JOÃO LEAL AMADO

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra


1. Tempo de trabalho, tempo de descanso e tempo de vida

Comecemos pela Constituição da República Portuguesa (CRP): todos os trabalhadores têm direito «ao repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas», lê‑se no seu art. 59.º, n.º 1, al. d); e o n.º 2, al. b), do mesmo preceito acrescenta incumbir ao Estado «a fixação, a nível nacional, dos limites da duração do trabalho». Trata‑se de preocupações que acompanham o Direito do Trabalho desde o seu nascimento: limitar o tempo de trabalho, proteger o equilíbrio físico e psíquico do trabalhador, tutelar a sua saúde, garantir períodos de repouso para este, salvaguardar a sua autodisponibilidade, assegurar a conciliação entre o trabalho e a vida pessoal e familiar, enfim, criar e preservar a própria noção de tempo livre, de tempos de não trabalho durante a vigência do contrato que não se reduzam aos períodos indispensáveis ao sono reparador.

Nesta matéria, a lei assenta no binómio tempo de trabalho/período de descanso, sendo certo que o período de descanso recortado negativamente pela lei e consistindo, nos termos do art. 199.º do Código do Trabalho (CT), em todo aquele que não seja tempo de trabalho. O trabalhador tem como que “duas vidas”, a vida no trabalho e a vida fora do trabalho, vale dizer, uma vida profissional em que se encontra numa situação de heterodisponibilidade e uma vida extraprofissional em que recupera a sua autodisponibilidade. E por isso mesmo, aliás, para muitas pessoas, a “verdadeira vida”, aquela que merece ser vivida, só começa quando a jornada de trabalho acaba e quando, finalmente, elas recuperam a sua liberdade.

É certo que aquela repartição dicotómica, aquela lógica binária tempo de trabalho/período de descanso, nunca foi linear. Trabalhadores há, por exemplo, que estão isentos de horário de trabalho, o que significa que não dispõem das tradicionais balizas limitadoras da situação de heterodisponibilidade representadas pela figura do horário de trabalho. Por outro lado, a lei sempre permitiu que, verificando-se determinadas circunstâncias (casos de força maior, acréscimos eventuais e transitórios de trabalho, etc.), a entidade empregadora pudesse ir além do horário de trabalho, pudesse afastar-se do programa contratual, ordenando ao trabalhador a prestação de trabalho extraordinário ou suplementar. Ainda assim, era de exceções que aqui se cuidava: nem todos os trabalhadores, mas apenas aqueles que exercem certo tipo de funções (de administração ou direção, de confiança, exercidas fora do estabelecimento, etc.), podem ser isentos de horário de trabalho, se nisso acordarem; e o recurso ao trabalho suplementar apenas é lícito quando se verificarem certos requisitos de necessidade ou indispensabilidade na esfera da empresa, sendo que o trabalhador poderá desobrigar-se da respetiva prestação se invocar e provar motivos atendíveis para a sua dispensa.

No essencial, aquele modelo binário era válido: por via do contrato de trabalho, o trabalhador abdicava de uma parte da sua liberdade, perdia a sua autodisponibilidade, ao subordinar-se a outrem; mas isso, em regra, apenas no tempo e no local de trabalho, pois, fora do espaço-tempo empresarial, o trabalhador passava para segundo plano, quase desaparecia, volvendo-se em pessoa e cidadão, assim recuperando a liberdade alienada ─ isto, claro, até ao início de nova jornada de trabalho. Lá, na empresa, no seu horário, cumprindo a jornada, o trabalhador reencontrava o trabalho dependente, colocando a sua autodisponibilidade entre parêntesis, a troco de um salário. 

