Jorge Morais Carvalho

Professor da NOVA School of Law e Diretor do NOVA Consumer Lab.


Diretivas 2019/770 e 2019/771 e Decreto-Lei n.º 84/2021 – Compra e Venda, Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais, Conformidade, Sustentabilidade e Dados Pessoais é a mais recente obra de sua co-autoria. Obra que o Grupo Almedina publica e disponibiliza no mercado a 7 de Julho 2022.

Consulte a sua obra neste link.


Completaram-se na passada sexta-feira seis meses da data de entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro, que regula vários aspetos relativos aos contratos de compra e venda e de fornecimento de conteúdos e serviços digitais quando celebrados entre um consumidor e um profissional, transpondo as Diretivas 2019/770 e 2019/771

O novo regime aplica-se apenas aos contratos celebrados desde o dia 1 de janeiro de 2022, com exceção dos contratos de execução duradoura relativos a serviços digitais de fornecimento contínuo, em que o regime se aplica, independentemente da data da celebração do contrato, desde o dia 1 de janeiro de 2022.

Ainda é cedo para fazermos um balanço sobre a aplicação do diploma.

Por um lado, ainda não passou o tempo necessário para testar, na prática, as soluções mais interessantes do novo regime, como a diferença entre o período de responsabilidade (três anos) e o período de inversão do ónus da prova da existência da falta de conformidade no momento da entrega (dois anos) ou o novo período adicional de responsabilidade em caso de reparação. Estes aspetos apenas vão começar a levantar discussão em situações reais dentro de dois anos, quando os contratos celebrados nestes primeiros meses após a entrada em vigor do diploma fizerem dois anos de vida.

Por outro lado, pelas mesmas razões, ainda não existe jurisprudência em que seja aplicado o Decreto-Lei n.º 84/2021. Será necessário esperar alguns anos para termos decisões de tribunais superiores portugueses ou do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) sobre estas matérias. O papel deste último órgão jurisdicional é fundamental no que respeita à interpretação das normas de direito do consumo com origem no direito da União Europeia, o que, infelizmente, nem sempre é compreendido totalmente pelos nossos tribunais. Assumem aqui particular relevância os tribunais arbitrais dos centros de arbitragem de consumo, que são aqueles que mais aplicam a legislação de consumo em Portugal. De entre as decisões publicadas online pelos centros[1], surpreende pela negativa a escassez de referências à jurisprudência do TJUE.

Esta semana será lançada pela Almedina uma nova obra sobre esta matéria, na qual participo, em conjunto com três doutorando/as da NOVA School of Law (Inês Crispim, Maria Miguel Oliveira da Silva e Martim Farinha). O livro tem o seguinte título: “Diretivas 2019/770 e 2019/771 e Decreto-Lei n.º 84/2021 – Compra e Venda, Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais, Conformidade, Sustentabilidade e Dados Pessoais”. O prefácio foi elaborado por Maria Helena Brito, Professora Catedrática Jubilada da NOVA School of Law, que comigo regeu a disciplina de Direito Privado, integrada no Doutoramento em Direito da NOVA School of Law, nos últimos dois anos letivos. No presente ano letivo, a disciplina foi subordinada ao tema “Contrato de compra e venda: da Convenção de Viena de 1980, relativa aos contratos de compra e venda internacional de mercadorias, às Diretivas (UE) 2019/770 e 2019/771, sobre fornecimento de conteúdos e serviços digitais e venda de bens de consumo”. A obra nasceu precisamente neste contexto.

O livro reúne dois textos de introdução, um às diretivas e o outro ao diploma de transposição, e três textos em que são aprofundados os temas atualmente mais relevantes, não só neste domínio, mas também, muito provavelmente, no Direito do Consumo em geral.

