João Canto e Castro
Advogado.
A presente nota é suscitada pelo relatório e parecer do Tribunal de Contas à Conta Geral do Estado, reportada a 2021, publicado no Diário da República, II série, n.º 212, parte D, de 3 de novembro de 2022.
Em concreto, pela posição do Tribunal de Contas quanto aos termos, conteúdo, sentido e alcance do disposto no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 111/2012, de 23 de maio (regime legal aplicável às PPP, RJPPP).
O regresso das PPP (Hospital do Algarve, Hospital de Lisboa Oriental, Alta Velocidade, construção e instalação de cabos submarinos, etc.), faz prova da atualidade do tema e da necessidade de leituras/interpretações que considero mais adequadas do RJPPP.
O que se segue é uma breve e preliminar anotação a essa disposição legal, no âmbito de um trabalho em curso que consiste, justamente, na anotação daquele diploma legal.
Pretende-se, portanto, suscitar a reflexão e discussão sobre um tema central do RJPPP e da gestão contratual e, nessa medida, da articulação entre o RJPPP e o CCP.
Artigo 4.º
Fins
1 – Constituem finalidades essenciais das parcerias a economia e o acréscimo de eficiência na afetação de recursos públicos face a outros modelos de contratação, bem como a melhoria qualitativa e quantitativa do serviço, induzida por formas de controlo eficazes que permitam a sua avaliação permanente por parte do parceiro público e dos potenciais utentes.
2 – As finalidades a que se refere o número anterior devem orientar a interpretação e aplicação das normas e princípios constantes do presente diploma.
Redação anterior[1]:
Artigo 4.º
Fins
Constituem finalidades essenciais das parcerias público-privadas o acréscimo de eficiência na afectação de recursos públicos e a melhoria qualitativa e quantitativa do serviço, induzida por formas de controlo eficazes que permitam a sua avaliação permanente por parte dos potenciais utentes e do parceiro público.
Anotação.
1. A nova redação constante do n.º 1 vem sublinhar, sobretudo, três ideias que talvez não decorressem necessária e logicamente da redação e, sobretudo, do regime anteriormente em vigor.
Uma primeira, que as PPP visam a “economia”, leia-se, menos despesa que igual tarefa alcançada através de um outro modelo de contratação.
Uma segunda, que as PPP visam aumentar a eficiência dessa mesma despesa.
Uma terceira, que essa economia e essa eficiência deve ser encontrada face a outros modelos de contratação (que não é a mesma coisa que dizer face a modelos de contratação que dispensem o recurso a parceiros privados).
2. Note-se que nessas três notas distintivas não está ainda, ou só, a exigência do denominado comparador do setor público: do que se trata de comparar é se outro modelo de contratação que não o modelo PPP induz menos despesa e/ou despesa mais eficiente.
Este novo desenho legal encontra depois eco adequado na nova obrigação (e prerrogativa) das equipas de projeto constante do artigo 13.º: estas passam a dispor de um poder/dever de recomendar ao Governo a utilização de um modelo de contratação diferente das PPP se, “no desenvolvimento dos trabalhos de preparação do lançamento da parceria, tendo em consideração os fins a alcançar se configurar um diferente modelo de contratação suscetível de apresentar vantagens para o setor público”.
3. O regime aqui traçado levanta várias questões.
A primeira é, digamos assim, da impossibilidade, ou seja, nem sempre será possível, por natureza, determinar se um outro modelo de contratação é mais capaz que o modelo de PPP porque pode dar-se o caso de, nalguns casos, nunca se ter experimentado esse outro modelo para um projeto similar ao projeto em causa, ou por não se dispor de informação qualitativa e quantitativa que permita esse exercício.
Esta impossibilidade permite todos os abusos e juízos arbitrários sobre um determinado projeto contratado em regime de PPP, que, em tese e de acordo com um “pensamento mágico”, autoexplicativo e autossuficiente – tão em voga em Portugal – poderia, afinal, ser contratado através de um modelo de contratação diverso.
É uma impossibilidade com que o setor público também se confronta com a obrigação de elaboração do comparador do setor público.
Assim gizada, esta disposição legal terá de ceder perante a impossibilidade objetiva de lhe dar cumprimento. Como é evidente, quando não for possível fazer a comparação, a PPP não deixará de poder ser adotada por esse motivo (terão de ser encontradas outras razões para o efeito).
Suponho que podemos encontrar algum apoio a esta linha argumentativa na alínea j) do artigo 28.º, segundo a qual cabe à UTAP a avaliação dos “resultados de contratos de parceria celebrados, designadamente comparando-os, quando possível, com aqueles que são alcançados por outras entidades públicas ou privadas que desenvolvem atividades de conteúdo semelhante” (negrito meu).