2. O desafio das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação

Sucede, porém, que, nos últimos anos, com o advento e com o incremento das NTIC (Novas Tecnologias de Informação e Comunicação), surgiu um novo e complexo desafio para o Direito do Trabalho, dado que as NTIC possibilitam que o trabalho acompanhe o trabalhador fora do espaço/tempo profissional, invadindo o seu tempo de (suposta) autodisponibilidade. São de todos conhecidas as impressionantes mudanças registadas na nossa forma de viver, de comunicar e de trabalhar, resultantes da informatização, da internet, do e-mail, das redes sociais, dos telemóveis, dos computadores… E um dos principais efeitos destes fenómenos consiste, sem dúvida, na diluição das tradicionais fronteiras entre vida profissional e vida pessoal, sobretudo no âmbito das atividades de cariz intelectual. Agora, em muitos casos, o trabalho (e, por via disso, o empregador) pode facilmente acompanhar o trabalhador, seja quando for e onde quer que este se encontre. Agora, o modelo é o de um trabalhador conectado e disponível 24 sobre 24 horas, pois a tecnologia permite a conexão por tempo integral (hiperconexão), potenciando situações de quase escravização do trabalhador ― a escravatura, diz-se, do homo connectus, visto, amiúde, como “colaborador” de quem não se espera outra coisa senão dedicação permanente e ilimitada.

Trata-se de uma cultura empresarial que tem de ser combatida[1]. Ou seja, a cultura empresarial que se gerou, de disponibilidade permanente dos trabalhadores, tem de ser contrariada por uma contracultura que ao Direito do Trabalho cabe construir. A ideia de desconexão profissional tem de ser afirmada, o direito do trabalhador a desligar, no seu período de descanso, tem de ser reafirmado.

O grande problema, para a maioria dos trabalhadores, é, contudo, este: como exercer, realmente, esse “direito à desconexão”, num tempo de concorrência global e desenfreada? Como ousar desligar e desconectar-se, como premir o botão off, numa época marcada pelo excesso de trabalho de alguns, mas também pelo desemprego de muitos? Neste contexto, ousar desconectar-se pode implicar, a curto ou médio prazo, ser desligado da empresa… E o receio da perda do emprego, a luta infrene para escapar às agruras do desemprego, ou, mesmo que em moldes menos drásticos, a simples preocupação em assegurar que os canais permanecem abertos para uma eventual progressão na carreira (promoções, por exemplo), tudo isto redunda em que o trabalhador, mesmo se fatigado, desgastado, perturbado, contrariado, devassado, no limiar do esgotamento, sem tempo para si e para os seus, não ousará desconectar-se. Esse é, simplesmente, um luxo a que ele não poderá dar-se. Ele poderá sonhar com isso, poderá fantasiar com isso, mas, em regra, tudo não passará do plano dos devaneios, pois ele não ousará fazer isso…

3. Direito à desconexão profissional?

Tenho, pelo exposto, algumas dúvidas em relação à conveniência de reconhecer ao trabalhador, por via legal, um “novo” direito, uma “nova” faculdade, o chamado “direito à desconexão profissional”. A desconexão, creio, não é propriamente um direito. O direito aqui em causa é, sim, tal como se consagra na CRP, o direito ao repouso e aos lazeres, ao descanso semanal, a férias periódicas, à limitação da jornada de trabalho… Mais do que como direito, a desconexão surge, assim, como o efeito natural da limitação da jornada de trabalho, isto é, do balizamento do tempo de trabalho através da definição do horário de trabalho de cada trabalhador. O horário de trabalho delimita o período normal de trabalho diário e semanal. Já se disse, jornada de trabalho é tempo de vida, ao trabalhar o sujeito entrega tempo de vida ao empregador, que lhe toma esse tempo em troca de dinheiro. Mas esse tempo é limitado (período normal de trabalho) e delimitado (horário de trabalho) pelas normas jurídico-laborais. Fora do tempo de trabalho estaremos, então, em período de descanso, isto é, período de lazer, período de autodisponibilidade, tempo de vida do trabalhador, tempo que este não alienou nem entregou à empresa para a qual trabalha.

