Nuno Alexandre Pires Salpico
Assistente convidado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa desde 2019.
Advogado.
Licenciado e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Com publicações académicas principalmente nas áreas de Responsabilidade Civil, Direito Probatório, e Direito da Concorrência e Regulação.
Indemnização “Própria” e “Imprópria” em Processo Penal é a mais recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado a 11 de janeiro de 2024.
Desde o Direito clássico que, face a uma infração, os Estados reuniam a reação penal (a pena) com a compensação de danos. Todavia, na evolução do Direito romano, a reparação dos danos (indemnização) veio a separar-se progressivamente da pena, até ao surgimento da autonomia dogmática da responsabilidade civil, particularmente sentida com a era da codificação.
Com o debate dos fins das penas, o século passado pugnou por uma fundamentação da pena que se centrasse no agente do crime. Portanto, que não o instrumentalizasse, assim, construindo uma medida da pena não totalmente dependente da sociedade enquanto coletivo, ou dependente das necessidades de outros sujeitos afetados pelo crime (as vítimas). Abandonou-se a vendetta e o “puro retributivo”. Encontra-se o conceito material de crime e a necessidade de tutela de bens jurídicos. Adotou-se a prevenção geral e especial, aliada a valores de dignidade, necessidade, e subsidiariedade da pena. O agente do crime acorda com direitos fundamentais, e não mais pode ser alvo de um certo instrumentalismo opressor, rotulador e criminógeno, sendo que só com cuidadosa ponderação é que pode haver uma restrição dos seus direitos.
E que eventuais implicações nos poderá ter levado este quase que agente ou arguidocentrismo do Direito substantivo e adjetivo penal? Que papel terá ficado para a proteção das vítimas e dos seus bens jurídicos?
Por mais robusto e diversificado que tenha sido o desenvolvimento da criminologia e da teoria jusfilosófica das penas, é inegável que o Direito penal se revelou num sistema pensado sobretudo para o agente do crime, deslocado da vítima, em que a reparação dos seus danos se encontra remetida para um papel acessório e aparentemente alheio aos fins de interesse público fundamentantes da pena.
A experiência das últimas décadas, aliada a certos movimentos de revolução económica massificada, digitalizada e globalizada – carregando consigo uma multiplicação dos danos e dos agentes lesados –, fez sentir que a reação penal e contraordenacional (e principalmente neste campo contraordenacional) se preocupou predominantemente com a deteção e sanção dos comportamentos ilícitos, mas deixando as respetivas vítimas desprotegidas, com prejuízos por reparar.
Em infrações particularmente lesivas (nomeadamente com vários lesados), por muito que a Justiça demorasse, a sanção acabava por chegar, mas às vítimas fora atribuído o papel de, através da sua janela de casa, ou através dos media, mirar a punição dos agentes do crime, sendo-lhes exigido que se contentassem com ela, enquanto os seus danos permaneciam por ser compensados.
Não se pode olvidar que além da comunidade, da confiança na efetividade das normas na proteção dos direitos fundamentais, o ilícito criminoso pode provocar um conjunto de danos sofridos pelas vítimas do crime. É em função da tutela dos bens jurídicos (artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal, doravante ‘CP’) – a qual engloba a tutela contra danos, já que os mesmos são consequência da lesão de bens jurídicos – que surge a incriminação de um comportamento e a correspetiva pena. As vítimas do crime não podem ser esquecidas ou subestimadas, uma vez que são elas as principais destinatárias da conduta criminosa, com isso sofrendo prejuízos diretamente advindos da conduta delitual.
Com efeito, a reparação dos danos da vítima no processo penal é fonte de um conjunto de vantagens, em geral: permite uma reordenação dos incentivos dos agentes (se o agente criminoso colhe benefícios da reparação de danos, tenderá a fazê-la; se sai prejudicado, tenderá a evitar condutas danosas); propicia ao agente uma forma mais ajustada de reintegração e concertação para com a vítima e para com a sociedade, realizando os fins de prevenção geral e especial da pena, mas com um menor sacrifício dos direitos fundamentais do agente; aproxima o agente do Direito e facilita uma administração da Justiça mais eficiente; e, por fim, reforça a confiança das vítimas e da comunidade nos Tribunais enquanto instâncias de realização da Justiça.