A segunda questão é que esse juízo de comparabilidade não inclui ou não integra na sua avaliação um dos outros fins que devem nortear o recurso às PPP: “a melhoria qualitativa e quantitativa do serviço”.
É, julgo, o que resulta do teor literal do preceito e, portanto, se houvesse dúvidas sobre o que está subjacente ao RJPPP – a salvaguarda do interesse público financeiro, e não tanto PPP que visem e alcancem uma “melhoria qualitativa e quantitativa do serviço” – essas dúvidas certamente que seriam dissipadas[2].
A terceira é esta. Ao colocar o ónus no setor público de demonstrar coisas indemonstráveis está, em abstrato, a limitar a possibilidade de recurso às PPP.
Esta é a realidade objetiva traçada por este regime, mas também aquela que resulta do “pensamento mágico” a que aludi acima.
A este regime que em tese, impede o recurso às PPP na impossibilidade de fazer a comparação exigida pelo legislador – entre o recurso ao modelo de contratação das PPP e “outros modelos de contratação” – deve ser contraposto, evidentemente, que a obrigação legal tem subjacente a possibilidade de levar a cabo essa comparação, como se previu, e muito bem, na já referida alínea j) do artigo 28.º.
4. A questão de fundo é, porém, mais vasta e resulta de uma diretiva legal a que, porventura, se tem dado pouca relevância: refiro-me ao n.º 2 deste artigo 4.º[3].
O que essa diretiva parece querer significar é que na interpretação e aplicação do RJPPP deve ser privilegiada uma perspetiva funcional: aquela que melhor viabilize o cumprimento das “finalidades a que se refere o número anterior”.
Em termos teóricos, práticos e pragmáticos, o que isso quer dizer é que o RJPPP não tem subjacente um modelo legal, único e exclusivo para toda e qualquer PPP que se pretender ver lançada e contratualizada, o que implica, por exemplo, uma interpretação e aplicação criteriosa de uma das disposições centrais do RJPPP, o artigo 6.º.
Com efeito e sob pena de matarmos à nascença uma modalidade de contratação válida e apta à prossecução do interesse público, a interpretação e aplicação do RJPPP deve ser feita de modo a permitir, tanto quanto possível, a contratualização de PPP ajustadas ao projeto que se quer ver executado.
A economia e o acréscimo de eficiência na afetação de recursos públicos – fins das PPP – não podem estar limitadas ou condicionadas por uma interpretação rígida e “cega” do RJPPP: uma interpretação desse tipo ou que reconduza a um modelo legal, único e exclusivo, diferente unicamente nas nuances derivadas da atividade económica ou industrial subjacente ao projeto, estará em contradição absoluta com o critério de interpretação fixado no artigo 4.º do RJPPP.
O critério de interpretação e aplicação prescrito no n.º 2 do artigo 4.º impõe uma interpretação elástica e flexível das “normas e princípios constantes” do RJPPP, em ordem à maximização da “economia” e do “acréscimo de eficiência” que as PPP permitem alcançar.
5. Eis, porém, o que esta disposição não permite nem consente: que em nome dessas finalidades, sejam atribuídas responsabilidades – atribuições ou competências – que as normas de atribuição das mesmas constantes do RJPPP não previram nem regularam; que se alargue ou comprima o elenco de parceiros públicos previstos no RJPPP; que se esvazie o sentido útil da dispensa da comissão de negociação prevista no n.º 6 do artigo 21.º.
Enfim, não permite nem consente, evidentemente, a rescrita pretoriana do RJPPP.
6. A “economia” e o “acréscimo de eficiência na afetação de recursos públicos”, são requisitos cumulativos ou não? Como já referi, o que está subjacente ao RJPPP é a proteção do interesse público financeiro nas situações em que o setor público recorre às PPP e, portanto, suponho que aqueles requisitos sejam cumulativos.
7. A necessária e incontornável ligação entre o disposto na primeira parte do n.º 1 do artigo 4.º e o regime traçado no artigo 13.º, levanta duas questões de alcance teórico e prático.
A primeira é que do artigo 13.º parece resultar uma “preferência” do legislador – uma vez desencadeado o procedimento de lançamento de uma PPP – por este modelo de contratação.
Se pensarmos bem, o procedimento de lançamento e preparação de uma PPP é tão exigente que uma decisão de dar início ao procedimento – previsto nos artigos 9.º e seguintes -, já terá subjacente um juízo favorável – em face do RJPPP – ao lançamento de um projeto que se pretende ver contratado com recurso a uma PPP.
Eis o que, salvo melhor opinião, decorre da obrigação prevista no n.º 1 do artigo 9.º do RJPPP. Quem, nos termos desta disposição legal, pretenda dar início ao estudo e preparação de uma PPP “deve apresentar ao membro do Governo responsável pela respetiva área uma proposta devidamente fundamentada, indicando, nomeadamente o objeto da parceria, os objetivos que se pretendem alcançar, a sua fundamentação económica e a respetiva viabilidade financeira do projeto” (negrito meu).
