
Nelson Escórcio
Juiz de Direito desde 2000.
Juiz de Instrução Criminal desde 2014.
Revisitar a Escuridão – Como a Era Digital Obscureceu Justiça e Democracia é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponível no mercado a partir 27 de Março de 2025.
O desafio da modernidade
é vivermos sem ilusões
e sem nos desiludirmos.
Antonio Gramsci
A 14 de setembro de 1987 um computador num laboratório em Pequim remeteu, para uma universidade alemã, o primeiro email chinês. Dizia: “Do outro lado da Grande Muralha, podemos alcançar qualquer canto do mundo”.[i]
É há muito reconhecida à Tecnologia[ii] capacidade ciclicamente disruptiva no genérica desenvolvimento e organização humana e, consequentemente, no equilíbrio de poderes que enforma o grande palco internacional: de forma direta, por exemplo, no domínio militar; mais subtilmente no desenvolvimento de mercados, economias, tendências. Ocasionalmente, paradigmas.
A Era da Informação, ou a moderna época de permanente e crescente disponibilidade de informação através dos progressos nas tecnologias da informação, nascida em meados do passado século a par da expansão das redes telefónicas, da radiodifusão e televisão, e depois revitalizada com a mais circunscrita Era Digital, que abraçou a generalização dos microcomputadores, o advento da Internet e, na transição do milénio, o processo da digitalização da vida e memória humanas, conglomera as tecnologias porventura mais civilizacionalmente transformadoras da história moderna e contemporânea.
Mas quando Robert Keohane e Joseph Nye, proeminentes académicos na área das relações internacionais, discorreram sobre o conceito de interdependência dos Estados a propósito da Era da Informação, concluíram pela “Vantagem Democrática”: a sugestiva e desde então persistente ideia de estarem as sociedades familiarizadas com a livre circulação de informação mais bem preparadas para lidar com qualquer uma daquelas Eras.
Mas não, de todo.
Sobretudo os seus mais recentes capítulos — os da Internet e Digitalização — consubstanciam uma fundamental, incontornável desvantagem dos regimes democráticos.
Talvez determinante.
Constritas Liberdades
A inebriante ideia do livre, não controlado ou controlável fluxo de informação entre cidadãos, instituições, crenças, comunidades e nações, encerra um fundamental equívoco comum tanto à data da famosa asserção de Keohane e Nye como ainda hoje: o de que as designadas autoestradas digitais são vias sem portagens ou fronteiras.
Na realidade, com suficiente determinação e recursos, o fluxo digital é, pelo contrário, muitíssimo monitorizável, controlável; e o respetivo tráfego reencaminhável, substituível, eliminável.
Com efeito, a informação digital não vive ou é transmitida no éter, longe das influências humanas; menos ainda alguma vez consiste num qualquer surreal emaranhado de ininterruptas, intocadas ligações entre dispositivos. Depende antes de incontáveis, tortuosas, indiretas ligações entre servidores, dispositivos, equipamentos, linhas, sinais e software. Todos podem, de uma forma ou outra, interferir com a concreta experiência no acesso à rede e aos seus conteúdos. Mais de noventa por cento do tráfego digital intercontinental ocorre — ainda hoje — através de mundanos, acessíveis cabos submarinos, concentradamente submergidos e emergidos em prosaicas praias e falésias do planeta. Com localização pouco ou nada sigilosa, à mercê das regras e intervenções que cada agente — indivíduo, organização ou Estado — entenda implementar.
Numa gélida manhã daquele segundo inverno do milénio, Fang Binxing susteve-se antes de entrar e contemplou o enorme, austero edifício que albergava parte da vasta Equipa Técnica Nacional de Resposta de Emergência a Computação em Rede.
Era o seu líder.
Estava orgulhoso e confiante: os progressos eram promissores; o apoio do Partido sólido.
O futuro perspetivava-se luminoso.
Chinanet
A República Popular da China constitui-se, a esse propósito, o mais paradigmático e relevante exemplo de uma tão integrada quanto competente abordagem isolacionista: para lá das suas fronteiras, descobrimos uma Chinanet sem Google e antes o popular Baidu; o Livro de Rostos conhecido por Facebook é substituída pela Renren; o YouTube pelos Youku e Tudou. A mais conhecida “superaplicação” WeChat, da Tencent Holdings Ltd., com sede em Shenzhen, integra mensagens e chamadas, um feed de notícias com interface, visual e interação semelhante ao Facebook e Instagram, jogos, serviços e pagamentos no âmbito do comércio eletrónico e um dos meios de pagamento mais populares em lojas físicas. Este ecossistema constitui o produto dos — bem-sucedidos — esforços de Pequim de, primariamente, monitorizar e filtrar toda a informação que entra, sai e circula no país mas também, prudentemente, replicar redes, plataformas e conceitos de sucesso internacional, esvaziando qualquer ímpeto interno de acesso aos originais e, num ecossistema que integralmente controla, conciliar, nos seus próprios centralizados termos, comércio, serviços e (muitas vezes usurpada) inovação com a estrita proibição de críticas, perturbações ou promoções antagónicas ao regime.
