José Gonçalves Machado

Professor Auxiliar na Faculdade de Direito da Universidade Lusófona.
Advogado.
Investigador Integrado no Centro de Estudos Avançados Francisco Suárez.


Consulte a sua obra neste link.


SUMÁRIO: 1. Enquadramento; 2. Conteúdo dos princípios orientadores; 3. Natureza dos princípios orientadores; 4. Função ‘revitalizadora’ dos princípios orientadores; 4.1. Extensão excecional do período de suspensão no âmbito do PER; 4.2. Responsabilidade dos gestores por violação de deveres de informação, cooperação e lealdade; 5. Conclusão.

1.Enquadramento

No Memorando de Entendimento celebrado em 2011 entre Portugal, o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional, ficou estipulado o compromisso de definir “princípios gerais de reestruturação voluntária extrajudicial em conformidade com boas práticas internacionais” (compromisso 2.18), o que veio a ser concretizado por via da Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25 de outubro – que não consta na lista de atos normativos típicos do art. 112.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) – que, assim, institui os Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores, abreviadamente designados por “Princípios Orientadores”.

De acordo com o referido diploma, os Princípios Orientadores “têm como objetivo a promoção dos mecanismos de reestruturação extrajudicial de devedores, ou seja, de procedimentos que permitem que, antes de recorrerem ao processo judicial de insolvência, a empresa que se encontra numa situação financeira difícil e os respetivos credores possam optar por um acordo extrajudicial que visa a recuperação do devedor e que permita a este continuar a sua atividade económica”.

Assim é porque se lhes reconhece maior flexibilidade, celeridade e eficiência, quando comparados com a recuperação judicial de empresas, mormente no contexto da insolvência. A flexibilidade, celeridade e eficiência, enquanto reflexo da extrajudicialidade, são apresentadas como vantagens que contribuem, designadamente, para: facilitar a conclusão das negociações com sucesso; promover a recuperação das empresas viáveis; aumentar o grau de recuperação de crédito; preservar as relações contratuais entre as empresas em dificuldades e os respetivos trabalhadores, clientes e fornecedores; descongestionar os tribunais com este tipo matérias que podem ser resolvidas entre as partes envolvidas.

Como objetivo de promover o acesso a tais vantagens, os Princípios Orientadores –“tendo em conta as boas práticas e recomendações internacionais existentes nesta matéria, nomeadamente o Statement of Principles for a Global Approach to Multi-Creditor Workouts, publicado pela Insol International, e as soluções internacionais, nomeadamente europeias” – consagram um “conjunto de regras a serem seguidas pelas partes, se assim o entenderem, com o objetivo de potenciar o processo negocial iniciado tendo em vista a recuperação de uma empresa, contribuindo para o aumento do número de negociações concluídas com sucesso”.

Doze anos depois, quando a palavra “crise” já parece fazer parte da normalidade dos nossos dias, pergunta-se: para que servem os “Princípios Orientadores” aprovados por uma Resolução do Conselho de Ministros?

Antes de responder a esta pergunta, procuraremos perceber, primeiramente, quais são os princípios orientadores em causa e para que servem; seguidamente, procuraremos entender qual a sua natureza, maxime se estamos perante verdadeiras normas jurídicas, dotadas de imperatividade e coercibilidade, ou se estão em causa meras orientações que legalmente não vinculam os destinatários. Por fim, debruçar-nos-emos sobre a sua função “revitalizadora”, dando enfâse a algumas das suas implicações teórico-práticas, em particular à extensão excecional do período de suspensão no âmbito do PER e à responsabilidade dos gestores por violação de deveres de informação, cooperação e lealdade. Como corolário deste breve estudo, daremos resposta à pergunta inicial em sede de conclusão.

2.Conteúdo dos Princípios Orientadores

Os Princípios Orientadores dizem o modo como o devedor e os credores devem atuar durante as negociações de um plano (acordo) de recuperação do devedor.

Quanto à empresa devedora, é dito que o processo de reestruturação preventiva se aplica ou deve ser iniciado apenas quando houver uma forte probabilidade de superar os problemas financeiros (Primeiro Princípio); que (a empresa devedora) deve partilhar informação relevante (Quarto e Sétimo Princípios); que deve apresentar propostas de recuperação viáveis e credíveis (Nono e Décimo Princípios), e que não pode praticar qualquer ato que prejudique os direitos e as garantias dos credores ou que, de algum modo, afete negativamente as suas perspetivas de recuperação (Sexto Princípio).

