Mariana Silva Cunha

Licenciada pela Universidade Católica Portuguesa do Porto (2016).

Mestre em Direito Criminal pela Universidade Católica Portuguesa do Porto (2020).

Advogada inscrita na Ordem dos Advogados pelo Conselho Regional do Porto (2020).

Atualmente exerce Advocacia em prática individual.

Preferência pelas áreas do Direito Penal e Direito Processual Penal.


A secção Novos Talentos do Observatório Almedina é dedicada à divulgação de artigos de jovens talentos do mundo jurídico. O presente artigo foi baseado na tese preparada pela autora no âmbito do Mestrado em Direito Criminal da Faculdade de Direito | Escola do Porto – Universidade Católica. “Criminalização da Recusa de Vacinação a Filho Menor” (link para tese)


O fenómeno em torno da vacinação tem sido um tema predominantemente discutido nos últimos anos. Não obstante os inúmeros estudos que comprovam a eficácia e segurança das vacinas, tem-se observado um crescente número de campanhas “antivacinas” (os chamados os movimentos “antivaxxers”), o que provocou o aumento exponencial dos índices de hesitação vacinal (a relutância ou recusa em aderir às vacinas disponíveis) em todo o mundo. Com o aparecimento do coranavírus SARS-CoV-2, responsável pela atual situação pandémica por Covid-19, a polémica em torno da vacinação ganhou contornos inéditos, tendo sido suscitadas inúmeras questões sobre a legalidade das medidas restritivas implementadas pelos governos, cujo intuito é o de mitigar a propagação e contágio pelo vírus à escala global. Por conseguinte, a discussão sobre a necessidade de se tornar as vacinas obrigatórias ganhou particular enfâse no âmbito desta pandemia, sendo certo que, em matéria legislativa, a hipótese de punir a opção pela não vacinação é amplamente controversa.  

Antes de mais, há que saber o seguinte: existe, na nossa lei penal, alguma norma que preveja a aplicação de uma pena a um adulto que se recuse a ser vacinado? E se essa recusa se estender a um filho menor que esteja a seu cargo, e o qual não dispõe de capacidade para consentir, poderá esse progenitor ser responsabilizado criminalmente? A resposta, a ambas as perguntas, é não. Efetivamente, a recusa em vacinar não encontra qualquer tipificação legal passível de desencadear procedimento criminal contra o sujeito que prima por essa conduta.

Significa isto, então, que as vacinas não são obrigatórias em Portugal? A resposta é dúbia. Pese embora as instâncias europeias de Saúde coloquem Portugal na lista de países em que o PNV é apenas “recomendável”, a verdade é que desde 1962 vigoram ainda duas vacinas com caráter obrigatório, introduzidas pelo DL n.º 44.198, de 20 de fevereiro de 1962: a da difteria e do tétano. Mas até que ponto essa obrigatoriedade é “real”? É que, para além de não existirem, atualmente, casos registados de contágio por difteria, e apenas muitíssimos poucos casos de morte por tétano, a verdade é que a não-vacinação não pode servir de argumento para a recusa de matrícula ou frequência dos menores nos estabelecimentos públicos de ensino, na medida em que tal violaria de forma manifesta o direito constitucionalmente garantido à educação, e que encontra a sua tutela no art. 74.º da CRP. Subentende-se, pois, que as consequências da violação dessa obrigação (em vacinar) não são nenhumas, sendo apenas uma imposição que “não vai para além do papel”.  

Poderemos então concluir que, no ordenamento jurídico português, não há “espaço” para a criminalização da recusa em aderir às vacinas? E verificando-se que a criminalização dessa recusa é manifestamente excessiva, será descabido ponderar-se a aplicação de sanções de natureza administrativa a esses casos? Haverá sempre possibilidade para qualquer um dos casos, embora a responsabilização pela via criminal seja, naturalmente, a opção com maiores dificuldades na sua aplicação.

Seguindo, em primeiro lugar, a hipótese da criminalização, há que atender a dois aspetos essenciais: por um lado, saber qual o bem jurídico que se pretende proteger com a incriminação da recusa da vacinação e, por outro, se esse bem jurídico não pode ser eficazmente protegido através de outras medidas jurídicas que não as penais.