Em primeiro lugar, a obra inclui uma análise aprofundada do conceito de conformidade, conceito central do regime, procedendo Inês Crispim a um estudo comparativo entre o Decreto-Lei n.º 84/2021 e a Convenção de Viena. A Convenção de Viena foi a fonte de inspiração do direito europeu (e, por via deste, do direito dos Estados-Membros da União Europeia) nesta matéria. A separação explícita dos critérios de conformidade em critérios subjetivos e objetivos é uma das principais inovações do novo regime no que respeita à avaliação da conformidade. Não se verificam alterações muito significativas nos critérios propriamente ditos, embora destaque a circunstância de se acrescentarem os requisitos da funcionalidade, compatibilidade e interoperabilidade no que respeita a conteúdos e serviços digitais e bens com elementos digitais. A questão de saber em que medida os critérios de conformidade podem ou não ser moldados ou afastados pelas partes é uma das questões mais relevantes e debatidas, sendo objeto de investigação cuidada no livro em vias de publicação.

Em segundo lugar, a relação entre consumo e sustentabilidade no contrato de compra e venda para consumo é pormenorizadamente analisada por Maria Miguel Oliveira da Silva. O subtítulo deste capítulo (“aplausos e perplexidades”) aponta claramente no sentido de ser adotada uma perspetiva crítica, que realça, por um lado, os aspetos em que o novo regime é adequado e eficaz no sentido de garantir o respeito por decisões mais sustentáveis e, por outro lado, os pontos em que as soluções apontam em sentido contrário. Entre outros aspetos, importa perceber as medidas adotadas para que a reparação seja privilegiada em relação aos outros direitos do consumidor, nomeadamente a substituição. A forma como o regime não aponta no sentido de incentivar uma economia circular, limitando os direitos dos consumidores no caso da venda de bens usados, é objeto de crítica no livro.

Por fim, em terceiro lugar, mas não por isso menos relevante, Martim Farinha aborda a ligação entre o direito do consumo e a proteção de dados pessoais, em especial nos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais em que os dados constituem a contraprestação do consumidor. Responde-se, entre outras, às questões de saber em que casos é aplicável o regime ainda que o consumidor não tenha pagado um preço ou o destino do contrato caso o consumidor retire o consentimento para o tratamento de dados pessoais.

Estes foram deste o início – e continuam a ser – os temas mais discutidos a nível europeu.

Em conferência em que participei em meados de junho[2], na Universidade de Ferrara, em Itália, foi possível assistir a intervenções sobre a transposição das duas diretivas em cada um dos vinte e sete Estados-Membros da União Europeia.

Os três conceitos mais referidos foram, sem dúvida, os de conformidade, sustentabilidade e dados pessoais. Com modelos de transposição muito diversos, uns mais criativos do que outros, uns mais ousados do que outros, uns mais abrangentes do que outros, uns dando mais importância ao direito do consumo do que outros, é transversal a preocupação relativamente a estes temas. Se é certo que não estiveram no centro das preocupações do legislador português, não tenho dúvidas de que serão objeto de ampla discussão pelos juristas nos próximos anos. Será também nestes domínios que o regime se tornará mais rapidamente obsoleto. Como defendemos em texto anterior[3], as diretivas de 2019 já nasceram desatualizadas. Na obra que irá ser publicada esta semana poderá compreender


[1] Já defendi neste Observatório, em texto publicado com Joana Campos Carvalho, em fevereiro de 2021, que as decisões dos centros de arbitragem de consumo deveriam ser objeto de publicação obrigatória (https://observatorio.almedina.net/index.php/2021/02/26/pela-publicidade-das-decisoes-dos-centros-de-arbitragem-de-consumo).    

[2] A conferência, organizada por Alberto De Franceschi e Reiner Schulze, teve como título “Harmonizing Digital Contract Law – The Impact of EU Directives 2019/770 and 2019/771 and the Regulation of Online Platforms”.

[3] “The Premature Obsolescence of the New Deal for Consumers”, in EuCML – Journal of European Consumer and Market Law, Vol. 10, n.º 3, 2021, pp. 85-88.