Manuel Monteiro Guedes Valente
Doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa. Presidente do Instituto de Cooperação Jurídica Internacional. Professor Associado e Investigador Integrado e Vogal da Direção do Ratio Legis da Universidade Autónoma de Lisboa. Professor do Programa do Curso de Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e dos Cursos de Pós-Graduação da ESP/ANP-Polícia Federal – Brasil. Membro da Academia Luso-Brasileira de Ciências Jurídicas. Consultor da Feldens.Madruga – Sociedade de Advogados. Advogado e Jurisconsulto.
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Devemos convocar todas as instituições a decidir e a assumir a sua responsabilidade.
Uma das discussões que se tem colocado em algum debate público é saber se a Polícia pode ou não recorrer a drones com câmaras de vídeo para patrulhar via aérea as áreas de atuação e promover uma maior segurança desses e nesses espaços e o cumprimento das medidas restritivas de direitos e liberdades pessoais nesta fase de estado de emergência. Façamos uma pequena e breve análise do Regime Jurídico da Videovigilância (RJV), aprovado pela Lei n.º 1/2005, de 10 de janeiro[1], sem procedermos a um desenvolvimento de todas as questões intrínsecas ao RJV[2], pois reduzimos a análise do recurso a câmaras portáteis de videovigilância – instaladas em drones – no atual regime de emergência em que vivemos.
1. A videovigilância prevista no RJV, fixa ou portátil, só pode ser aplicada nos espaços de domínio público de acesso comum[3], assim como para fins de proteção de edifício e instalações públicas, instalações de defesa e segurança, de pessoas e bens, e de prevenção da prática de crime, infrações estradais, de atos terroristas e de incêndios florestais[4]. A videovigilância prevista no RJV tem como escopo a proteção e a prevenção e não a repressão criminal, razão pela qual a autorização é administrativa-executiva – membro do Governo que tutela a força ou serviço de segurança requerente[5] – e não judicial.
A videovigilância pode ser operacionalizada por câmaras fixas e por câmaras móveis, podendo estas integrar as câmaras instaladas nos drones. Todos sabemos que as cidades portuguesas e estradas – v. g., autoestradas e pontes – têm instalados sistemas de videovigilância com câmaras fixas que podem ser utilizados neste tempo para apurar da ausência e a circulação de pessoas nos espaços de domínio público de acesso comum. Mas também sabemos que nem todos esses espaços têm cobertura por esses sistemas fixos, o que implica a mobilização de maior número de meios humanos e a uma maior exposição ao risco de contágio e desgaste de ação pedagógica e repositora da normatividade jurídica em vigor.
A videovigilância operacionalizada por drones, apetrechados com câmaras de vídeo e com prévia autorização do membro do Governo, só pode incidir nos espaços de domínio público de acesso comum e com o escopo de proteção, em especial de pessoas, e de prevenção. Estes dois desideratos são medulares na essência do estado de emergência que foi decretado, como se pode retirar dos diplomas de emergência e temporários em vigor.
2. A autorização do membro do Governo carece de parecer prévio da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD). Este parecer, que até 2012 era vinculativo, deixou de o ser, exceto nos casos de câmaras portáteis. Aqui reside uma questão de interpretação do n.º 3 do artigo 6.º do RJV.
Do texto norma retira-se ou parece retirar-se que o parecer negativo é relevante nos casos de o dirigente máximo da força ou serviço de segurança, em caso de urgência, poder autorizar a utilização de câmaras portáteis, informando no prazo de quarenta e oito horas[6]. À partida parece-nos que só nestes casos – utilização de câmaras móveis sem prévia autorização do membro do Governo ou sem prévio parecer positivo da CNPD, por razões de urgência – é que o parecer é vinculativo, uma vez que o recurso à videovigilância com câmaras móveis – instaladas em drones – segue o regime do sistema de câmaras fixas[7].
