Escritor e tradutor de línguas nórdicas, João Reis editou recentemente pela Minotauro o seu último romance, e esse foi o mote para uma entrevista com João Moita, editor no Grupo Almedina.


Se com Pétalas ou Ossos é a história de um escritor ocioso que parece bastante recetivo a qualquer distração que o desvie dos seus intentos, como se o ofício se lhe tivesse tornado penoso. Perpassa neste livro alguma espécie de desencanto com a literatura por parte do autor?

Há um enorme desencanto do autor, sim. Talvez não tanto com a literatura, mas sobretudo com tudo o que envolve a publicação de literatura ou, digamos, de livros. Porque a literatura nunca poderá desencantar: é o que é, e quem a valoriza dificilmente poderá deixar de o fazer. É uma das maiores criações da mente humana. Mas é deveras desmotivador escrever num mundo tecnocrata-liberal, onde a literatura não dá dinheiro e é lida e apreciada por poucos, e num meio literário pequeno e bafiento, onde por vezes a literatura parece ser o menos importante. 

Rodrigo, o narrador, parece deixar-se arrastar pelos acontecimentos laterais, aproveitando todos os fait divers para se ir adiando constantemente, enquanto escritor, enquanto namorado, possivelmente enquanto pai. Esta falta de propósito e de projeto é algo geracional?

Se fizermos uma análise sociológica, é possível que seja um fenómeno geracional. Deparámos com alterações económicas, estruturais e ambientais que terão levado a esse adiamento de uma certa vida ou modo de vida, mas, neste caso, trata-se, acima de tudo, de uma posição do próprio Rodrigo. Uma visão do mundo e um adiamento da existência muito pessoais, marcados por uma desilusão e um cansaço que são só seus. 

Apesar de se mostrar familiarizado com os códigos de conduta e normas sociais, Rodrigo não parece possuir um sentido moral muito apurado, raramente experimentando sentimentos de culpa. Como devemos ler este divórcio entre um saber teórico ineficaz e uma realidade a ele impermeável?

Após a minha passagem por um curso superior de Filosofia e extensas leituras nesta área, concluí, há vários anos, que o domínio da questão teórica da ética não a transmite necessariamente à prática da pessoa que a domina. Acontece amiúde o inverso: quanto mais nos embrenhamos no conhecimento teórico da ética, menos ética exercemos na prática. Portanto, Rodrigo sabe que procede mal em termos de normas sociais ou éticas, mas não evita fazê-lo. Aliás, nem sequer tenta evitá-lo, preferindo, ao invés, entregar-se ao hedonismo ou à pura sobrevivência, usando para isso os meios à sua disposição. É, em suma, a posição de um cínico que já não espera muito da vida. 

O meio literário português é tratado neste livro com alguma ironia. A pressão dos editores para a conclusão do livro por parte do narrador é inversamente proporcional ao interesse que demonstram pela obra enquanto objeto de fruição artística. O meio editorial tornou-se demasiado mercantilista?

Sim, sem dúvida. O meio editorial depende de editoras privadas que, como é óbvio, se inserem num mercado capitalista e que têm como objetivo criar lucro. Salvo algumas exceções, os livros são produzidos como sapatos ou camisas, e o seu valor determinado apenas com base no seu sucesso comercial. Daí que se abandonem certos autores menos populares. 

O livro passa-se na Coreia do Sul, para onde Rodrigo viajou, depois de ter sido selecionado para uma residência de escritores, a fim de escrever o seu próximo romance. Portugal tinha-se tornado demasiado asfixiante? A rotina asfixia o escritor?

A rotina asfixia a escrita e a produção artística, creio. Não sempre, como é evidente. Por vezes, é mais fácil criar em ambientes que conhecemos. Mas a mudança de ares proporciona um contacto com novas realidades e oportunidades de efabulação. E, claro, há sempre a vantagem de abandonar o trabalho a tempo inteiro e de ter a hipótese de apenas escrever durante a residência, o que não é de somenos. No fundo, a vida asfixia os humanos, sejam eles autores ou não. 

Se com Pétalas ou Ossos é o teu quinto romance. Ao longo destes anos, foi ficando mais fácil ou mais difícil escrever?

Mais difícil, sem dúvida. Embora não possa afirmar que diminuí a produção; por exemplo, no ano passado escrevi dois romances: um em português, o outro em inglês. Mas há uma tendência crescente para a escrita se tornar mais lenta, ainda menos prazerosa, mais difícil por comparação constante com a obra já publicada. Quero sempre escrever melhor, aperfeiçoar o estilo segundo os meus padrões de qualidade. E isso torna-se ainda mais complicado quando sei que estou sujeito, como qualquer autor, ao escrutínio do público e do meio editorial. E vou ficando mais velho, a energia rareia. 

Nasceste em 1985, o ano em que foi assinado o tratado de adesão de Portugal à CEE, tiveste formação superior, viajaste pelo mundo, aprendeste várias línguas, sempre viveste num mundo global. Como escritor, vês-te inserido no continuum da tradição literária portuguesa ou esse é um conceito caduco?

Sou português e, como tal, serei sempre um escritor português. Mas, embora não renegue a tradição literária portuguesa, nem me afirme superior a ela, não me revejo em termos de influências nessa mesma tradição. Nem em estilo, nem em temas. Sou um escritor europeu, acima de tudo. Revejo-me no continuum da tradição literária europeia, tanto moderna como pós-moderna.

Além de uma das vozes mais inconfundíveis da ficção nacional, és tradutor a tempo inteiro. As duas asserções poderão estar ligadas por alguma relação causal? Entendes que o trabalho de tradução te torna melhor escritor?

Quero acreditar que sim, embora a maioria das obras que traduza não me pareça, à primeira vista, contribuir diretamente para o meu aperfeiçoamento enquanto escritor. Porém, tenho de concluir que a tradução me torna melhor escritor, sim, quanto mais não seja porque me leva a refletir constantemente sobre a forma como a escrita se molda conforme língua do autor e em todas as potencialidades do português. Além de ter sido influenciado por um ou dois autores que traduzi.