Ana Melro

Advogada.
Investigadora no DigiMedia – Digital Media & Interaction, Universidade de Aveiro e do JusGov – Centro de Investigação em Justiça e Governação, Universidade do Minho. Doutorada em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais e em Políticas Públicas. Mestre em Direito e em Sociologia.
Licenciada em Sociologia, Gestão e Direito.


Ações de Vida Indevida é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado desde de 11 de Abril de 2024.

Consulte a obra neste link.


Nos termos do artigo 66.º do Código Civil (CC), “1. A personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida. 2. Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento.”. Ora, os direitos de personalidade vêm especialmente previstos nos artigos 70.º e seguintes do CC, com este primeiro artigo a revelar que “[…] a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.”.

Relevante, ainda, é o artigo 30.º do Código de Processo Civil (CPC), relativo ao conceito de legitimidade processual, que dispõe que: “1. O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; […] 2. O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação […]”.

De acordo com LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, o conceito de legitimidade processual implica a existência de uma relação entre o sujeito e o objeto jurídico e é essa existência que justifica a sua legitimidade, culminando com o nexo entre sujeito e interesse relativamente ao ato jurídico[1]. Este interesse tem, necessariamente, que se revestir de um interesse direto, considerando a vantagem jurídica que do resultado da demanda resulta para o autor.

Os institutos jurídicos vistos anteriormente assumem elevada relevância no âmbito das ações de vida indevida. Assim, relacionado com os problemas que podem advir de um incorreto e/ou incompleto diagnóstico pré-implantação (em situações de fertilização in vitro) e pré-natal, surge a possibilidade de intentar uma ação especificamente designada de wrong action. Dentro desta é possível distinguir as wrongful conception (ou wrongful pregnancy), wrongful birth e wrongful life actions.

Embora se compreenda a relevância das wrongful conception e das wrongful birth actions, discorre-se sobre as wrongful life actions (ou ações de vida indevida). O que está em causa neste tipo de ações é, no nosso entender, a violação do superior interesse da criança.

Conforme esclarece LUÍS MARQUES,

estas ações surgem quando a criança que nasceu com malformações severas pretende reagir contra a pessoa que permitiu aquele nascimento. No caso que nos interessa, a criança deficiente intenta a ação contra o médico que, por negligência, omitiu ou prestou informações erradas aos seus pais, quando estes ainda teriam possibilidade de recorrer à IVG.[2]

Podem verificar-se dois tipos de situações: perante o diagnóstico de malformação do feto, já durante a gravidez (ou seja, já em momento posterior à conceção), há uma decisão dos responsáveis parentais (e, posteriormente, responsáveis legais) de prosseguirem com a gestação. E/Ou há uma omissão do médico (em princípio, porque poderá ser uma omissão ou até ação negligente de outra entidade que se envolva na fase de gestação) que acompanhou a gestação relativamente a malformações detetadas (ou mesmo de negligência nos exames realizados para o efeito), abstendo-se de informar os progenitores desse diagnóstico, o que, mais uma vez, conduz a que a criança nasça com problemas de saúde físicos e/ou mentais.

Ora, nessas situações é dada à criança a possibilidade de instaurar uma ação, tendo como causa de pedir o seu nascimento indevido (wrongful life). Mas será mesmo assim?

Que relevância terão os direitos de personalidade e a legitimidade de uma criança para a sua presença em juízo enquanto autora em ações judiciais que a envolvem diretamente, de modo a fazer valer os seus direitos, nomeadamente, o direito de se fazer representar e intentar uma ação contra os profissionais de saúde envolvidos na sua gestação e/ou os seus progenitores que, perante o diagnóstico de malformação, decidiram, ainda assim, não colocar termo à gestação, nos termos do artigo 142.º do Código Penal?

As wrongful life actions têm já sido discutidas na jurisprudência nacional. No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de junho de 2001, decidiu-se o seguinte:

VI – Não há conformidade entre o pedido e a causa de pedir se o autor pede que os réus – médico e clínica privada – sejam condenados a pagar-lhe uma indemnização pelos danos que lhe advêm do facto de ter nascido com malformações nas duas pernas e na mão direita, com fundamento na conduta negligente daqueles, por não terem detectado, durante a gravidez, tais anomalias, motivo pelo qual os pais não puderam optar entre a interrupção da gravidez ou o prosseguimento da mesma – o pedido de indemnização deveria ter sido formulado pelos pais e não pelo filho, já que o direito ou faculdade alegadamente violado se encontra na esfera jurídica dos primeiros. VII – O direito à vida, integrado no direito geral de personalidade, exige que o próprio titular do direito o respeite, não lhe reconhecendo a ordem jurídica qualquer direito dirigido à eliminação da sua vida. VIII – O direito à não existência não encontra consagração na nossa lei e, mesmo que tal direito existisse, não poderia ser exercido pelos pais em nome do filho menor.[3] (Negrito da autora).