Com estas preocupações, o legislador nacional e europeu (v.g., Lei n.º 59/98, de 25 de agosto,a reforma de 2007 do Código Penal, Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, a Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro; a Diretiva 2012/29/EU que estabeleceu normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas de crimes; bem como as demais concretizações de fenómenos de justiça restaurativa como a Lei n.º 21/2007, de 12 de junho), procurou redefinir o papel da vítima do crime e, em princípio, facilitar a sua tutela e compensação de danos.
A verdade é que, no atual quadro normativo, os lesados pelo crime beneficiam de vários mecanismos em direção à reparação dos danos por si sofridos.
A aplicação destes mecanismos, apesar de frequente, tem sido fragmentada, não se compreendendo, por vezes, a natureza jurídica que as várias formas de reparação no processo penal podem assumir, ou, o seu respetivo regime. Por exemplo, em certos mecanismos – como a relevância da reparação de danos para a determinação da medida pena, para a sua atenuação, para a suspensão da execução da pena, entre outros – o respetivo regime (se existir) tem ficado subdesenvolvido. Por conseguinte, permanece dúbio saber quais os critérios de controlabilidade ou aceitação pelo julgador da reparação dos danos realizada pelo agente no quadro do Direito penal (queremos dizer: fora do Direito privado).
Nesta senda, a obra “Indemnização “própria” e “imprópria” em processo penal” procura agrupar as principais formas de reparação de danos no Direito penal, propondo uma reorganização sistemática entre duas categorias distintas: i) a indemnização própria; e a ii) indemnização imprópria.
A indemnização própria consiste no pedido de indemnização civil (o chamado PIC, previsto nos artigos 71.º e ss. do Código de Processo Penal, doravante ‘CPP’), ao passo que a indemnização imprópria se prende com as demais formas alternativas aptas levar a uma reparação dos danos provocados pelo crime, entre as quais:
- A reparação de danos enquanto fator determinador da medida da pena (artigo 71.º, n.º 2, al. e) do CP);
- A atenuação especial da pena em função da reparação dos danos (artigo 72.º, n.º 2, al. c) do CP);
- A suspensão da pena em função da reparação dos danos (artigo 51.º, n.º 1 do CP);
- Dispensa da pena em virtude de o dano ter sido reparado (artigo 74.º, n.º 1, al. b) do CP), e a possibilidade de arquivamento se for aplicável a mesma dispensa de pena (artigo 280.º do CPP);
- A suspensão provisória do processo por via da reparação dos danos (artigo 281.º do CPP);
- A aplicação de admoestação se o dano tiver sido reparado (artigo 60.º, n.º 1 do CP);
- Também as demais formas de extinção da responsabilidade criminal ou a sua atenuação nos vários regimes dos crimes contra o património (v.g., furto, o abuso de confiança, a apropriação ilegítima, a alteração de marcos, e a burla, cfr. os artigos 206.º, 209.º, n.º 3, 212.º, n.º 4, 213.º, n.º 3 e 4, 216.º, n.º 3, 217.º, n.º 4, 218.º, n.º 4, 219.º, n.º 5, 220.º, n.º 3, 221.º, n.º 6, 222.º, n.º 3, 224.º, n.º 4, 225.º, n.º 4 e 6, 231.º, n.º 3 al. a) do CP).
Por um lado, porquanto a indemnização própria se rege pelo Direito civil (artigo 129.º do CP), pretendemos fornecer uma síntese das preocupações essenciais da responsabilidade civil, desde os seus pressupostos, até a temas específicos de quantificação de danos que podem surgir no quadro do PIC (por exemplo, o conceito de dano e as suas modalidades; o problema da restituição do lucro ilícito; e a quantificação equitativa dos danos). Por outro, na investida de agrupar as várias formas de indemnização imprópria, procuramos por um regime que seja comum a essas formas e que permita aos Tribunais valorar da relevância, existência e extensão dos danos causados pela conduta criminosa e, consequentemente, da reparação jurídico-penal exigível ao agente.