Quanto aos credores, diz-se que os mesmos estão obrigados a cooperar entre si e com a empresa devedora de modo a conceder um período de suspensão para que esta possa partilhar informação e apresentar uma proposta de recuperação (Quarto Princípio); ainda dentro desse espírito de cooperação, os credores durante esse período, devem abster-se de intentar novas ações judiciais, devem suspender as que se encontrem pendentes (Quinto Princípio), devem buscar uma solução construtiva que satisfaça todos os envolvidos (Segundo Princípio), devem guardar confidencialidade relativamente a informações recebidas (Oitavo Princípio), e devem reconhecer como garantido o financiamento concedido durante a suspensão ou no âmbito da reestruturação da dívida (Décimo Primeiro Princípio).

3.Natureza dos Princípios Orientadores

Como facilmente se intui pelo que dissemos anteriormente, aquilo que o legislador designa por “princípios”, e com exceção da referência apropriada ao princípio da boa-fé, não são princípios gerais de direito, mas antes deveres gerais de conduta[i].

Ao adjetivá-los como princípios poder-se-ia ficar com a ideia de que estão em causa verdadeiros princípios gerais de direito. Mas ao classificá-los como “orientadores” e esclarecer que estão em causa “regras a serem observadas pelas partes” [ii], o legislador não deixa margem para dúvidas:   estamos perante deveres gerais de conduta, o que é confirmado pelo seu conteúdo. Efetivamente estamos perante comandos gerais e abstratos suficientemente concretizados que dizem, ainda que de forma genérica, o modo como a empresa devedora e os credores se devem comportar durante as negociações de um acordo de reestruturação.

Por remissão expressa no art. 17.º-D, n. 12 do CIRE[iii] e do art. 5.º, n. 1 do RERE[iv], tais Princípios Orientadores (rectius, regras de conduta) são igualmente aplicáveis às negociações decorridas no âmbito do PER e do RERE. Por conseguinte, qualquer que seja o instrumento de recuperação pré-insolvencial escolhido, dir-se-á que durante as negociações os intervenientes devem sempre atuar de acordo com os tais Princípios Orientadores.

Discute-se, porém, se os mesmos são legalmente vinculativos ou meras orientações de adesão voluntária. Esta dúvida surge porque tais Princípios Orientadores foram introduzidos por via de uma Resolução do Conselho de Ministros, a qual não consta na lista de atos normativos típicos definidos no artigo 112.º da CRP. Nuno Pinto Oliveira[v] acrescenta que o problema é agravado “pela circunstância de o primeiro princípio dizer que ‘[o] procedimento extrajudicial corresponde a um compromisso assumido entre o devedor e os credores envolvidos, e não a um direito’ (do devedor), e de o quarto princípio dizer que o ‘período de suspensão’, pressuposto pelo procedimento extrajudicial, ‘é uma concessão dos credores envolvidos, e não um direito do devedor’”.

Na doutrina, Bruno Ferreira[vi] responde negativamente àquela questão, sustentando que, quando muito, tais regras podem servir de mera orientação para a conduta das partes nos instrumentos tipificados na lei e nada mais do que isso. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[vii] parecem negar que tais princípios possam sequer ter essa utilidade de mera orientação, já que os mesmos não consagram nada de novo: boa parte deles tem expressão direta nos instrumentos de recuperação, e outros já resultam da lei geral, designadamente do art. 227.º, n. 1 do CC. Outra parte da doutrina, de que são exemplo Ana Prata, Jorge Morais Carvalho, Rui Simões[viii], e Catarina Serra[ix] reconhece que a remissão expressa para os referidos princípios confere-lhes um carácter impositivo no contexto desses instrumentos de recuperação (maxime do PER e do RERE). Este tem sido o entendimento acolhido pela jurisprudência[x].

