Leonardo Marques dos Santos

Advogado, Sócio da Miranda & Associados.
Professor Auxiliar Convidado, de Direito Fiscal e Direito Fiscal Internacional, na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa.
Árbitro em matéria tributária no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD).


Manual de IRC das Entidades Não Lucrativas é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado a 12 de Outubro de 2023.

Consulte a obra neste link.


O regime fiscal aplicável às entidades não lucrativas (i.e., às entidades que não exer­cem, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola), apresenta diversas especificidades, nomeadamente, em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”).  Arrisco-me mesmo a dizer que estas entidades, as não lucrativas, são um corpo estranho no Código do IRC. O facto de não prosseguirem o lucro, mas antes fins de interesse geral, resulta numa maior complexidade na determinação da sua base tributável, levan­tando, até, questões sobre a justiça da sua tributação. Tudo isto conduz a dificuldades na própria interpretação das normas que regem o enqua­dramento fiscal aplicável aos rendimentos por si obtidos.

No contexto do IRC, para além da base do imposto, as diferenças no enquadramento fiscal aplicável a entidades não lucrativas decorrem, essencialmente, das diversas isenções aplicáveis, diferentes regras relativas à dedução de gastos e reporte de prejuízos e da sua não sujeição às derramas Estadual e Municipal.

Com efeito, em vez de incidir sobre o lucro, no caso das entidades não lucrativas, o IRC incide sobre o rendimento global, correspondente à soma algébrica dos rendimentos das diversas categorias consideradas para efeitos do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) e dos incrementos patrimoniais obtidos a título gra­tuito.[i] O cálculo do IRC destas entidades requer, desta forma, o enqua­dramento do rendimento obtido nas várias categorias previstas no Código do IRS e, ainda, a determinação do rendimento líquido seguindo as re­gras estabelecidas no mesmo Código.[ii]

Por outro lado, como referido, a existência de regimes isentivos próprios são outro dos tra­ços específicos do regime aplicável a estas entidades. Desde logo, a lei estabelece uma isenção para Instituições Particulares de Solidariedade Social de Solidariedade Social e Pessoas Coletivas de Utilidade Pública.[iii] É ainda aplicável uma isenção a atividades culturais, recreativas e desportivas.[iv] Também as associa­ções de pais e confederações e associações patronais e sindicais benefi­ciam de algumas isenções específicas.[v] Por outro lado, o Código do IRC isenta especificamente alguns rendimentos, não sujeitando outros a tributação.[vi] As regras de dedutibilidade de gastos apresentam igualmente algumas particularidades. Ao rendimento global são dedutíveis, até à respetiva concorrência, os gastos comprovadamente relacionados com a realização dos fins de natureza social, cultural, ambiental, desportiva ou educacional prosseguidos.[vii] Acresce que, para além das deduções específicas consideradas para efeitos de determinação do rendimento líquido nos termos do Código do IRS, são dedutíveis os gastos comuns comprovadamente indispensáveis à obtenção dos rendimentos na parte que não esteja especificamente ligada à obtenção dos rendimentos não sujeitos ou isentos de IRC.[viii] Da mesma forma, encontramos regras diferentes no que respeita ao reporte de prejuízos.[ix] Como referido, incidindo as derramas apenas sobre entidades lucrativas, as não lucrativas não são abrangidas pela incidência subjetiva das mesmas.[x]

O enquadramento fiscal aplicável às entidades não lucrativas impli­ca, assim, uma articulação entre dois códigos: (1) o Código do IRC, que determina a incidência subjetiva, as isenções, o rendimento global, o tratamento dos gastos comuns e sociais, o reporte de prejuízos e a taxa aplicável; e (2) o Código do IRS, que, nomeadamente, permite que o rendimento seja qualificado e enquadrado por categoria e, consequen­temente, estabelece as regras de dedução específicas para cada cédula de rendimento.

Ora, incidindo o IRC sobre o rendimento global e não sobre o lucro, importa, antes de mais, identificar que entidades devem ser consideradas não lucrativas para efeitos de IRC. A questão é particularmente pertinente, já que algumas das entidades não lucrativas são especialmente evoluídas no que respeita à sua organização, atividade e formas de financiamento, o que as aproxima em muitos casos das entidades que prosseguem o lucro.

