum autor que tenha estudado ou investigado especificamente a responsabilidade civil na MTC. Os recursos doutrinais que existem têm a ver com a medicina não-convencional[5], que engloba outras terapêuticas para além da MTC, e não especificamente com esta última. Em vista disso, podemos dizer que se trata de um tema novo e que carece de aprofundamento.

Mesmo assim, esta obra não é ponto de chegada da responsabilidade profissional da MTC, mas sim o seu ponto de partida, porque ainda existem vários aspetos que podemos discutir, nomeadamente a sua ligação com a inteligência artificial, o metaverso, a proteção de dados pessoais, o aborto, a saúde pública, etc. Tomando como exemplo a sua conexão com a inteligência artificial, nomeadamente no âmbito do Direito Criminal, levantam-se várias questões legais e/ou éticas a resolver: (1) a questão de saber se, em caso de um robô atuar como se fosse uma pessoa humana (isto é, ter autonomia completa para aprender coisas novas e não apenas seguir os procedimentos pré-definidos), este deve ser entendido como uma pessoa humana ou pessoa coletiva ou será necessário criar um conceito novo para efeitos de criminalização; (2) a questão de saber se os tipos de crime existentes no Código Penal ou nas leis avulsas deverão ser aplicáveis ao robô referido; (3) a questão de saber se a penalidade existente (multa e prisão) é adequada ao robô em causa ou será necessário criar um tipo novo de crime para os efeitos devidos; (4) a questão de saber se o Código de Processo Penal em vigor é aplicável ao robô autónomo ou alguns mecanismos não devem ser aplicáveis[6]. Trata-se de questões relevantes que o legislador enfrentará e precisará de resolver para efeitos de esclarecimento.


[1] Sobre as designações e a definição, cfr. National Cancer Institute Dictionaries, disponível em https://www.cancer.gov/publications/dictionaries/cancer-terms/def/conventional-medicine (acesso em 27 de fevereiro de 2022).

[2] Sobre esta estratégia, cfr. WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Traditional Medicine Strategy 2014–2023, op. cit.

[3] A medicina tradicional a que se refere esta estratégia tem um âmbito mais abrangente do que a MTC tem, incluindo outras terapêuticas não convencionais.

[4] Esta obra usa “utilizador” ou “utilizador de MTC” para evitar qualquer confusão com a noção (clássica) de “utente” do SNS, em relação ao qual, havendo danos em sede de hospitais públicos, se verifica responsabilidade extracontratual.

[5] Por exemplo, entre outros, cfr. Vera Lúcia RAPOSO. “A medicina não convencional no contexto do direito à saúde e dos direitos dos pacientes”. Revista Juris Poiesis (Revista do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá), ano 19, n.º 21 (set.- dez. de 2016), pp. 1-13. RAPOSO Vera Lúcia. “Complementary and alternative medicine, medical liability and the proper standard of care”. Complementary Therapies in Clinical Practice, Vol. 35 (2019), pp. 183-188.

[6] Estas questões são levantadas por Man Teng IONG. “Artificial Intelligence and Traditional Chinese Medicine in Portuguese Criminal Law”. Tec Yearbook – Artificial Intelligence & Robots (School of Law of the University of Minho), pp. 39-51 (2020).