Destaca-se ainda a posição de Nuno Pinto Oliveira[xi], que, sem colocar em causa este último entendimento, vai mais longe e, pelo que nos é dado a entender, sustenta que a obrigatoriedade dos Princípios Orientadores não pode ser afastada, pura e simplesmente, pelo facto de constarem num ato não normativo, uma vez que o conteúdo desses princípios orientadores (leia-se deveres de conduta) deriva do princípio geral da boa-fé, estando em causa, mais concretamente, especificações dos deveres de informação, cooperação e lealdade que dele decorrem[xii]. O princípio da boa-fé, consagrado nomeadamente nos arts. 227.º, n. 1, 437.º, n. 1, 762.º, n. 2 do CC, constando de um ato normativo sentido do art. 112.º da CRP, não padecerá de falta de imperatividade.

Assim sendo, o autor sustenta que os argumentos em desfavor da “vinculatividade” dos Princípios Orientadores podem ser contrariados pela sua conexão sistemática e teleológica com princípio da boa-fé e suas concretizações. Assim se entenderiam melhor (e adequadamente) as remissões do art. 17.º-D, n. 12 do CIRE e do art. 5.º, n. 1 do RERE para tais Princípios Orientadores. Nessa conformidade, as “orientações” constantes na Resolução do Conselho de Ministros 43/2011, de 25 de outubro, seriam sempre exigíveis às partes envolvidas num processo negocial por força da boa-fé, independentemente de estarem escritas ou concretizadas num ato normativo ou num ato não normativo. Vejamos se assim é.

Primeiramente devemos começar por observar que não atuaria de boa-fé a empresa que recorresse a um processo de reestruturação, ainda que informal, se não procurasse verdadeiramente negociar um acordo de recuperação, no sentido de levar a cabo uma reestruturação que lhe permitisse manter-se em atividade, assegurar os postos de trabalho, pagar aos seus credores e produzir um retorno para os seus acionistas.

Pressupõe-se, por isso, que a empresa devedora enfrente dificuldades sérias e seja suscetível de recuperação, isto é, que a necessidade reestruturação seja real. Não seria legítimo solicitar a colaboração aos credores quando se sabia ou deveria saber à partida que o processo negocial, muito provavelmente, estaria destinado ao fracasso. Uma vez iniciado o processo negocial, por imposição da boa-fé, a empresa devedora deverá adotar uma conduta transparente, partilhando com os credores toda a informação relevante e prestando os esclarecimentos necessários. Além disso, deverá cooperar com os credores no sentido de encontrar um plano de recuperação viável e credível, respondendo às propostas apresentadas pelos credores e não adotando qualquer conduta que possa ameaçar os interesses dos credores.

Sob o ponto de vista dos credores dir-se-á que, quando confrontados com o pedido de negociação de um acordo de reestruturação por parte de uma empresa em dificuldades e suscetível de recuperação, os mesmos são impelidos, por imposição da boa-fé,  a fornecer as informações que se revelem necessárias à negociação e conclusão do acordo, bem como a cooperar, criando as condições para que a negociação seja possível e profícua e contribuindo ativamente para uma solução construtiva que atenda aos interesses de todos os envolvidos.

Tal impede, por exemplo, que os credores, durante as negociações, coloquem em causa a hipótese de recuperação através da instauração ou persecução de ações judiciais contra a empresa devedora, sobretudo se estiverem em causa ações de natureza executiva ou outras que possam paralisar a sua atividade e/ou colocar em causa a hipótese de recuperação que lhes seria mais vantajosa.

O esforço e cooperação entre as partes determinará ainda, por imposição da boa-fé, que reconheçam que quem se dispõe a conceder um financiamento adicional à empresa devedora possa ser compensado com a constituição adequada de garantias destinadas a prover a satisfação do respetivo crédito em caso de futura insolvência se tal financiamento for necessário e adequado a garantir a continuidade da empresa.

Em complemento aos deveres de informação e cooperação, a boa-fé exige também que empresa devedora seja leal para com os credores, no sentido de não adotar qualquer ato que, de alguma forma, coloque em causa a possibilidade de recuperação e/ou afete negativamente os interesses dos credores, colocando-os em pior situação do que estariam se o processo negocial não tivesse sido iniciado. Da mesma forma, a boa-fé impede que, por respeito a idêntico dever geral de lealdade daí resultante, um credor envolvido nas negociações possa revelar informação confidencial ou a utilizá-la para outros fins.