E andará distraído quem invocar constituir o associado decréscimo de sites e publicações independentes a cada novo mês[iii] qualquer insustentável preço a pagar: a dissipação de memórias, ideias e indagações perpetua ambientes, rotinas e restrições e constitui a mais relevante funcionalidade de uma sintetizada, subjugada galáxia digital.
Ocidentalidades
A contemporânea bipolarização política, extremismo e radicalização que (a espaços consistentemente) fragmentam um Ocidente tendencialmente fiel a valores democráticos, é um fenómeno naturalmente desconhecido em regimes que compreendam e acolham a instrumentalização propiciada pelo novo Mundo Digital para garantia de segurança, confiança ou estabilidade: as regras que possibilitam este empreendimento apenas são viáveis em contextos com restrição de liberdades, direitos e garantias; inconcebíveis onde a liberdade de expressão se tenha como pilar civilizacional inamovível.
E nomeadamente por isso se acentua a clivagem entre Mundos e Regimes: novos recursos — como a Inteligência Artificial, nas suas múltiplas vertentes — acrescidamente refinam capacidades de deteção e manipulação de comunicações, informação, conteúdos, conveniente a quem saiba, queira e possa dar-lhes uso.
Até a total liberdade de criação e partilha de informação em ambiente democrático, livre de regulação estatal, se tornou ilusória: os algoritmos que alimentam as redes sociais e comunicacionais, e os grandes modelos de linguagem com capacidade generativa de conteúdos (texto, imagem ou vídeo) a que o público habitualmente associa a inteligência artificial, com fontes raramente identificadas ou conhecidas, crescente, sistemática e competentemente promovem a ideia de disponibilidade de fáceis e simples respostas a quaisquer dúvidas ou inquietações e propiciam ambientes confortáveis e reconfortantes, separando, através de critérios indiscerníveis, ideias, conceitos e gostos em herméticas bolhas de similitude, favoráveis a um negócio que requer permanente atividade e ancoramento — ainda que à custa de novos guetos intelectuais ou ideológicos; e uma continuada e apenas ocasionalmente percetível fragmentação social. Não servem regimes ou ideologias, apenas agnósticos mas competentes modelos de negócio.
E, não obstante, persiste resiliente no imaginário e subconsciente coletivo uma indistinta mas inteligível — e terna — associação entre Liberdade e Internet.
Em parte, por desconhecimento dos reais mecanismos que efetivamente determinam o que vemos, lemos e ouvimos online. Mas também porque o ambiente é intrinsecamente propício a tal perceção: qualquer inserção num motor de busca encaminha-nos a um destino que irresistivelmente assumimos definido por nós. A indiscernibilidade das concretas suscetibilidades, tendências ou intentos de cada algoritmo que define cada trilho de uma Internet tão real quanto nebulosa são imperscrutáveis — mesmo para o mais esclarecido cidadão que, esgotado num mundo de cautelas e obrigações, humanamente desconsidera regras e evidências subtis, esquecíveis.
Neste complexíssimo contexto, um capacitado, dedicado regime absolutista ou autoritário dispõe de inéditos mecanismos de controle de discursos, opiniões, dissidências.
Inéditas Capacitações
As contemporâneas capacitações digitais e a concreta implementação do que temos como “internet” constituem regulares entropias e deformações — tão complexas como as causas que as determinam — das mais elementares liberdades de indivíduos, nações e regimes. A compartimentação, neste contexto digital, de regiões, mercados e modelos de organização política, cada um dotado dos seus próprios mecanismos de autorregulação, monitorização ou controle, suscita múltiplas alterações no conhecimento e perceções — públicas e privadas — que efetivamente influenciam comportamentos. Se a ação humana assenta, em considerável e quase sempre determinante medida, na informação que precede cada concreta opção, os mecanismos e modelos de acesso a essa informação influem, direta ou indiretamente, todas as decisões, interações e estratégias, revelando-se uma manifestação de poder que, rápida e inexoravelmente, ultrapassa e escapa ao controle dos engenheiros que os concebem ou implementam.