Quer dizer. Em rigor, o que essa obrigação determina – sem o expressar – é que uma parte significativa das exigências materiais previstas no artigo 6.º já se deve mostrar cumprida, ainda que de modo preliminar.
Neste contexto, em condições normais – sem ocorrência de alterações que alterem radicalmente os pressupostos de facto do projeto e o “ambiente” social, económico e financeiro em que aquele mesmo projeto está enquadrado e em que se integrará – dificilmente a preparação de uma PPP que observe o regime previsto nos artigos 9.º e seguintes permitirá o juízo negativo e alternativo previsto no artigo 13.º
Daqui decorre, naturalmente, que esse mesmo juízo é duplamente exigente: deve demonstrar a inviabilidade da projetada PPP e, concomitantemente, a viabilidade de outro modelo de contratação, tudo em ordem ao cumprimento dos fins previstos no artigo 4.º e os fins em concreto da projetada PPP.
Ou seja, a exigência do modelo de fundamentação do recurso à PPP é, para este efeito, “transferida” para o recurso a um modelo de contratação alternativo.
A segunda questão está diretamente relacionada com disposto na 2.º parte do n.º 1 do artigo 4.º. Comecemos por aqui.
Após descrever as “finalidades essenciais” das PPP, o legislador acrescenta “induzida por formas de controlo eficazes que permitam a sua avaliação permanente por parte do parceiro público e dos potenciais utentes”.
Qual o significado e, sobretudo, qual o alcance, desta obrigação?
Parece claro que o legislador associa o cumprimento daquelas finalidades à existência de um acompanhamento e monitorização da execução da PPP que permita a sua avaliação permanente. Ou seja, o cumprimento das ditas finalidades é indissociável de uma gestão contratual proactiva, contínua, que permita a “avaliação permanente” por parte do parceiro público.
A adoção deste modelo de contratação pressupõe assim, pelo menos no momento da adjudicação, de uma estrutura de acompanhamento e monitorização que permita um controlo eficaz e uma avaliação permanente da execução da PPP.
Qual o alcance? É tão somente a obrigação de uma gestão contratual dedicada e profissional da PPP – o que, em rigor, já decorre do disposto no Código dos Contratos Públicos através da obrigação da indicação e nomeação de um gestor de contrato -, que induza a “melhoria qualitativa e quantitativa do serviço”, ou é mais qualquer coisa.
Quer dizer, a essa necessidade de controlo e “avaliação permanente” está associada alguma obrigação consequente ou acessória?
Estarão os parceiros públicos obrigados a – numa base contínua e permanente – a avaliar e determinar se a opção por este “modelo de contratação” permanece válida. Ou seja, o juízo a que alude o artigo 13.º do RJPPP, não é, afinal, exclusivo da fase de lançamento da PPP, devendo ter lugar, numa base, sublinho, contínua e permanente, em função da referida avaliação a que alude o n.º 1 do artigo 4.º?
Suponho que isso possa, numa leitura que reputo de apressada e superficial, fazer sentido. Mas não faz, antes pelo contrário.
Lançada e contratada uma PPP, será nos termos contratuais gizados e acordados entre as Partes que o compromisso contratual poderá ser posto em causa, isto por um lado.
Por outro lado, a avaliação do modo e termos da prossecução do interesse público é uma obrigação indeclinável dos parceiros públicos, seja qual for o modelo de contratação adotado, não sendo, portanto, um exclusivo das PPP, sendo certo que se trata de um imperativo que decorre diretamente da Constituição. Ou seja, não precisa de cominação na lei ou no contrato.
Acresce que as PPP implicam um compromisso forte dos parceiros privados, normalmente alicerçado na obtenção de financiamento muito avultado – seja qual for a modalidade de financiamento adotada, project finance ou outra -, que, naturalmente, não seria possível obter se a manutenção da PPP dependesse, numa base contínua e permanente, de um juízo valorativo, de natureza marcadamente discricionária, sobre a validade do modelo de contratação seguido.
Finalmente, não se deve perder de vista que essa leitura e interpretação – sufragada, por exemplo e salvo melhor opinião, de forma repetida e insistente, pelo Tribunal de Contas no parecer sobre a conta geral do Estado – não tem tradução “procedimental” no RJPPP.
No RJPPP – com exceção do disposto no artigo 13.º e no artigo 19.º (constituição de equipa para acompanhar a fase inicial da execução do contrato) –, não encontramos qualquer outra disposição que suporte uma leitura tão arrevesada como aquela que, sublinho, é defendida pelo Tribunal de Contas.