Face ao exposto, parece-nos que não é possível sustentar que as partes envolvidas num instrumento informal de negociação de um acordo de recuperação pré-insolvencial podem optar por não respeitar as regras de condutas estabelecidas no Anexo da Resolução do Conselho de Ministros 43/2011, de 25 de outubro, pelo facto de constarem num diploma que não integra o catálogo de atos normativos típicos definidos no artigo 112.º da CRP.

Na verdade, as regras de conduta aí estabelecidas correspondem, grosso modo, a um imperativo da boa-fé, concretizado em deveres de informação, cooperação e lealdade que dela derivam, cuja imperatividade não se questiona. Nesse sentido, ao remeterem expressamente para os Princípios Orientadores, o PER e o RERE não lhes estão a conferir obrigatoriedade normativa, mas antes a reconhecer a sua imperatividade intrínseca, que resulta da boa-fé.

Uma solução contrária poderia levar a situações indesejáveis e incoerentes. Repare-se que tanto o RERE como o regime especial do PER previsto no art. 17.º-I do CIRE preveem que as negociações decorram num ambiente extrajudicial em que predomina o carácter voluntário do processo negocial e dos seus efeitos. No primeiro caso, as partes estariam vinculadas aos Princípios Orientadores e no segundo caso não, uma vez que não existe qualquer remissão expressa do art. 17.º-I do CIRE para os referidos princípios, nem tampouco para o art. 17.º-D, n. 12 do CIRE, que manda aplicar os referidos princípios ao regime comum do PER. Não vemos nenhuma razão substancial para se considerar que as partes devem observar tais princípios no âmbito do RERE e não devem observá-los no âmbito do regime especial do PER.

Com efeito, se ao regime comum do PER se aplicam, por remissão expressa do art. 17.º-D, n. 12, os Princípios Orientadores especificamente desenvolvidos para os instrumentos informais e extrajudiciais, não faria sentido que as mesmas regras gerais de conduta não se aplicassem relativamente ao regime especial. Apesar da ausência de uma remissão expressa deste regime especial para os referidos Princípios Orientadores, resulta do art. 17.º-I do CIRE que o PER pode igualmente iniciar-se pela apresentação pela empresa de acordo extrajudicial de recuperação. Se assim é, não vemos qualquer razão substancial para não se aplicar os referidos Princípios Orientadores que, originariamente, foram pensados exatamente para a recuperação extrajudicial.

Além disso, a estreita conexão do princípio da boa-fé com a finalidade e conteúdo vertidos na Resolução do Conselho de Ministros 43/2011, de 25 de outubro, e nos regimes do PER e do RERE, impediria, por razões teleológicas e de coerência sistemática, que houvesse uma “desproteção” ou “desregulamentação” da conduta das partes precisamente onde a boa-fé mais necessita de ser concretizada devido à ausência de um procedimento formalmente instituído.

A sua finalidade, a recuperação de empresas pré-insolventes e suscetíveis de recuperação, é comum aos procedimentos não institucionalizados (informais e extrajudiciais), bem como ao PER e ao RERE. Existe um conteúdo mínimo de regras de conduta que é comum em todos eles, e que poderíamos resumir ao seguinte: durante a negociação do acordo, as partes devem abster-se de praticar atos que os prejudiquem mutuamente e ameace a negociação e conclusão do acordo; o acordo deve ser apto a manter a empresa em atividade e não deve deixar os credores em pior situação do que estariam na ausência de acordo; deve ser concedida uma proteção especial aos negócios destinados a alcançar a recuperação, caso a empresa venha a ser declarada insolvente.

Dessa forma, e apoiados na posição de Nuno Pinto Oliveira[xiii], consideramos que os elementos teleológico e sistemático militam a favor da aplicação e vinculatividade do conteúdo vertido nos Princípios Orientadores, enquanto concretização do princípio da boa-fé, também nos casos em que as negociações decorram fora do PER e do RERE, por via de procedimentos negociais ad hoc.