Nenhum regime democrático integra ou prevê a implementação de qualquer forma de regulação clara e efetiva das designadas plataformas digitais — quase todas de natureza privada e comercial — para isenção e transparência no acesso a informação e conteúdos, o que revela uma manifesta (e, em certa medida, compreensível) dificuldade e pudor de intervenção (difícil, controvertida e temerária) num setor e mercado — o da informação — que, paradoxalmente, é vital à saúde de qualquer regime que se entenda e pretenda livre.
A Europa, que publica e repetidamente se autocongratula pela mais completa regulação do universo digital em contexto democrático, depara-se com as complexidades específicas do seu processo legislativo mas, sobretudo, com as arduidades inerentes à regulação simultaneamente equilibrada e eficaz da sempre mutante tecnologia e indústrias, remetendo-se a normativos genéricos, abstratos e programáticos. Relativamente consensuais, frequentemente inócuos.
Pelo contrário, nações como a República Popular da China, distantes das suscetibilidades democráticas, meticulosamente aprimoram, a cada novo dia, um modelo de efetivo e rigoroso domínio do ambiente digital — e dos comportamentos e ideias — através de uma máquina tecnológica eficaz no seu fim e fiel ao seu mestre.
Seria esta Desvantagem Democrática realisticamente antecipável em 1998, quando Keohane e Nye proclamavam as ilusões ocidentais?
Sem dúvida alguma.
Nesse preciso ano Pequim iniciava os vastos e complexos trabalhos do Projeto Nacional de Informação do Trabalho de Segurança Pública, mais tarde (e mais apelativamente) conhecido por Escudo Dourado, idealizado, desenvolvido e supervisionado pelo Ministro da Segurança Pública ao serviço do Partido Comunista Chinês.
A decisão política havia sido assumida anos antes.
Mas então muito poucos — mesmo na comunidade de Intelligence — convenientemente registaram, escalpelizaram e compreenderam os riscos e desafios do que acontecia, e menos ainda anteciparam o que viria a acontecer. Lá e cá.
Um Urso Menor
Importará, contudo, não precipitar extrapolações do exemplo de Pequim, que tem ao seu dispor vastos recursos financeiros, técnicos e industriais associados à segunda economia e mercado consumidor do planeta, o que lhe permite impor condições a quaisquer operadores que nele pretendam (e todos pretendem) florescer, condições que inviabilizam linear réplica por outros atores internacionais.
Moscovo constituirá a mais esforçada tentativa de mimetizar a eficácia chinesa neste domínio. Mas, porque não possui mercado interno ou capacitações técnicas, tecnológicas e industriais comparáveis às de Pequim, apenas tem alcançado muito inconsistentes resultados: com um PIB inferior ao do da República da Coreia, Moscovo tradicionalmente projeta — em parte através do discurso musculado de uma potência que alberga o maior número de ogivas nucleares do planeta — capacidades e competências muito superiores às que efetivamente detêm. O valor do seu mercado interno, a dependência económica de fatores que não controla (como a variação do valor do crude) e a pouca autonomia tecnológica — nomeadamente no contexto digital — confere-lhe alavancagem inferior à percecionada. Os muito públicos ataques cibernéticos de grande escala a alvos de grande visibilidade visam, por exemplo e sobretudo, promover uma imagem de sofisticação e capacidades que encobre fragilidades.
Ainda assim, o presidente Vladimir Putin promulgou em junho de 2021 legislação que impôs a empresas que operem plataformas ou serviços digitais com mais de meio milhão de utilizadores a obrigatoriedade de manter representante legal em território russo, circunstância facilitadora da imposição de normativos de regulação e fiscalização; e é desde 2016 obrigatória a domiciliação em servidores intrafronteiras de quaisquer dados relativos a cidadãos russos ou a atividade online em território nacional, cujo incumprimento despoleta coimas, proibição de publicidade (a principal ou exclusiva fonte de receita daqueles operadores), redução de velocidade dos serviços ou simples inibição de operação.
Mas a ausência de um ecossistema interno autónomo ou dimensão de mercado equiparável ao chinês promovem a resistência mais ou menos visível, assumida e bem-sucedida da indústria em sucumbir aos custos associados àquelas exigências legais.
O Grande Urso ruge muito e alto; mas tem pernas e garras curtas.