Diríamos, portanto, que o período de descanso equivale, deve equivaler, a um período de do not disturb patronal! Um período, pois, em que o trabalhador deve ser deixado em paz pelo empregador, para descansar ou para se dedicar, livremente, a outras dimensões da sua vida. Não é, pois, sobre o trabalhador que recai o ónus de colocar o dístico do not disturb! na porta do seu quarto, assim exercendo um qualquer “direito à desconexão profissional”. Pelo contrário, a obrigação de não perturbar, de não incomodar, recai sobre a empresa. O trabalhador goza, assim, de um “direito à não conexão” (dir-se-ia: de um right to be let alone) por parte da empresa, de um do not disturb! resultante do contrato de trabalho e da norma laboral aplicável[2].

Em certo sentido, o tempo de desconexão profissional surge, pois, como uma versão virtual do período de descanso, típica do mundo digital em que vivemos, como o direito à vida privada do século XXI. O desafio da conexão permanente é novo, não se colocava anos atrás. Justifica-se, por isso, que o Direito do Trabalho tente responder a esse desafio, tente enquadrar e regular o fenómeno. A ideia-chave, porém, deverá aqui consistir, não tanto em conceder ao trabalhador um suposto novo direito ─ o direito à desconexão profissional, que, se e quando exercido pelo seu titular, fará dele, aos olhos do empregador, um mau profissional ─, mas antes em disciplinar o comportamento invasivo da entidade empregadora, em sublinhar que esta, em princípio, deverá abster-se de estabelecer conexão com o trabalhador quando este se encontra a gozar o seu período de descanso.

Neste sentido, creio que é mais de um “dever de não conexão patronal” do que de um “direito à desconexão do trabalhador” que, in casu, se trata. É que, de certa forma, falar num “direito à desconexão” parece pressupor que a entidade empregadora teria, prima facie, um direito à conexão. Ora, resulta da própria ideia de contrato de trabalho e da liberdade que este pressupõe, bem como das normas laborais sobre limitação e organização do tempo de trabalho, justamente, a ideia oposta: fora do tempo de trabalho, no período de descanso, impõe-se ao empregador a não-conexão, um do not disturb!, uma trégua na conectividade que permita ao trabalhador repousar e… viver a vida, viver a sua vida[3].

4. A Lei n.º 83/2021, o dever de abstenção de contacto e a DGAEP

A matéria veio a merecer a atenção do legislador recentemente, através da Lei n.º 83/2021, de 6 de dezembro, diploma que se propôs, sobretudo, modificar o regime jurídico do teletrabalho. O legislador aproveitou o ensejo para aditar um novo artigo ao CT, o art. 199.º-A, uma norma de alcance geral, que não se cinge ao fenómeno do teletrabalho, cujo n.º 1 é do seguinte teor: «O empregador tem o dever de se abster de contactar o trabalhador no período de descanso, ressalvadas as situações de força maior».

A norma ora publicada adota a perspetiva correta, não se limitando a enunciar um truísmo, isto é, a reconhecer ou conferir um “direito à desconexão” ao trabalhador, mas corrigindo a mira, vale dizer, afirmando, de forma expressa, o dever patronal de se abster de contactar o trabalhador, no período de descanso deste. Contudo, segundo uma nota interpretativa da DGAEP – Direção-Geral da Administração e do Emprego Público, ao ser colocada perante a questão «Verifica-se incumprimento do dever de abstenção, no caso de empregador que envie um email ao trabalhador durante o seu período de descanso?», em lugar de dar a resposta que parece óbvia, atenta a clareza da lei ─ a de que sim, se verifica tal incumprimento, salvo se se verificarem situações de força maior que legitimem tal contacto ─, a DGAEP sustenta, estranhamente, que «não estaremos perante uma situação de incumprimento do dever de abstenção, no caso de um empregador que envie um email ao trabalhador durante o período de descanso deste, em que não seja solicitada resposta ou se determine qualquer outra ação imediata por parte do trabalhador»[4].