4.Função ‘revitalizadora” dos Princípios Orientadores

Os Princípios Orientadores desempenham uma dupla função: por um lado, funcionam autonomamente para os procedimentos negociais ad hoc (extrajudiciais e informais); por outro lado, funcionam como complemento ao PER e ao RERE, enquanto regime subsidiário e elemento de interpretação. Em ambos os casos, os Princípios Orientadores servem o mesmo propósito: o de promover a revitalização dos devedores que se encontrem em situação económico-financeira difícil e sejam económica e financeiramente viáveis.

4.1.Extensão excecional do período de suspensão no âmbito do PER

Temos já defendido, por exemplo, que o recurso aos Princípios Orientadores, maxime ao Quarto Princípio, permite que, em determinadas circunstâncias, o tribunal possa estender o período de suspensão previsto no PER para além do limite formal aí consagrado[xiv].

A dimensão da empresa devedora, o número de partes afetadas e o grau de complexidade do plano são, certamente, fatores que têm impacto no tempo que é necessário para concluir as negociações. Recuperar uma grande empresa, com um elevado número de credores, por meio de um complexo plano de reestruturação, não é o mesmo que recuperar uma pequena empresa, com um número reduzido de credores, por meio de um plano simples de reestruturação. O tempo que todos os intervenientes (empresa devedora, credores, administrador judicial provisório e tribunal) precisam de empenhar tende a ser significativamente mais longo na primeira hipótese.

Consciente disso, o legislador europeu admite que o período de suspensão, durante o qual decorrem as negociações, poderá ser prorrogado até ao máximo de 12 meses, tal como consta no art. 6.º, n. 8 da Diretiva (UE) 2019/1023. O legislador nacional não consagra tal possibilidade, mas não se pode dizer que seja totalmente insensível à problemática e a uma solução adequada (ao caso concreto) que a mesma reclama.

O carácter imperativo e perentório dos prazos parece ser contrariado pela remissão expressa do art. 17.º-D, n. 12 do CIRE para os Princípios Orientadores, maxime para o Quarto Princípio, onde se estabelece o seguinte: “os credores envolvidos devem cooperar entre si e com o devedor de modo a concederem a este um período de tempo suficiente (mas limitado) para obter e partilhar toda a informação relevante e para elaborar e apresentar propostas para resolver os seus problemas financeiros”.

Sendo assim, perante um pedido excecional de extensão do prazo, devidamente fundamentado, parece que o juiz, concluindo que as partes não beneficiaram do tempo suficiente e que existe uma chance séria e realística de recuperação, está autorizado a conceder um prazo razoável para que o acordo possa ser concluído.

4.2.Responsabilidade dos gestores por violação de deveres de informação, cooperação e lealdade

Outro aspeto, porventura mais complexo, que toca nos Princípios Orientadores prende-se a responsabilidade dos gestores por violação de deveres de informação, cooperação lealdade, maxime, sobre a possibilidade de se fazer uma interpretação extensiva da hipótese prevista no art. 17.º-D, n. 13, apelando aos Princípios Orientadores. [xv]

No art. 17.º-D, n. 13, do CIRE determina-se que os “administradores de direito ou de facto são solidária e civilmente responsáveis pelos prejuízos causados aos seus credores em virtude da falta ou incorreção das comunicações ou informações a estas prestadas”.

Nuno Pinto Oliveira[xvi], assumindo que a letra da lei fica aquém do seu espírito, defende que a norma deve ser objeto de uma interpretação extensiva “para que se aplique à violação de todos os deveres acessórios de conduta contidos na relação jurídica de negociação ou de renegociação do conteúdo do contrato”. O autor argumenta que os deveres de informação e esclarecimento estão no mesmo patamar que os deveres de cooperação e lealdade. Portanto, se os gestores respondem pela violação dos primeiros, não há uma razão fundamental para que também não respondam pela violação dos segundos. Para o autor “não há nenhuma diferença fundamental, capaz de explicar e/ou de justificar que o devedor responda pela violação de deveres de esclarecimento ou de informação e não responda pela violação de deveres de cooperação ou de deveres de lealdade”[xvii].

Na verdade, se olharmos ao espírito da lei, percebemos que o objetivo do legislador passa por corresponsabilizar os gestores envolvidos no processo negocial de modo a penalizar qualquer conduta relevante que possa prejudicar os credores envolvidos. No fundo, pretende-se reforçar a confiança e segurança dos credores no processo negocial de recuperação.