Mas a norma texto exige-nos que façamos uma interpretação restritiva de normas que restringem direitos e liberdades fundamentais pessoais e não apenas literal, mas nunca extensiva, o que implica que subsumamos o texto norma à amplitude e profundidade que o meio de videovigilância móvel – em especial colocado em drones – pode acarretar. Pugnamos por uma interpretação que segue o múnus do princípio odiosa sunt restringenda e que não desempara as forças e serviços de segurança. Mas impõe-se rigor, muito em especial em casos de que possam gerar algumas dúvidas: in dubio pro rigore. Convoca-se, em tempos de crise, a resiliência e a resistência a tentativas de neutralizar a tutela de direitos e liberdades de uns e de outros, que só é alcançável se reforçarmos a função de equilíbrio do Direito.
Se o legislador entendesse que o parecer negativo da CNPD para câmaras portáveis não seria vinculativo no caso de prévio requerimento – antes da situação de urgência – manteria o regime do artigo 3.º do RJV, i. e., o parecer não seria vinculativo, tê-lo-ia prescrito na norma do n.º 3 do artigo 6.º do RJV. O que não o fez. O legislador vinculou expressamente o parecer negativo.
Temos de entender esta opção legislativa tendo em conta a ilimitabilidade de espaço que as câmaras portáteis abrangem e o fácil manuseamento indevido, mesmo de forma negligente, para espaços não integrantes do domínio público de acesso comum e direções de espaços da vida que nós ainda não deixamos nem autorizamos o Estado dominar e reger. A amplitude e a profundidade de restrição de direitos e liberdades fundamentais com câmaras portáteis são muito mais extensas, razão pelo qual o parecer da CNPD tem maior força vinculativa.
Esta interpretação implica que subsumamos o instituto ou meio de que vamos fazer uso à realidade concreta da vida que nos acerca: pandemia e estado de emergência. Impõe-se um equilíbrio hermenêutico que se exige a todos, incluindo às autoridades que têm a missão de nos garantir a segurança, a proteção de pessoas e bens e a prevenção da propagação da pandemia, que em determinados casos pode integrar um tipo legal de crime de propagação de doença contagiosa, p. e p. pelo artigo 283.º do CP.
A autorização de uso de câmaras de vídeo, sem prejuízo da sua revogação ou da sua renovação, está sujeita ao prazo máximo de 2 anos[8]. O prazo de dois anos não é taxativo ou inflexível, ou seja, pode a autorização limitar-se a um prazo menor: v. g., ao prazo de duração do estado de emergência. Não existem autorizações ad aeternum e sem a fixação do objeto e âmbito concretos do uso das câmaras de vídeo – fixas ou portáveis/móveis (aeronaves não tripuladas).
Daqui resulta que a força ou serviço de segurança tem de requerer em cada tempo e espaço a respetiva autorização para utilizar câmaras de vídeo, in casu, portáteis. Não existem autorizações gerais e infinitas, sob pena de o recurso excecional e justificável em determinados momentos se transformar em meio vulgar de operacionalidade de um Estado. Face ao tempo e ao espaço concreto de aplicação do recurso às câmaras portáteis, cabe ao dirigente de cada força e serviço de segurança requerer a respetiva autorização. Neste tempo e espaço, cabe aos responsáveis máximos das forças e serviços de segurança requerer a autorização do uso de câmaras de vídeo em drones – câmaras portáveis ou móveis – de modo que se dê oportunidade ao membro do Governo de solicitar a emissão urgente de parecer à CNPD[9].
Cabe, também, que sejam bem definidos os espaços de domínio público de acesso comum que necessitam de uma videovigilância portátil por meio de drones. Se em determinados espaços de domínio público já existe videovigilância com câmaras fixas, as forças e serviços de segurança devem socorrer-se destes sistemas já implementados, que devem estar ao seu serviço para as funções de proteção e de prevenção. A necessidade de utilização de câmaras portáteis tem de ser concreta e necessária, sob pena de sobreposição e irracionalidade dos meios operativos promotores de liberdade e de segurança.
Acresce referir que os meios de videovigilância, que colidem e restringem direitos e liberdades fundamentais pessoais, cuja execução e tratamento de dados devem ser fiscalizados quer pela CNPD, quer pelo Ministério Público – garante da legalidade democrática[10] –, quer pelas inspeções gerais dos ministérios [v. g., IGAI], devem respeitar os princípios que regem o nosso Direito: sendo de destacar o princípio da legalidade e da constitucionalidade, o princípio da proibição do excesso, o princípio da prossecução do interesse público sem niilificar os direitos e interesses legítimos particulares, o princípio da boa fé e o princípio da oportunidade.
