Paulo Guerra
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Juiz de Direito desde 1988. Autor de várias obras jurídicas no âmbito do Direito de Família e das Crianças. Juiz Secretário do Conselho Superior da Magistratura (de 2004-2007).. É Vice Presidente da CRESCER SER – Associação Portuguesa para o Direito dos Menores e da Família – instituição com 7 centros de acolhimento de crianças no nosso país.
“A cadeira de baloiço embala o sono da avó. E junto com ela as histórias que nos fazem ser. Vai e vem, você em mim.” Mel Fronckowiak
1. Quero falar de amor avoengo. De avós e de netos.
Sabemos que através da Lei n.º 84/95, de 31-8 (que alterou o CC), foi aditado a esta compilação normativa o artigo 1887.º-A:
«Os pais não podem injustificadamente privar os filhos do convívio com os irmãos e ascendentes.»
Com a entrada em vigor deste artigo, a criança passou a ser titular de um direito autónomo ao relacionamento com os avós e com os irmãos, que podemos designar por direito (amplo) de visita—há um direito desta criança ao convívio com os avós e com os irmãos, que não pode ser cerceado de forma injustificada pelos pais.
Segundo o regime anterior, que não previa solução semelhante, a única possibilidade de atribuir à criança e aos avós um direito a relacionarem-se entre si, independentemente da vontade dos pais da primeira, era através do artigo 1918.º do CC, ou seja, sempre que a descontinuidade dessas relações redundasse para a criança numa situação de perigo para o seu desenvolvimento equilibrado ou para a sua educação.
A jurisprudência portuguesa, quando se não verificava nenhuma das hipóteses do artigo 1918.º, negava aos avós o direito de obter a guarda da criança ou o direito de visita.
Hoje em dia, os avós têm legitimidade para acionar em tribunal o artigo 1887.º-A do CC (processualmente, a forma mais correcta de exercer este direito por via de uma acção — e não nos esqueçamos que, nos termos legais, a todo o direito corresponde uma acção— será a acção tutelar comum prevista no artigo 67º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).
Trata-se agora de uma providência tutelar cível prevista no artigo 3º, alínea l) do dito RGPTC.
Na verdade, este artigo 1887.º-A vem introduzir expressamente um limite ao exercício das RP, proibindo os pais de impedir, sem justificação, os filhos de se relacionarem com os ascendentes ou irmãos.
Trata-se de um limite ao direito dos pais à companhia e educação dos filhos (artigo 36.º, n.os 5 e 6, da CRP) e a decidirem, como bem entenderem, com quem se pode relacionar a criança e o lugar destes encontros, facetas dos direitos de guarda e de vigilância – atente-se também aqui ao princípio do “primado da continuidade das relações psicológicas profundas”, previsto no 4.º/g) da LPCJP, aplicável aos processos tutelares cíveis pelo artigo 4.º /1 do RGPTC.
A esta norma está subjacente uma presunção de que o convívio da criança com os ascendentes e irmãos é positivo para ela e necessário para o harmonioso desenvolvimento da sua personalidade.
Em caso de conflito entre os pais e os avós da criança, o critério para conceder ou negar o direito de visita é o interesse da criança.
A intervenção do Estado na família, a fim de decretar o direito de convívio da criança com os avós e irmãos, já não está condicionada aos requisitos do artigo 1918.º do CC, não sendo necessário provar a incapacidade dos pais para educar o filho ou uma situação de perigo para este.
Consequentemente, para ser decretado um direito de visita da criança relativamente aos avós ou aos irmãos, basta que tal medida esteja de acordo com o seu supremo interesse, ou seja, produza efeitos favoráveis para aquela.
A lei estabelece uma presunção de que a relação da criança com os irmãos e com os avós é benéfica para esta.
Os pais, se se quiserem opor com êxito a este convívio, terão de invocar motivos justificativos para tal proibição.