Mas também se espera que os gestores cooperem com os credores e adotem uma conduta leal, isto é, que não recorram ao PER com o objetivo de tirar partido da informação trocada com os credores e/ou de simplesmente atrasar a declaração de insolvência. Seria, de facto, uma deslealdade se os gestores recorressem ao PER apenas para retardar a insolvência. Seria também inadmissível que os gestores não cooperassem com os credores na construção de um acordo de recuperação, não respondendo às propostas dos credores e/ou negando o envolvimento de determinados credores na construção dessa solução.

Este dever de cooperação expressa a obrigação de os gestores estabelecerem negociações tendo em vista a celebração de um acordo de recuperação. Nesse processo negocial (que existe porque se quer promover a recuperação das empresas viáveis) é relevante não só que se diga a verdade e se esclareçam dúvidas ou questões, mas também que se seja leal e cooperante.

Assim, haverá identidade de razão entre a responsabilidade pela violação dos deveres de informação e esclarecimento e a responsabilidade pela violação de deveres de cooperação e lealdade, os quais traduzem ou corporizam a obrigação de estabelecer negociações. Considera-se, por isso, justificada a interpretação extensiva proposta por Nuno Pinto Oliveira[xviii].

Porém, este entendimento, aparentemente, deixa de fora os gestores das empresas credoras. Ainda que de forma imprecisa, fica-se com a ideia de que os gestores das empresas devedoras têm obrigações a cumprir e que os gestores das empresas credoras não. Isto levaria a resultados inaceitáveis, sem que houvesse razão bastante para tal.

Estando em causa uma negociação, a participação, o envolvimento e o contributo de cada um são relevantes. Não basta que o gestor da empresa devedora apresente informação verdadeira, esclarecimentos sérios, ou propostas razoáveis e credíveis de recuperação da empresa pré-insolvente. Os gestores das empresas credoras (e demais credores) também são chamados a fornecer informação verdadeira, prestar esclarecimentos sérios, e propostas ou contrapropostas viáveis e credíveis.

Um gestor (de uma empresa credora) que não apresente informação verdadeira relativamente ao seu crédito, que apresente uma contraproposta manifestamente inexequível e/ou contendo informação falsa, poderá contribuir decisivamente para o fracasso do processo negocial, o que, inclusivamente, poderá levar a uma situação de insolvência.

Os Princípios Orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros 43/2011, de 25 de outubro, confirmam que “os credores envolvidos devem cooperar entre si e com o devedor” e que “as partes devem atuar de boa-fé, na busca de uma solução construtiva que satisfaça todos os envolvidos”.

Por conseguinte, a teleologia do art. 17.º-D, n. 13, do CIRE tem implícita a responsabilização dos gestores não só das empresas devedoras, mas também das empresas credoras quando estes violem quaisquer deveres acessórios de conduta contidos na relação jurídica de (re)negociação de um acordo de recuperação, designadamente, deveres de informação, esclarecimento, cooperação e lealdade.

Ainda assim, o art. 17.º-D, n. 13, do CIRE tem uma limitação que parece inultrapassável: aparentemente, o mesmo aplicar-se-á apenas ao regime comum do PER previsto nos arts. 17.º-C a 17.º-H do CIRE, e não ao regime abreviado ou especial previsto no art. 17.º-I do CIRE, por falta de remissão expressa desta norma para o art. 17.º-D, n. 13, do CIRE. Significa isto que os gestores não podem ser responsabilizados pela violação dos deveres acessórios de conduta no âmbito dos instrumentos negociais híbridos ou extrajudiciais em que o processo negocial decorra fora dos tribunais?

Certamente que não, pois esta solução conduziria a resultados insatisfatórios já que deixaria mais desprotegidas as partes envolvidas numa situação em que até se exigiria uma maior proteção legal em sede de responsabilidade dos gestores, já que as negociações ocorrem num ambiente informal, sem qualquer controlo judicial e/ou sem qualquer supervisão de um administrador judicial provisório, e possivelmente com o envolvimento de um número reduzido de credores.