3. Se, em tempos idos, a CNPD emitiu parecer negativo quanto ao uso de câmaras colocadas em drones, é de relembrar que esse parecer não vigora ad aeternum, tendo em conta que os pareceres devem ser aferidos dentro de um tempo e de um espaço, assim como dos fundamentos apresentados no requerimento. Os pareceres não são leis, i. e., não têm força de ato normativo.
Esses pareceres devem ser avocados em momentos de normalidade, cuja discordância só se pode desenvolver caso existam mutações normativas ou de Direito que exijam uma nova opinio iuris. Mas sempre que essa normalidade se altera ou a vida em comunidade exige uma nova dinâmica de garantia de direitos fundamentais como a vida e a integridade pessoal, é imperioso que a opinio iuris seja de novo suscitada a ser sufragada perante a uma pandemia e estado de emergência.
Os dirigentes das forças e serviços de segurança têm, neste tempo e espaço de pandemia e de estado de emergência, (i) legitimidade para requerer a utilização de drones com câmaras de vídeo, (ii) indicando em concreto os espaços de domínio público de acesso comum que necessitam desse recurso excecional – sendo de destacar os espaços sem sistemas de videovigilância de câmaras fixas –, demonstrando que é, neste tempo e espaço, (iii) um meio necessário e exigível de proteção de pessoas e bens, e de prevenção da criminalidade de massa, assim como que (iv) diminui o risco de propagação da doença e respetivo contágio junto dos efetivos das forças e serviços de segurança, e (v) identificando como prazo específico o previsto para o estado de emergência.
Consideramos que, face à excecionalidade do tempo e do espaço vivencial atual, a CNPD fará a avaliação concreta quanto ao equilíbrio entre a restrição dos direitos e liberdades fundamentais pessoais, a adequação, a exigibilidade e razoabilidade do meio requerido, e os fins maiores que estão em jogo – a vida e integridade pessoal que podem ser colocadas em causa com o contágio de COVID-19 – e à necessidade de recurso à videovigilância por meio de câmaras de vídeo instaladas em drones. Este requerimento insere-se num tempo e espaço excecional em que se pretende ad finem proteger a vida de muitas pessoas, fim máximo para o qual as câmaras de vídeo em drones podem ser muito úteis nessa proteção. Em espelho, exige-se também que os detentores do poder de fiscalização da utilização destes meios excecionais exerçam efetivamente esse poder para que se obliterem quaisquer tentativas de abuso e os abusos que possam ocorrer.
Vivemos um tempo e um
espaço que são inconciliáveis com os princípios do achismo, da retórica
e do palpiteiro. Razão pela qual se devem convocar as instituições a
decidir e a assumir a sua responsabilidade, que a todos se exige nestes
momentos e, caso não a saibam assumir, sejam submetidas ao crivo do pensamento
científico-jurídico de modo a que a ciência se apresente como a fonte nuclear da
liberdade.
[1] Alterada pelas Leis n.ºs 9/2012, de 23/02, 53-A/2006, de 29/12 e 39-A/2005, de 29/07.
[2] Para os que pretenderem estudar melhor este regime jurídico, Valente, Manuel Monteiro Guedes (2019). Teoria Geral do Direito Policial. 6.ª Edição. Coimbra: Almedina, pp. 651-707.
[3] Cfr. artigo 1.º do RJV.
[4] Cfr. artigo 2.º do RJV.
[5] Cf. artigo 3.º, n.º 1 do RJV.
[6] Cf. artigo 6.º, n.º 2 do RJV.
[7] Cf. artigo 6.º, n.º 1 do RJV.
[8] Cf. artigo 5.º, n.º 5 do RJV.
[9] Se estamos em estado de emergência defender-se que a CNPD tem 60 dias para emitir o parecer.
[10] Cf. artigo 219.º, n.º 1, in fine da CRP.