J.-M. Nobre Correia

J.-M. Nobre-Correia, mediólogo e politólogo, foi investigador, assistente e professor em Informação e Comunicação na Université Libre de Bruxelles (ULB) de 1970 a 2011, onde foi presidente do Departamento de Ciências da Informação e da Comunicação (1986-1989) e diretor do Observatoire des Médias en Europe (1993-2011). Paralelamente, foi professor convidado na Université Paris II (1996-2006), professor visitante na Universidade de Coimbra (1996-2001) e membro do conselho científico do Europäisches Medieninstitut, de Dusseldórfia (1995-2004).

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Os nossos jornais, sobretudo os audiovisuais, dão cada vez mais o sentimento de serem meros canais de assessorias…

“Oiçam nos autocarros, nos caminhos de ferro, na rua”. Mais: “deem-se bem conta da opinião”. Mas também: “estejam ao corrente de todas as descobertas, de todas as invenções, vulgarizem todas as coisas que se vão enterrando em pesadas revistas”. Assim mandava Moïse Polydore Millaud, criador da chamada “imprensa popular” em França, falando aos seus jornalistas. E graças nomeadamente a estas receitas, Le Petit Journal, que lançara em 1863, atingirá cerca de dois milhões de exemplares em 1895, sendo então o maior diário do mundo.

Nestes últimos meses, a atualidade em Portugal tem muitas vezes feito pensar em Millaud. Quando personalidades ao mais alto nível de uma certa direita radical europeia se reúnem em Fátima. Ou quando bispos opostos a Jorge Bergoglio [o papa Francisco], vindos de várias partes do mundo, se encontram em Sintra. Num e noutro casos nada se soube antes e praticamente nada se veio a saber depois. Acrescente-se o facto de os média descobrirem, longas semanas depois, que há portugueses a bordo de um navio ancorado nas águas do Japão por causa de coronavírus!…

Há pois que perguntar: por onde andam os jornalistas? Que sítios frequentam no dia a dia? Com que gente lidam habitualmente? Como é possível que, com tanta gente implicada na organização dos dois primeiros eventos (hotelaria, restauração, transportes, forças de segurança…), nada tenha chegado ao conhecimento de jornalistas? E como é imaginável que as reações de familiares e conterrâneos dos portugueses em quarentena no navio não tenham chegado a ouvidos de jornalistas (quando estes, sobretudo os de televisão, adoram este tipo de situações, como o estão tristemente a mostrar)?…

A triste verdade salta aos olhos: a grande maioria dos jornalistas deixou de ir “para o terreno”. Deixou de andar pelas ruas e estradas deste país, de frequentar as gentes deste povo, para ver e ouvir o que se passa, para saber o que lhes interessa ou as preocupa na vida quotidiana. Vive sobretudo com colegas, amigos e companheiros em restaurantes, cafés e bares que fazem parte da rotina diária. Frequenta os habituais sítios de conferências de imprensa, lançamentos, inaugurações, estreias e receções de toda a ordem.

Diga-se em abono da verdade: muitos jornalistas saem cada vez menos das redações. Até porque são poucos e dispõem de escasso tempo para a fabricação diária a contrarrelógio dos jornais. Mas também porque a “paparoca” chega quotidianamente em grandes doses aos seus computadores: comunicados, grafismos, gravações de som ou de imagem… E neste fornecimento de peças prontas-a-publicar, são evidentemente as instituições e empresas que têm maior capacidade de produção.

Em audiovisual, quando “vão para o terreno”, a maior parte das vezes os jornalistas contentar-se-ão com “diretos”. Limitando-se a instalar microfones e câmaras, e abrindo em seguida as portas de acesso em tempo real aos jornais. Sem que nenhum trabalho de (verdadeira) reportagem, de síntese ou de interpretação seja feito. Eventualmente, no meio da algazarra habitual, estenderão um microfone e farão uma pergunta, quantas vezes desprovida de originalidade e pertinência.

Vemos assim que a atualidade a que temos direito é a que diz sobretudo respeito a ministros, partidos políticos, sindicatos e ordens profissionais. Pode-se dizer mesmo que, nestes últimos tempos, no audiovisual e mais particularmente na televisão, as assessorias deles dominam a “informação geral”, situação que não tem comparação nos média de outros países da Europa ocidental. Por vezes, vêm juntar-se a eles, quando a atualidade lhes dá ocasião, presidentes de câmara ou de junta, chefes de bombeiros ou de forças de segurança.

É assim que, muitas vezes, os nossos jornais (imprensa, rádio, televisão, internet) dão o sentimento de serem construídos por outros, e não pelas próprias redações. Quase só o tamanho das peças e o seu alinhamento são de facto fruto delas. Deixando os jornais de ser resultado de jornalismo e de jornalistas, para o serem de comunicação e de assessorias. Mal vai uma democracia em que a função social do jornalismo se encontra assim em vias de desaparecimento!…

Artigo originalmente publicado no Jornal Público, a 9 de Março de 2020.