Já o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP), em 2012, foi no mesmo sentido:

VII – A criança deficiente não tem direito próprio de indemnização pelo facto de ter nascido, por ausência de dano reparável.[4]

Solução curiosa aponta o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 2013:

Todas estas interrogações nos deixam em estado de profunda reflexão sobre as incongruências que se criariam caso se optasse pela atribuição de uma indemnização ao Autor cuja vida se encontra eivada de malformações irreversíveis, desamparados, como se viu, em qualquer instituto jurídico e apenas porque, talvez, por razões de ordem social se afigura chocante que uma pessoa assim nascida, não seja merecedora de uma indemnização, por esse facto, originador de dor e sofrimento.

Mas se é indubitável que estes sentimentos se não põem em causa, por nem sequer serem susceptíveis de serem postos em causa, não podem os mesmos terem-se como relevantes, neste conspectu, devido a óbices de jure constituto, sem prejuízo de se poder enveredar por uma outra solução, embora política, fazendo impender sobre o Estado o cumprimento efectivo dos deveres decorrentes do preceituado no artigo 71º, nº2 da CRPortuguesa, maxime através não só do tratamento dos cidadãos portadores de deficiência, mas também do apoio, igualmente aí consagrado, às respectivas famílias, cfr Carneiro da Frada, A própria vida como dano, ibidem. (Negrito da autora).

Este acórdão, não só opta pela mesma solução dos anteriormente vistos, como ainda propõe que a solução para a defesa de direitos se faça por via política e não jurídica. Aliás, o voto de vencido do Juiz Pires da Rosa é, igualmente, de referir:

– A razão que me levou a votar a improcedência do recurso, no que toca ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais formulado pelo autor, foi a de pensar que qualquer fundamentação que a sustentasse implicaria necessariamente o reconhecimento da titularidade de um direito à não existência, o que se me afigura rejeitado pela ordem jurídica. Mas não acompanho o afastamento definitivo da ponderação das potencialidades da figura do contrato com âmbito de protecção para terceiros, nem a exclusão categórica dos pressupostos da “ilicitude, culpa e nexo de causalidade”, já que não é em relação às malformações verificadas que deveriam ser analisados; e afigura-se-me falível o argumento de que a procedência do pedido conduziria ao reconhecimento do dever de interromper a gravidez, ou da possibilidade de o filho vir a pedir aos pais uma indemnização por não ter ocorrido essa interrupção, por faltar, desde logo um acto ilícito que a sustente (a decisão de manter a gravidez não é, seguramente, ilícita).[5] (Negrito da autora).

Por tudo o considerado anteriormente, é ainda de relevar a Lei n.º 16/2007, de 17 de abril, relativa à possibilidade de interrupção voluntária da gravidez, realizada a pedido da mulher, nos estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos para o efeito, dentro das condições previstas:

a) Constitua o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;

b) Se mostre indicado para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, e seja realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez;

c) Haja seguros motivos para prever que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excecionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;

d) A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for realizada nas primeiras 16 semanas de gravidez;

e) Por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez.[6] (Negrito da autora).

A este respeito, o Código Penal (CP) sofreu uma alteração, estando prevista no artigo 142.º, com a epígrafe “Interrupção da gravidez não punível”.

Considera-se estarem reunidas as condições para que se questionem as decisões resultantes da propositura de ações de vida indevida, sobretudo em Portugal.


[1] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, artigos 1.º a 361.º (4.ª Ed.), Coimbra: Almedina, p. 92.

[2] Luís Miguel Borges Monteiro Neiva Marques, Nascer por Engano: As Wrongful Life Actions e o Regime da Responsabilidade Civil Português, Dissertação de Mestrado, Universidade Católica do Porto, 2019, p. 13.

[3] Acórdão do STJ, processo n.º 01A1008, Relator Pinto Monteiro, datado de 19/06/2001, disponível em www.dgsi.pt.

[4] Acórdão do TRP, processo n.º 9434/06.6TBMTS.P1, Relator Filipe Caroço, datado de 01/03/2012, disponível em www.dgsi.pt.

[5] Acórdão do STJ, processo n.º 9434/06.6TBMTS.P1.S1, Relator Ana Paula Boularot, datado de 17/01/2013, disponível em www.direitoemdia.pt.

[6] Informação disponível em http://www.apf.pt/aborto-e-interrupcao-da-gravidez.