Paulo Ferreira da Cunha

Doutor em Direito pelas Universidade de Paris e Coimbra, agregado (Universidade do Minho), pós-doutor (Universidade de São Paulo) e Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, é Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.

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Cuidados e caldos de galinha

nunca fizeram mal a ninguém

Provérbio popular

Estado de emergência nunca

suspendeu a Constituição.

Provérbio constitucional

Um dia, um Prof. estrangeiro contou-nos que fora convidado para empresas de sucesso e até para o governo, mas recusara: mais se deleitava no fascínio dos alunos e na fama das publicações.

Grandes especialistas, alguns puxando por galões académicos, vêm agora a público para revelar a “verdade” sobre a pandemia. Podem ser agora os seus 5 minutos de fama.

O cidadão deve desconfiar de revelações bombásticas em ciência, como o faria com previsões de qualquer guru esotérico. Sugerimos que, pelo menos como dúvida metódica, não acredite nas teorias da conspiração, agora embaladas com linguagem científica e até títulos académicos. Algumas “revelações”, a circular como pretensas verdades retumbantes, lembram perigosamente os desvendamentos por iluminados de seitas, ou gurus em nome individual. 

Na vozearia imperante, qual a receita para produzir maior impacto? Nada sabendo de epidemiologia, infetologia, medicina em geral, estatística, cálculo de probabilidades, pode-se construir discurso mentiroso, mas eficaz: com manipulação de estatísticas (mesmo sem dados falsos!) e uma tese simples e diferente do que é em geral acreditado.

Se o fito for apenas audiência, ser-se falado, dir-se-á que os outros estariam a mentir, teriam interesse em esconder a verdade, e que o desvendador representa a ciência pura, desinteressada, e irá revelar a verdade. Esta, para ter impacto, não pode ser o que toda a gente sabe: relativa opacidade dos números, sua suscetibilidade de manipulação, a grande incógnita sobre o significado de um dia baixarem os óbitos e no dia seguinte poderem disparar. Todas as reticências e reconhecimento da falibilidade humana não vendem, não entusiasmam. É preciso (como nas práticas “mágicas”) ter total autoconfiança. Apresentar-se como dono da verdade.

Os candidatos à fama científica à maneira dos gurus esotéricos têm uma receita simples: exagero, revelações contra o mainstream, teoria da conspiração.

Numa situação em que, justamente, as pessoas andam preocupadas e respeitam o confinamento, há moderado alarme social. Não é pânico ou alarmismo. Mas não é inconsciência. Os Portugueses, em geral, quando começaram a aperceber-se do perigo, tomaram precauções. Parece que tem resultado.

Contudo, as opiniões que mais inflamarão almas simples, crédulas, já aborrecidas de estar em casa, serão as bombásticas. A mais suscetível de alcançar fama é, em países como o nosso, onde não há um poder a fazer a desvalorização da pandemia (como noutros), tratar a situação como uma gripezita, ou menos.

Amanhã, quando se virem pessoas na praia, aos magotes, talvez elas mostrem nos seus telemóveis vídeos como salvo-conduto para a irresponsabilidade. Presume-se que as discotecas não abrirão ainda. Se não, lá teríamos tal álibi.

Perante situação de perigo, dizer-se que é tudo invenção, conspiração, pode ter sucesso. Alguns difundirão essas teses por curiosidade, mas podem ter sucesso viral.

Atenção aos “atos falhados”! Por exemplo, se um texto que deveria ser estritamente científico repetidamente veicular críticas políticas contra os poderes que decretam estados de emergência (e denotando desconhecimento jurídico), tal poderá fazer suspeitar objetivos não científicos e será caso para investigar com acrescida desconfiança. O que alguns reterão será que os poderes teriam respondido mal (sabe-se lá com que intenção: remissão para intenções ocultas e perversas?) a uma gripezita, só uma gripezita.

Também o catastrofismo, sanitário ou económico, pode ser meio de procurar audiência. Em geral, profetas da desgraça acertam. Mesmo que se pinte o monstro com cores um pouco pesadas, o alívio relativo que possa vir a ocorrer desculpará o exagero.

Entre catastrofistas e desvalorizadores, à cautela, é melhor prepararmo-nos, com esperança e responsabilidade. Não será posição civicamente louvável dar palco e fama aos propagadores de teorias da conspiração desvalorizadores da dimensão e gravidade da pandemia.  Nada de limitação da liberdade de expressão; mas há inconveniência em ingénua propagação viral de ideias que a todos podem custar muito caro por levarem a baixar das defesas. “Cuidados e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém”. O descuido, o baixar as guardas, sim. Pode ser fatal.

Esse nosso colega nunca terá os 5 minutos de fama de um especialista médico ou matemático. Nunca os terá dessa forma “à maneira dos gurus”. É tranquilizador, porém, como podemos vê-lo a utilizar o confinamento para escrever mais uns livros, que não farão mal a ninguém e o encherão de vaidade quando, passada a pandemia, pelas medidas de contenção e pelos avanços reais de uma ciência que não busca o protagonismo, puder voltar a fazer a sua ronda das livrarias, e perguntar, como uma criança que espera um doce: “_ E o livro do professor Fulano? Têm?”.

“_ Sim, Sr. Prof. Fulano. Tem-se vendido como pãezinhos quentes” – responderá, faceto, o vendedor.

Lemos de soslaio o título: O Estado de Emergência não suspendeu nunca a Constituição.

Estavam os dois com máscara.