Parece evidente que a criminalização da recusa sempre terá como escopo primário a proteção dos bens jurídicos vida, saúde e integridade física, visando proteger, no imediato, os indivíduos não vacinados, e no mediato, quaisquer outros indivíduos (adultos ou crianças) suscetíveis de contraírem doenças evitáveis por vacinação. Parece igualmente evidente que esses bens jurídicos constituem valores fundamentais e essenciais inerentes à vida humana, sendo dotados da chamada “dignidade penal”, o que significa que a violação desses bens atinge aspetos essenciais da vida em sociedade e atingem elevada gravidade ética.[1]

O contratempo que aqui se coloca tem como pressuposto a dificuldade de harmonização dos direitos ou valores aqui em causa – nomeadamente, se com a incriminação da recusa pretendemos proteger o direito à integridade física e à saúde pública e individual, não poderemos descurar do facto de que, com essa incriminação, estaremos simultaneamente a limitar o direito à integridade física e o direito de liberdade de escolha (tanto do adulto como da criança, que na sua maioridade se poderá insurgir contra a vacinação). Este problema poderá, eventualmente, ser ultrapassado – muito embora esta solução esteja longe de ser consensual. Se entendermos que estão em confronto direitos com diferente valor constitucional, como sejam o direito à vida, integridade física e saúde individual e pública vs. o direito de liberdade de escolha, poder-se-á considerar legítima a restrição deste último em detrimento dos primeiros (os quais, diga-se, possuem valor constitucionalmente mais elevado). Assim o permite a disposição legal do art. 18.º da CRP.

O aspeto mais problemático da criminalização relaciona-se com um princípio que não se poderá deixar de atender, e sem o qual não é possível a sua legitimação: o princípio da subsidiariedade do Direito Penal. Quer isto dizer que não basta para a qualificação de um bem como bem jurídico-penal, que tenha a “dignidade penal”. É impreterível que a tutela dos bens fundamentais, dignos de proteção jurídica, só possa ser conseguida através do recurso às penas criminais.[2] A isto acresce que quaisquer outras sanções jurídicas terão de se revelar ineficazes ou insuficientes para a tutela desses bens. Deste modo, será a criminalização da recusa da vacinação a única via para tutelar mais eficazmente aqueles direitos basilares? A resposta não é, de todo, linear.

É nesta medida que os ilícitos contraordenacionais surgem como uma possível alternativa à aplicação do Direito Penal, por forma a evitar uma eventual situação de excesso punitivo. Veja-se o exemplo do que tem sucedido durante a pandemia. Se, por um lado, a vacina contra a Covid-19 não foi tornada obrigatória, é certo que, por outro, foram implementadas medidas de caráter administrativo que, de forma indireta, vieram “pressionar” a adesão da população às vacinas. É o caso da obrigatoriedade de apresentação de certificado digital para a entrada em espaços de restauração, eventos culturais ou desportivos, aeroportos e demais locais com elevada afluência de pessoas. Não descurando do facto de que, em alternativa ao certificado digital de vacinação, é possível apresentar um certificado de teste negativo para a frequência daqueles espaços, a verdade é que a realização de testes rápidos para o efeito implica não só uma maior taxa de esforço, como também custos mais elevados para a pessoa interessada, o que, na maioria dos casos, leva a que a população acabe por “sucumbir” à toma da vacina. De todo o modo, com a entrada do DL n.º 56-C/2021, de 9 de julho, foram estabelecidas as sanções contraordenacionais para quem se recuse a apresentar o certificado digital de vacinação ou teste negativo nos espaços em que é exigida a sua apresentação, fixando-se aplicação de coimas de valores entre os 100 e 500 euros.

Fica a pergunta: será a aplicação de uma sanção, como a coima, uma medida eficazmente dissuasora da prática daquele ilícito? E poderá essa sanção servir eficazmente o propósito de incentivar a comunidade à adesão vacinal? Veja-se o que sucedeu na Áustria, o primeiro país da UE a decretar a vacinação obrigatória contra a Covid-19 para todos os adultos, e que estabeleceu a aplicação de coimas de montante avultado em caso de incumprimento. Segundo dados recentes, a medida do Governo teve efeitos contrários, uma vez que os índices de vacinação baixaram consideravelmente após a implementação desta medida.[3]

Pese embora não seja de refutar que a aplicação de uma sanção contraordenacional se possa revelar eficaz para a punição da recusa em vacinar, não é seguro afirmar que tal aconteça. Neste sentido, é mais provável que a pena detentiva não só represente um sacrifício ainda maior, como o próprio facto de a conduta ser considerada crime, possa desencadear um efeito preventivo mais forte.[4]

Admitindo que seria possível tipificar, no nosso ordenamento jurídico, o crime da recusa em vacinar, a solução mais plausível seria incluir esse crime no catálogo dos crimes de perigo abstrato. Com efeito, nos crimes de perigo abstrato, é a própria ação em si que é considerada perigosa, não sendo exigível que essa ação (ou omissão) venha a produzir um dano concreto. O que se pretende alcançar através da incriminação de uma conduta abstratamente perigosa, é prevenir ou evitar um resultado de dano.[5] Senão veja-se: no caso em que um adulto recuse a administração da vacina – seja a si próprio, seja a um filho menor a seu cargo -, pode considerar-se que essa recusa representa um perigo ou ameaça potencial tanto para a sua própria saúde, como para a dos outros. Ou seja, a possibilidade de contágio por esse adulto ou criança, apesar de meramente hipotética, existe.