A decisão judicial em causa resulta de uma ponderação de factores (vontade da criança, afecto entre a criança e os avós ou entre a criança e os irmãos, qualidade e duração da relação anteriormente existente entre estes, assistência prestada pelos avós ou pelos irmãos à educação da criança, benefícios para o desenvolvimento da personalidade da criança e para a sua saúde e formação moral resultante da relação com os irmãos e com os avós, efeitos psíquicos e físicos do corte das relações da criança com os avós ou com os irmãos), tendo a criança direitos constitucionalmente protegidos que entram em conflito com os direitos dos pais, devendo prevalecer os direitos da primeira, no caso dos pais não apresentarem razões suficientemente fortes para proibir a relação do filho com os avós, dado que a finalidade principal do exercício das RP é, sabemo-lo bem, promover o interesse da criança.
Recentemente, tem-se dado guarida a pretensões de outros familiares da criança – tios – ou até de pessoas de referência da criança, no que tange a afetos (padrinhos, madrastas e padrastos), com o decisivo argumento de que do artigo 1887º-A do CC não se extrai que relações distintas das aí contempladas, ou outros afetos ainda que relativos a terceiros, não mereçam relevo regulatório, até por força de uma interpretação extensiva desse normativo.
O relevante aresto do Tribunal da Relação do Porto de 7/1/2013 (Pº 762-A/2001.P1) conferiu legitimidade a uns tios para reclamarem o direito ao convívio com um sobrinho a quem estavam muito ligadas, à luz do artigo 1887º-A do CC.
Como aí se refere:
«Se o convívio com os tios não faz parte do núcleo primordial do conteúdo da responsabilidade parental (por conseguinte, se o progenitor não está onerado com o vínculo de não obstaculizar o convívio com os tios, como o está para com os irmãos e ascendentes), isso não pode ter o sentido de que, então nunca àqueles parentes é passível de assistir essa possibilidade. Já que ela no concreto pode existir.
(…)
Em regra, a criança há-de poder conviver com os parentes que o artº 1887º-A elenca; mas as condições concretas podem até fazer inferir que o não deva. Ao invés nada há no conteúdo do direito-dever parental que estabeleça um contacto com outras pessoas (com tios designadamente); mas podem as condições concretas ser conducentes à adequação desse convívio, que então deve existir. É no fundo, sempre o interesse da criança a condicionar a conformação da realidade concreta de cada caso, isto é, são os factos concretos que se permitam apurar, aqueles que hão-de sustentar a definição das providências adequadas que hajam de ser decretadas».
Mais pessoas de referência podem surgir, assim se entenda realmente o interesse da criança em não se privar do contacto de certos homens e mulheres que passaram pela sua vida e que, por algum incidente de percurso, podem deixar de o fazer.
Assim, podemos concluir que, apesar de a lei ter optado, de forma expressa, por fixar taxativamente as pessoas abrangidas pela proteção jurídica conferida pelo art. 1887º-A do CC, a verdade é que hoje em dia se justifica, à luz da consideração dos direitos fundamentais da criança, a sua extensão à grande família psicológica da criança, regulando-se os convívios da criança com outras pessoas de referência afetiva para ela, sem ser no estrito comando do artigo 1918º do CC.
Note-se ainda que esta matéria pode ser decidida num processo de RERP, se houver acordo, por simplificação processual (se não houver, terá de ser em acção tutelar comum, providência também usada para os incumprimentos desses convívios).
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Exemplos:
Os avós maternos ou paternos vêm reclamar espaço de convívio com o neto contra os dois progenitores da criança (que não permitem esse convívio)
Os avós maternos vêm reclamar espaço de convívio com o neto contra o pai da criança que exerce sozinho as responsabilidades parentais (por exemplo, por falecimento da mãe) e não permite esse contacto.
O avô paterno vem reclamar espaço de convívio com o neto contra os avós maternos que passaram a exercer as responsabilidades parentais relativas àquele por decisão judicial
Etc…
2. Que motivos podem levar o juiz a considerar que essas visitas não correspondem ao superior interesse da criança e proibir o convívio?
Sempre que considerarem que a presença daqueles avós pode ser prejudicial ao desenvolvimento, educação e segurança do neto (ex: podem ser avós com vidas errantes, avós disfuncionais, avós infundamentadamente conflituosos para com os pais ou para com os netos, avós com pouquíssima afinidade com o neto com quem não têm uma relação próxima e securizante, etc…)
3. É comum os avós recorrerem aos tribunais para fazer valer este direito – cada vez mais o fazem.