Essa ausência – a par da regulação expressa prescrita no artigo 13.º, e do já acima exposto -, permite suportar uma leitura e interpretação do n.º 1 do artigo 4.º completamente diferente de uma interpretação que “soa bem”, é politicamente correta e dispensa um esforço mais aturado de interpretação do RJPPP.
Mas é uma interpretação ajustada à realidade normativa e à realidade das coisas, hoje tão desprezada em benefício de um “pensamento mágico”, tão em voga, quanto superficial e irresponsável.
Acresce, como ficou dito acima, assinado o contrato que corporiza a PPP, é nesse contrato que tem lugar a avaliação do desempenho do parceiro privado, em ordem ao cumprimento dos fins concretos dessa PPP, naturalmente subordinados aos fins mais vastos das PPP, previstos no artigo 4.º.
No limite, essa avaliação de desempenho – que tem lugar em qualquer contrato através do qual se associa um particular à prossecução do interesse público – pode levar à rescisão por interesse público por se considerar que o modelo PPP deixou de ser o mais adequado.
Mas, sublinho, trata-se de uma matéria a cuidar no âmbito da gestão do contrato e não de uma tarefa que possa ser atribuída, por exemplo, à UTAP no âmbito do RJPPP. É, de resto isso mesmo que está prescrito na alínea a) do artigo 5.º.
8.É preciso enfatizar este ponto. À UTAP ou às equipas de projeto constituídas e nomeadas nos termos do artigo 10.º, não cabe assegurar – relativamente a cada PPP objeto de contratualização – que são cumpridos, em sede de execução contratual, os fins previstos no artigo 4.º.
Não se pode nem se deve, em face do RJPPP, confundir planos.
O papel da UTAP e das equipas de projeto não se confunde com o papel reservado à gestão contratual. Por alguma razão, o RJPPP prevê que a UTAP pode assumir a qualidade de gestora de contrato ou que possa ser chamada a dar apoio nessa gestão, isto por um lado. A razão é porque os planos são diferentes e não se podem nem devem confundir.
Por outro lado, o trabalho das equipas de projeto esgota-se com a entrega e aprovação do “relatório fundamentado” previsto no artigo 14.º: no âmbito do RJPPP as equipas de projeto deixam de ter habilitação legal para praticar quaisquer atos.
Repare-se que mesmo quando pode ser determinada uma equipa para acompanhar a fase inicial da execução do contrato, o legislador não previu que nessa situação o mandato da equipa de projeto poderia ou deveria ser estendido (cfr. artigo 19.º).
Nessa disposição, o legislador assume a extinção da equipa de projeto e prevê, bem, a possibilidade de constituição de uma equipa de acompanhamento da fase inicial da execução do contrato.
E bem, porquê? Porque a equipa de projeto estaria, naturalmente, condicionada pela sua participação na preparação, estudo e lançamento da PPP, não podendo assim – objetivamente – guardar a distância devida para levar a cabo esse acompanhamento.
Para reforço desta linha argumentativa deve ainda ser destacado que na alínea j) do artigo 28.º, o que ficou reservado à UTAP foi a avaliação dos “resultados de contratos de parceria celebrados, designadamente comparando-os, quando possível, com aqueles que são alcançados por outras entidades públicas ou privadas que desenvolvem atividades de conteúdo semelhante” (negrito meu).
Deve ainda ser destacado que nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo
35.º, é atribuição da UTAP, o “acompanhamento global das parcerias nas matérias
económico-financeiras”, o que sugere um foco diverso daquele que,
manifestamente, só pode caber aos responsáveis pela gestão contratual.
[1] Redação conferida pelo Decreto-lei n.º 86/2003, de 26 de abril.
[2] Desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 86/2003, de 26 de abril, que a lógica financeira é que reflete a “identidade” dos diplomas que regulam o recurso do Estado (e demais entidades públicas a que os diplomas se têm aplicado) às parcerias público-privadas. O legislador tem-se mostrado mais preocupado com o impacto nas contas públicas e no défice dos encargos assumidos com as parcerias público-privadas, do que propriamente em assegurar a preparação, contratação e execução de boas parcerias público-privadas, ou seja, mesmo quando os projetos não reúnem as condições mínimas para prosseguirem, avançam na mesma por razões de oportunidade política.
[3] Suponho que esta disposição legal se inspirou em disposição similar constante de contratos de concessão/subconcessão celebrados em “regime” de PPP: “Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, as dúvidas na interpretação ou na integração do regime aplicável ao Contrato de Subconcessão serão resolvidas com base na prevalência do interesse público na boa execução das obrigações da Subconcessionária e no funcionamento ininterrupto da Subconcessão” (negrito meu). Cfr., entre outros, Contrato de Subconcessão do Baixo Tejo, disponível em www.utap.pt