Não posso subscrever esta afirmação da DGAEP, que me parece contrariar tanto a letra como a teleologia da lei. O dever de abstenção de contacto implica, repete-se, um autêntico do not disturb! endereçado ao empregador, pelo que o facto de a mensagem enviada não solicitar resposta nem determinar uma ação imediata por parte do trabalhador não descaracteriza a atuação patronal como violação desse dever de abstenção. A norma legal em apreço proíbe contactar, não proíbe perguntar! A norma legal proibitiva impõe uma abstenção de contacto, não uma abstenção de emitir ordens ou de formular questões! Se o trabalhador continuar a receber mensagens no seu período de descanso, ele irá sentir-se obrigado a lê-las, irá pensar no seu conteúdo, pensar no que fará quando regressar ao emprego, como responderá ou agirá então, etc., isto é, ele irá ser perturbado por elas, ele irá continuar a estar “com a cabeça no trabalho” durante o seu período de descanso e não, como a lei pretende, desconectado.

A nota da DGAEP sugere até que poderão ser dadas ordens nesse email enviado ao trabalhador, desde que determinem uma ação mediata (e não imediata) por parte deste. Como quem diz: aí vai um email, com vários relatórios em anexo, em pleno sábado, com imenso trabalho para fazer, mas não para fazer hoje nem amanhã (não se preocupe com isso, nem sequer pense nisso, relaxe, goze o seu fim de semana), só para tratar a partir de segunda-feira… Não custa ver no que isto redundaria: numa rotunda violação da letra e num claro esvaziamento dos objetivos subjacentes à proibição legal de contacto instituída pelo art. 199.º-A do CT. Sejamos francos: enviar um email ao trabalhador não é contactar o trabalhador? Não vislumbro como o não seja.

De resto, se tais ordens determinarem uma ação imediata por parte do trabalhador, parece difícil que não caiamos no âmbito do recurso ao trabalho suplementar por banda do empregador, com as respetivas consequências, máxime remuneratórias, para o trabalhador. O problema da desconexão é diferente, é outro, resulta de, amiúde, o contacto patronal não se traduzir numa qualquer ordem para trabalhar, mas representar uma pressão psicológica para que o trabalhador acabe mesmo por trabalhar naquele que seria o seu período de descanso[5], até para não ficar mal visto perante os demais colegas e as chefias quando, mais tarde, comparecer na empresa para retomar a sua atividade. 

É caso para dizer: tomemos a sério o dever de abstenção de contacto instituído pela lei. Este é um dever que visa combater a cultura de disponibilidade permanente que se instalou no mundo empresarial, é um dever que tenta preservar o descanso e o tempo de vida livre do trabalhador, que tenta salvaguardar a sua saúde e evitar o burnout resultante da conectividade permanente. Salvo o devido respeito, esta orientação da DGAEP faz descaso de tudo isto, permitindo, afinal, aquilo que a lei proíbe ─ isto é, que a entidade empregadora continue a contactar o trabalhador, via NTIC, no seu período de descanso, contanto que tenha o cuidado de não lhe dar ordens de execução imediata nem lhe fazer perguntas. Discordo.


[1] Isso mesmo se reconhece no Acordo-Quadro sobre a Digitalização, celebrado pelos parceiros sociais europeus em junho de 2020 ─ European Social Partners Framework Agreement on Digitalisation, de 22 de junho de 2020, p. 10.

[2] Pode haver, claro, situações pontuais, de emergência, casos de força maior, etc., em que esse tempo de desconexão profissional poderá ser sacrificado. Mas estas terão de ser sempre situações excecionais e devidamente justificadas, nunca a rotineira prática da empresa.  

[3] Particular atenção merece, em toda esta matéria, a recente Resolução do Parlamento Europeu, de 21 de janeiro de 2021, contendo recomendações à Comissão sobre o direito a desligar (2019/2181(INL)), na qual o Parlamento Europeu, entre muitas outras relevantes considerações, afirma, sem tibieza, que o direito a desligar é um direito fundamental da nova organização do trabalho na nova era digital.

[4] www.dgaep.gov.pt, FAQ – Teletrabalho, n.º 30, atualizado em 11/02/2022

[5] E, se não trabalhar, ele não deixará, em regra, de ficar preocupado com isso e, quiçá, de “consciência pesada” por não o ter feito, o que o impedirá, outrossim, de fruir verdadeiramente do seu período de descanso.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Regente da Unidade Curricular de Direito do Trabalho na FDUC.