Fazem-no pois os progenitores, exercentes das RP, negam o espaço de convívio com os netos.
Em 1995, surge a lei que permite tal convívio.
Na altura, a 1ª instância e a Relação não conferiu legitimidade a estes avós para virem a tribunal pedir tal convívio.
Foi só o STJ – através de acórdão de 3/3/1998 – que conferiu tal legitimidade activa (a todo o direito tem de corresponder uma acção): repare (dado sociológico interessante) que foram os Senhores Conselheiros, muitos deles, já avós na vida real, que assim decidiram, tendo-se posto na pele de tantos avós que desta forma viam perigado o convívio com os netos (a vida influencia a prática judiciária, gerando mudanças jurisprudenciais).
4. Tem necessariamente de haver um processo de promoção e protecção para que o tribunal possa atribuir algum tipo de responsabilidade parental a um avô ou a uma avó? Ser encarregado de educação, por exemplo?
Não necessariamente.
Só é instaurado um processo de promoção e protecção (PPP) se houver perigo na vida desta criança.
Nesse PPP pode ser aplicada uma medida de apoio junto de outro familiar – artigo 35º/1 b) da LPCJP.
A medida de apoio junto de outro familiar consiste na colocação da criança ou do jovem sob a guarda de um familiar com quem resida ou a quem seja entregue, acompanhada de apoio de natureza psicopedagógica e social e, quando necessário, ajuda económica (artigo 40º da LPCJP), ficando aqui legitimada a decisão desses avós passarem a ser os encarregados de educação do neto.
Note-se que, mesmo quando houver perigo, pode avançar-se logo para a providência tutelar cível de limitação do exercício das RP (cfr. n.º 1 do artigo 1907º CC), sendo, contudo, mais seguro e célere o recurso ao PPP.
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Se não se vislumbrar o perigo previsto na LPCJP, pode esse exercício das RP ser entregue aos avós por força de uma providência tutelar cível de limitação de tal exercício (artigo 1907º CC), acção a intentar contra os progenitores.
Artigo 1907.º
(Exercício das responsabilidades parentais quando o filho é confiado a terceira pessoa)
- Por acordo ou decisão judicial, ou quando se verifique alguma das circunstâncias previstas no artigo 1918.º, o filho pode ser confiado à guarda de terceira pessoa.
- Quando o filho seja confiado a terceira pessoa, cabem a esta os poderes e deveres dos pais que forem exigidos pelo adequado desempenho das suas funções.
- O tribunal decide em que termos são exercidas as responsabilidades parentais na parte não prejudicada pelo disposto no número anterior.
Nesta limitação, podem ficar distribuídos poderes-deveres a ambas as partes (os avós – pelo n.º 2 – e os progenitores – pelo n.º 3).
O art.º 1907º do Código Civil, no acordo para a confiança da criança à guarda de terceira pessoa, apenas admite alguma compressão/limitação do exercício das responsabilidades parentais, na medida dos poderes e deveres dos pais que forem exigidos àquela para o adequado desempenho das suas funções.
Ou seja:
A entrega da criança a terceira pessoa, nomeadamente aos avós, seja ela feita pelos pais ou pelo tribunal, ainda que fora das condições de perigo aludidas no art.º 1918º (perigo), deve sempre ter uma justificação aceitável, orientada pela mira do superior interesse da criança e na medida do necessário à sua satisfação. Por isso, resulta do nº 2 do art.º 1907º que, naquelas situações, a terceira pessoa exerce os poderes e deveres que são dos pais, mas apenas na medida em que isso seja exigível pelo adequado desempenho das suas funções. Isso significa, não a inibição do exercício das responsabilidades dos progenitores, mas apenas uma compressão, uma limitação desse exercício, sem qualquer renúncia, total ou parcial, às mesmas.
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No âmbito da Regulação do Exercício das RP pode, igualmente, a confiança da criança ser atribuída aos avós, ficando as RP residuais entregues aos pais. Acontece muito estas situações.
