Sandra Braga Fernandes

Licenciada em Direito pela Universidade do Minho.

Mestre em Direito Judiciário (Direitos Processuais e Organização Judiciária) pela Universidade do Minho.

Advogada-Estagiária e Assistente Convidada na Escola de Direito da Universidade do Minho


Consulte a sua obra neste link.


Um longo caminho foi já percorrido desde que, em 1950, pela primeira vez foi perspetivada a possibilidade de uma máquina poder exibir comportamentos semelhantes aos dos seres humanos, quando Alan Turing descreveu o “Jogo da Imitação” no seu artigo intitulado Computing Machinery and Intelligence[1]. A hipótese apresentada por Turing foi precisamente o berço daquilo que conhecemos universalmente como Inteligência Artificial.

Décadas volvidas, olhamos para a Inteligência Artificial como um fenómeno sem precedentes e um dos mais influentes aspetos de um novo panorama da vida em sociedade, acompanhando o quotidiano pessoal e profissional da esmagadora maioria dos indivíduos, em praticamente qualquer área do saber.

No que ao Direito concerne, embora a Inteligência Artificial não encontre ainda o favoritismo que possui em áreas como o comércio ou a medicina, começam a formar-se caminhos de inserção destes sistemas na prática jurídica, muito devido às novas garantias proporcionadas pelo mecanismo do machine learning, que tem encontrado propósito inédito no Direito, auxiliando no processo de decisão, de análise documental e de contextos legais[2], facilitando o exercício da atividade dos seus profissionais.

Fruto da expansão destas novas soluções, o conceito de justiça preditiva tem vindo a ser abarcado no seio do direito penal, referindo-se ao fenómeno de digitalização das decisões judiciais e do acesso irrestrito à jurisprudência de tal modo que uma análise dos seus dados, quando realizada por um software, potenciou a identificação de padrões de previsibilidade comuns a várias decisões judiciais, consequentemente abrindo espaço ao fomento do recurso a ferramentas de avaliação do risco (risk assessment tools)[3] no processo decisório do juiz.

Neste novo panorama da justiça, a previsibilidade adquire uma centralidade acrescida relativamente a uma das questões hodiernas do direito penal – a previsão da reincidência do agente. Reconhecidas que devem ser as suas vantagens, não existem elas sem o prejuízo de estarmos perante uma opção progenitora de uma miríade de dúvidas e inquietações, de ordem jurídica, epistemológica e até mesmo ética, no que concerne a potenciais sequelas no processo penal preditivo e no equilíbrio com garantias processuais e direitos fundamentais das pessoas nele envolvidas[4].

É importante frisar o empirismo destas preocupações, surgidas a partir do olhar atento às consequências da aplicação de risk assessment tools em alguns países, sobretudo em tribunais americanos, britânicos – enfim, inseridos em ordenamentos de common law –, nomeadamente em relação ao parole, às decisões de caução e ao sentencing.

Neste contexto, deve ser evidenciado o paradigmático caso americano State v. Loomis, o qual colocou as questões da Inteligência Artificial utilizada para prever a reincidência na ordem do dia e permitiu que se pensassem os moldes em que a transposição das risk assessment tools – e, de um modo mais abrangente, da Inteligência Artificial enquanto fenómeno multifacetado – pode operar no direito penal português e respetivo processo. Lembrando que no centro da revolução digital devem estar sempre os direitos fundamentais das pessoas[5], consideração sem a qual uma submissão cega do nosso sistema penal e processual penal às tecnologias de Inteligência Artificial pode acabar por lesar os direitos dos cidadãos no acesso à justiça.

Por fim, impõe-se aludir à tão importante perspetiva europeia em matérias de Inteligência Artificial, nomeadamente, a promulgação do primeiro diploma regulamentar em matéria de Inteligência Artificial – o Artificial Intelligence Act (AI Act)[6]. Este regulamento europeu foi pioneiro no extenso leque de matérias reguladas em termos de Inteligência Artificial, no qual se inclui a utilização de ferramentas inteligentes na tomada de decisões sobre infrações penais e às quais sejam submetidas as pessoas singulares, constituindo um pesado contributo para a resposta às imponentes questões acerca do lugar destes mecanismos no seio do nosso ordenamento jurídico-penal e processual penal.

As ideias supra apresentadas, bastante pertinentes no atual panorama jurídico-tecnológico, serão pormenorizadamente contextualizadas e analisadas na obra “Inteligência Artificial e Determinação da Probabilidade de Reincidência”, brevemente publicada pelo Grupo Almedina, expondo o debate ainda embrionário da Inteligência Artificial no âmbito da reincidência em Portugal a todos a quem interessar e, bem assim, ao público em geral.

 

[1] In Mind, Vol. 59, n.º 236, 1950, pp. 433-460, disponível em https://doi.org/10.1093/mind/LIX.236.433

[2] ZELEZNIKOW, John, Using Artificial Intelligence to Support Legal Decision-Making: is the software a friend or a foe?, in SILVA, Eva Sónia Moreira da, e FREITAS, Pedro Miguel (Coords.), Inteligência Artificial e Robótica – desafios para o Direito do século XXI, 1ª Edição (Ebook), GESTLEGAL, 2022 pp. 21-43, disponível em https://hdl.handle.net/1822/80752.

[3] KLEINBERG, John, [et al.], Human Decisions and Machine Predictions, in The Quarterly Journal of Economics, Vol. 133, n.º 1, 2018, pp. 237-293, disponível em https://doi.org/10.1093/qje/qjx032.

[4] RODRIGUES, Anabela Miranda, Inteligência Artificial no Direito Penal – a Justiça Preditiva entre a Americanizaçaão e a Europeização, in RODRIGUES, Anabela Miranda [Coord.], A Inteligência Artificial no Direito Penal, Coimbra, Almedina, 2020, pp. 11-58.

[5] Considerações de Francisca Van Dunem retiradas de BORGES, Patrícia Sousa, A utilização de Inteligência Artificial na justiça aos olhos da proposta de regulamento da União Europeia, in SILVA, Eva Sónia Moreira da, e FREITAS, Pedro Miguel [Coords.], op. cit., pp. 287-304.

[6] Parlamento Europeu, Regulamento (UE) 2024/1689 do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de junho de 2024 que cria regras harmonizadas em matéria de inteligência artificial e que altera os Regulamentos (CE) n.º 300/2008, (UE) n.º 167/2013, (UE) n.º 168/2013, (UE) 2018/858, (UE) 2018/1139 e (UE) 2019/2144 e as Diretivas 2014/90/UE, (UE) 2016/797 e (UE) 2020/1828 (Regulamento da Inteligência Artificial), disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=OJ:L_202401689.