Estabeleçamos o paralelismo com o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto nos termos do art. 292.º do Código Penal. Este crime é abstrato, e a  consumação típica do seu ilícito criminal “dá-se com o facto de a mera conduta ou atividade desenvolvida pelo agente colocar abstratamente em perigo o bem jurídico ou bens jurídicos protegidos, que neste caso são a vida, a integridade física e o património de terceiros”.[6] Do mesmo modo, o ato de recusa em ser-se imunizado através das vacinas, ainda que abstratamente, é suscetível de criar um perigo para a vida e saúde do próprio e de terceiros. Há que ter em conta, no entanto, de que não basta que se verifique a suscetibilidade ou potencialidade do perigo, sendo necessário aferir da probabilidade da sua ocorrência.

De facto, enquanto que num crime como a condução de veículo em estado de embriaguez existe uma probabilidade consistente da ocorrência de um dano, no caso de recusa em vacinar, essa probabilidade (ainda que existente) poderá já não ser tão elevada – principalmente num país como Portugal, em que as taxas de cobertura vacinal estão entre as mais elevadas do mundo e, como tal, os indivíduos não vacinados beneficiam da imunidade de grupo.

Sucede ainda que, no nosso ordenamento jurídico, a tipificação de crimes de perigo abstrato não é comum, uma vez que se encontra limitada à apreciação de uma série de pressupostos no âmbito constitucional. A esse propósito, têm sido levantadas diversas questões em relação à sua constitucionalidade, existindo diversas valorações doutrinais e jurisprudenciais acerca deste tema. A legitimidade constitucional tem sido suscitada pelo facto de os crimes de perigo abstrato poderem constituir uma tutela demasiado avançada de um bem jurídico. A doutrina maioritária e Tribunal Constitucional pronunciam-se, todavia, pela sua não inconstitucionalidade quando visarem a proteção de bens jurídicos de grande importância, quando for possível identificar claramente o bem jurídico tutelado e a conduta típica for descrita de uma forma tanto quanto possível e minuciosa. Dúvidas não há sobre a importância dos bens jurídicos em casa e da sua “dignidade penal”. Porém, a questão torna-se efetivamente mais complexa quanto à descrição da conduta típica. Seria legítimo, por exemplo, punir a recusa por questões ideológicas ou religiosas, mas considerar causa de exclusão de ilicitude a recusa fundada em questões médicas? E que tipo de recusa seria punível? A recusa relativa à toma de todas as vacinas disponíveis, ou somente relativamente a algumas?

Todas estas questões são efetivamente complexas e de difícil resposta. Muito embora se tenha vindo a debater cada vez mais sobre a necessidade de tornar obrigatória a vacinação, é inegável de que estamos perante uma matéria muito sensível e que coloca dilemas éticos em várias vertentes. Ainda que se possa admitir que, no nosso ordenamento jurídico, existe uma mera possibilidade para a punição da recusa em aderir à vacinação, há que fazer uma ponderação cuidada dos critérios que legitimam a criminalização dessa conduta, por forma a se evitar, neste âmbito, uma qualquer legislação “leviana” e à margem da Constituição.


[1] CARVALHO, Américo Taipa. (2008). Direito Penal – Parte Geral, 2.ª ed. Coimbra Editora. Coimbra, pp. 48-51.

[2] DIAS, Figueiredo. (2011). Direito Penal – Parte Geral, Tomo 1, 2.ª ed., Coimbra Editora. Coimbra, p. 128.

[3] Link disponível para consulta em: https://cnnportugal.iol.pt/covid-19/vacinacao-obrigatoria-na-austria-com-efeitos-contrarios-autoridades-dizem-que-objetivo-nao-foi-cumprido/20720217/620e84330cf21a10a41fea7a, atualizado em 17/02/2022.

[4] CUNHA, Conceição. (1995). Constituição e Crime: Uma Perspectiva da Criminalização e da Descriminalização, col. “Estudos e Monografias”, Universidade Católica Portuguesa Editora, p. 357.

[5] COSTA, Faria. (1992). O Perigo em Direito Penal, Coimbra Editora. Coimbra, pp. 574-587.

[6] Ver Ac. do TRP de 26/10/2017, proc. n.º 102/17.4PTPRT.P1.