Em abril de 2016, no decurso de uma apresentação no Instituto de Tecnologia de Harbin, China, sobre a Coreia do Sul, Fang Binxing, o pai da Segunda Grande Muralha, viu-se publicamente impedido de aceder a conteúdos online sul coreanos. Após repetidas tentativas, resignou-se aos caprichos da sua criação.[iv]
Vontades e Interesses Democráticos
Assume o conhecido repúdio por Winston Churchill da vontade geral[v] inédita sonoridade na Era Digital: o crescente, inflamado produto de uma amálgama indiscernível de sedutoras influências, distribuídas com elegância e inteligência não é confundível com a representatividade de uma esclarecida e lúcida vontade coletiva; e, naturalmente, apenas fortuitamente coincidente com qualquer noção de “interesse geral” — conceitos distintos mas persistentemente confundíveis e confundidos no opaco e muito falível âmbito das sondagens e auscultações online e, crescentemente, dos profissionais, amadores ou iniciados — mas sempre omniscientes — opinion makers e (qual a diferença?) influencers.
O Mundo Binário efetivamente promove, sobretudo no contexto democrático, um vazio equívoco: de dimensões, vontades, realidades. Um extraordinário palco repleto de atores acelerados, acelerantes, incógnitos; rodeados de figurantes virtuais e espelhos deformados, deformantes. A maior toxicidade no contexto democráticos decorre da sua intrínseca liberdade — na individual escolha de cada mercado, comercio ou serviço; da crédula asserção que toma o ambiente digital como indiferente do analógico, físico, tangível.
Suscitar-se-á, a este propósito, (sensato) alerta para os perigos da descaracterização dos valores inerentes à Liberdade e Democracia em prol de uma precipitada contenção de qualquer — esta ou outra — dificuldade ou obstáculo; uma capitulação ao facilitismo e, sobretudo, às precisas forças que se pretendam conter.
Mas regular e limitar são verbos apenas superficialmente confundíveis e de distinto significado. Os checks and balances cruciais à manutenção e coexistência democrática constituem o culminar de um efetivo processo de regulação de direitos, poderes e deveres, um assumido compromisso que, no respeito pela tradição do passado e pelo circunstancialismo do presente, procura assegurar espaço adequado a todas as forças e ideias.
A autorregulação constituiria, neste domínio, uma abordagem concetualmente interessante; e também reveladamente insuficiente: desde meados do passado século para a televisão e media; desde inícios do atual para as plataformas digitais.
Muitos Estados optaram no passado, para evitarem interferências diretas na esfera privada, por implementar serviços públicos — sobretudo de radiofonia e televisão — que, de certo modo e durante algum tempo, mitigaram o problema, elevando a fasquia da qualidade e garantindo (sempre relativa e frágil) isenção, mesmo que com sacrifício de índices de audiência e da carteira do contribuinte.
Tal nunca ocorreu nos mencionados serviços digitais, nem se perspetiva nisso vontade ou viabilidade.
Sem prejuízo dos mais inconfessos delírios liberais ou libertários, a escassez ou ausência de regras nunca constituiu, em ambiente algum, garante de autonomia e liberdade. Os designados operadores — de televisão, comunicação, redes, plataformas ou serviços digitais — regem-se por parâmetros e interesses invariável e primordialmente ajustados aos seus próprios e nenhuns outros. O universo digital promove, neste domínio, ilusões e equívocos peculiarmente intensos e convictos, vítimas de inéditos, simulados e dissimulados mecanismos pouco percetíveis aos sentidos humanos.
Por tudo isso e muito mais é o ambiente democrático aquele que mais flagrantes dificuldades revela na adaptação ao caos digital; que não quer — ou acredita poder — assertiva e eficazmente regular, no respeito mas também crucial defesa dos estruturais valores que o definem.
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O presente texto constitui a adaptação de ensaio do
autor realizado no âmbito do doutoramento em Ciência
Política e Relações Internacionais no Instituto de Estudos Políticos da
Universidade Católica Portuguesa; e extrato, também adaptado, do livro
“Revisitar a Escuridão — Como a Era Digital Obscureceu Justiça e Democracia”, a
publicar em março de 2025 pela Almedina.
[i] Global Times, “27 years since China’s first email”, 14 de setembro, 2014, https://www.globaltimes.cn/content/881330.shtml.
[ii] Entendida, genérica e simplificadamente, como o aproveitamento prático de descobertas científicas (cfr. Cambridge Dictionary).
[iii] Cf. https://web.archive.org/web/20240523001943/https:/mp.weixin.qq.com/s/afg3zHPpEyRzSfOR1Aeh3w
[iv] Austin Ramzy, “Architect of China’s ‘Great Firewall’ Bumps Into It”, New York Times, 6 de abril, 2016, https://www.nytimes.com/2016/04/07/world/asia/china-internet-great-firewall-fang-binxing.html.
[v] Churchill considerava perigosa a “vontade geral” por suscitar formas de autoritarismo populista, onde a maioria ou um seu líder, teria poder ilimitado, incluindo supressão da liberdade individual e direitos das minorias.