Normalmente só se recorre à providência limitativa se não estiverem verificados os pressupostos da RERP. Caso contrário nesta regula-se tudo.
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Também pode haver uma inibição de tal exercício aplicada aos pais e a entrega da crianças a tais avós que passam a exercer sozinhos tais RP (tal ocorre em casos mais graves, quando os pais, pelas suas condutas, revelam ser absolutamente incapazes de exercer as RP e com a sua actuação colocam em perigo o filho).
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Finalmente, um avô pode ficar com a tutela do neto (artigo 1921º CC).
5. É possível, no âmbito da jurisdição voluntária, que o tribunal estabeleça uma guarda tripartida, por exemplo? Ou o avô/avó só assume algum tipo de responsabilidade “em substituição” de um dos pais?
Havendo progenitores funcionais, numa normal RERP, as questões de particular importância têm de ser atribuídas aos dois (regra) ou, excepcionalmente, só a um deles, não podendo ser repartidas com avós.
O que os pais podem fazer é delegar naqueles avós da criança o exercício das suas responsabilidades parentais relativamente aos actos da vida corrente do filho (nº 4 do art.º 1906º), não já as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a sua vida nem obrigações e direitos próprios dos pais fora de situações de justificada compressão/limitação das suas responsabilidades (art.º 1907º, nº 2) motivadas pela confiança da criança à guarda de terceiras pessoas.
Só se houver limitação do exercício das RP (ou inibição, como é bem de ver) é que tais questões de particular importância, logo, também os actos da vida corrente, poderão ter de ficar na mão dos avós.
6. Que situações podem levar um tribunal a decidir responsabilizar um avô/avó pelo pagamento de uma pensão de alimentos?
A lei é clara.
A responsabilidade pela prestação de alimentos dos avós é subsidiária (artigo 2009.º, n.º 1 e 3 do Código Civil) e, tal como a principal, depende de fixação judicial (a fixação do montante exacto depende dos critérios dos artigos 2003.º a 2005.º do Código Civil).
Se os progenitores não puderem nem os avós, a seguir estão os irmãos, tios (durante a menoridade do alimentando) e o padrasto e a madrasta em determinadas condições.
Este dever de sustento e, portanto, de prestar alimentos é, essencialmente, dos progenitores, em 1ª linha.
Contudo, entende-se que a obrigação de sustento dos avós em relação aos netos pode vir a existir em determinadas situações. Quando isso acontecer, ela será somente subsidiária ou complementar.
Isto significa que a obrigação dos avós não será tendencialmente simultânea com a dos progenitores, ou seja, ela não surgirá no mesmo momento em que o dever dos pais. Dito de outro modo, os avós não se responsabilizarão directamente pelo compromisso assumido pelos seus filhos em relação aos seus netos (podem fazê-lo mas por motu próprio e não por uma decisão judicial).
Assim, eles somente serão chamados para contribuir para o sustento dos netos quando os progenitores estiverem impossibilitados de fazê-lo.
- A minha vida é feita de rostos.
Tive uma vez um processo em que os avós maternos vieram requerer a fixação de um espaço de convívio com o seu neto, filho de uma filha pré-falecida, proibidos que foram pelo pai da criança – o titular e exercente das responsabilidades parentais – de ver o neto pelo facto de acusar os sogros de terem levado a filha, sua mulher, ao desespero por intrusões na sua vida conjugal ao ponto de se ter suicidado (versão do pai).
A tarefa foi depois saber se aquele pai estava em condições de poder, de forma legítima, cortar esse convívio avoengo.
Acabaram por chegar a um suado acordo que homologuei.
Uma situação ainda tive de casamento contrariado por um dos lados avoengos – os avós paternos não aceitavam o casamento do filho com uma mulher, futuramente, mãe do seu neto. Como represália, os progenitores da criança proibiram os avós de a ver.
No fundo, são situações que se prendem com zangas familiares – os progenitores da criança não a deixam privar com os avós paternos ou com os avós maternos…
Também me valeram muitas vezes os avós na promoção e protecção – quantas institucionalizações se evitaram com o afago deste amor avoengo!