A este respeito, começo por destacar que o Código do IRC considera “de natureza comercial, industrial ou agrícola todas as atividades que consistam na realização de operações económicas de caráter empresarial, incluindo as prestações de serviços”.[xi] Contudo, a referida previsão legal acaba, na minha opinião, por não ser particularmente clarificadora, trazendo, até, novas dificuldades interpretativas referentes à concretização do que se entende por operações económicas e por caráter empresarial. A delimitação dos referidos conceitos, sobretudo tendo em consideração o contexto em que estes aparecem no Código do IRC, não se afigura uma tarefa simples. Isto porque, em muitos casos, tanto as atividades desenvolvidas pelas entidades não lucrativas, como a forma como estas são exercidas, apresenta grandes semelhanças com os modelos seguidos pelas entidades lucrativas. Esta semelhança é particular­mente visível quando as entidades não lucrativas são remuneradas pelos serviços prestados e/ou pelos bens fornecidos. Por outro lado, as entidades não lucrativas acabam, muitas vezes, por desenvolver atividades comerciais, industriais ou agrícolas a título aces­sório.

Na minha opinião, as entidades que não exer­cem, a título principal, uma atividade comercial, industrial ou agrícola são as que desenvolvem fins sociais. Deverá ser este o critério a utilizar na identificação do conjunto das entidades que são tributadas, em sede de IRC, pelo seu rendimento global. Por um lado, as entidades não lucrativas produzem bens e ser­viços que são transacionados no mercado. Ou seja, também as entidades não lucra­tivas desenvolvem atividades comerciais, industriais ou agrícolas e dispõem – ou podem dispor – de estruturas complexas, prepara­das e altamente organizadas (i.e., estruturas “empresariais”). Tributar estas entidades pelo lucro sem olhar à forma e contexto em que a atividade é desenvolvida, se­ria, de certa forma, negar grande parte da atividade social em Portugal, considerando-a uma atividade lucrativa para efeitos fiscais, com todas as consequências que daqui advêm. Não parece, sequer, existir uma indicação clara de ter sido esta a vontade do legislador. Embora algumas entidades não lucrativas ainda tenham uma organização menos sofisticada, na minha opinião, este elemento deve assumir pouca relevância para efeitos do seu enquadramento em sede de IRC.

Por outro lado, estas entidades podem (e arrisco-me mesmo a dizer, devem) procurar maximizar o impacto da sua atividade social. Isto implica que exista uma estrutura organizacional capaz de assegurar o desenvolvimento da atividade social.

Assim, em suma, considero que, em si mesmo, o desenvolvimento de atividades comerciais, industriais ou agrícolas, ou a existência e utilização de uma estrutura organizacional não rudimentar, por si só, não determina que as operações ou atividade desenvolvida tenha “caráter empresarial”, para efeitos de qualificação da atividade principal de uma entidade como comercial, industrial ou agrícola de acordo com o Código do IRC.

Na sequência do referido acima, na minha opinião, o Código do IRC, ao referir-se a operações económicas e ao caráter empresarial, determina que as entidades lucrativas são aquelas em que as operações económi­cas por si realizadas têm caráter empresarial (o que é diferente de terem estruturas empresariais ou, até, desenvolverem atividades comerciais, industriais ou agrícolas).  Contrariamente, as entidades não lucrativas são as que desenvol­vem a sua atividade (económica), com um caráter social.

O elemento determinante será, desta feita, a sociabilidade da entidade, neste sentido entendida como sendo vocacionada para o interesse geral/social (vs. a empresarialidade tendente a beneficiar principalmente os detentores do capital). Por outras palavras, o Código do IRC baseia a distinção entre entidades lucrativas e não lucrativas nos fins (mediatos) da entidade e não na atividade (ou fim imediato).

Repare-se, que este apuramento interpretativo tem perfeito assento na letra da lei. Isto porque, na minha opinião, entidades que desenvol­vem, a título principal, atividades de caráter social, não estão a desen­volver, a título principal (simultaneamente) uma atividade comercial, industrial ou agrícola. No caso das entidades não lucrativas, mesmo que estas desenvolvam uma ou mais atividades comerciais, industriais, ou agrícolas, estas atividades são um meio para o cumprimento de um fim que não será empresarial.

Leonardo Marques dos Santos


[i] Cfr., Código do IRC, artigo 3º, nº 1, al. b). 

[ii] Cfr., Código do IRC, artigo 53º, nº 1. 

[iii] Cfr., Código do IRC, artigo 10º. 

[iv] Código do IRC, artigo 11º.

[v] Cfr., Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), artigo 55º.

[vi] Cfr., Código do IRC, artigo 54º, nºs 3 e 4. 

[vii] Cfr., Código do IRC, artigo 53º, n.º 7.

[viii] Cfr., Código do IRC, artigo 54º.

[ix] Cfr., inter alia, Código do IRC, artigo 53.º, n.º 2.

[x] Cfr., Código do IRC, artigo 87º-A e Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Enti­dades Intermunicipais, aprovado pela Lei nº 73/2013, de 3 de setembro, artigo 18º.

[xi] Código do IRC, artigo 3º, nº 4.