Ademais, se estão em causa procedimentos negociais materialmente idênticos, para os quais o legislador teve a preocupação de aplicar os mesmos Princípios Orientadores, definindo, assim, um conteúdo mínimo da conduta exigível, mal se compreenderia que tratasse de forma diferente situações idênticas sem que houvesse uma justificação plausível e razoável. Portanto, se para a negociação formal, com mais “garantias”, mais controlo e fiscalização e menor grau de liberdade para os intervenientes, o legislador estabelece uma norma de responsabilização pessoal dos gestores, por maioria de razão o deveria fazer para a negociação informal e/ou extrajudicial, com menores “garantias”, sem controlo e fiscalização direta, e mais grau de liberdade para os intervenientes, pois que, nestes casos, o risco de haver violação dos deveres acessórios de conduta é mais elevado ou, pelo menos, a proteção dos terceiros, tende a ser menor.

Por conseguinte, se o legislador decide responsabilizar os gestores nas situações em que menos se justificaria, por comparação com outros mecanismos de controlo que implementou, por maioria de razão se deverá entender que os gestores poderão ser responsabilizados nas situações em que os instrumentos de negociação oferecem menos proteção aos credores envolvidos nas negociações.

Estando em causa situações material e teleologicamente análogas e não havendo resposta expressa para o regime especial do PER, para o RERE e para os instrumentos negociais informais, poderá justificar-se o recurso à analogia jurídica para suprir aquela lacuna normativa caso se entenda que o regime geral não é apto, por si só, a cobrir as situações de violação de deveres de informação, cooperação e lealdade no âmbito dos demais instrumentos de recuperação pré-insolvencial (para além do regime comum do PER).

Isto posto, o art. 17.º-D, n. 13, do CIRE tem como efeito visível a proteção daqueles que participam nas negociações conducentes à recuperação preventiva das empresas pré-insolventes.

5.Conclusão

Os Princípios Orientadores, aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25 de outubro, são, sem sobra de dúvida, um “recurso jurídico” que merece ser explorado para uma melhor compreensão do sistema pré-insolvencial de recuperação de empresas. Além de funcionarem, autonomamente, como critério mínimo da atuação no âmbito dos instrumentos extrajudiciais (e informais) de recuperação de empresas, desempenham (são chamados a desempenhar) um importante papel na compreensão dos regimes formais (RERE) e judiciais ou híbridos (PER). A sua maleabilidade permite dar resposta a problemas específicos destes instrumentos, suplantando as suas imperfeiçoes e incompletudes. 

Quando falamos na função “revitalizadora” dos Princípios Orientadores, queremos dizer que os mesmos necessitam de ser “reabilitados” pelo intérprete para que possam desempenhar adequadamente a dupla função a que são chamados: por um lado, estabelecer critérios mínimos de atuação no âmbito dos procedimentos negociais ad hoc (extrajudiciais e informais); por outro lado, cobrir as imperfeiçoes e incompletudes do RERE e do PER. Em particular, vimos que Princípios Orientadores impactam em duas questões relevantes: a extensão excecional do período de suspensão no âmbito do PER e a responsabilidade dos gestores por violação de deveres de informação, cooperação e lealdade.

Aqui chegados, fica claro para que servem os Princípios Orientadores!

Sem resposta fica a questão de saber por que motivo o intérprete lhes tem dado tão pouca atenção ao longo dos últimos 12 anos! Urge, por isso, revitalizar os Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Empresas.


[i] Aos princípios, normalmente, associamos um grau de indeterminação bastante maior que o grau de indeterminação das regras, ainda que se admita que entre eles possa haver casos de penumbra, em que a distinção não é clara. A indeterminação dos princípios aponta para comandos normativos abertos, que carecem ainda de determinação. As regras conformam um conjunto fechado (ou comandos normativos definitivos) relativamente a uma determinada matéria. Neste sentido, Robert Alexy («Sistema jurídico, principios jurídicos y razón practica», Doxa – Cuadernos de Filosofia del Derecho, n.º 5, 1998, p. 143-144) afirma que “o ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que se realize algo na maior medida possível, em relação às possibilidades jurídicas e fáticas”. As regras, por seu lado, “são normas que exigem um cumprimento pleno e, nesta medida, podem sempre ser somente cumpridas ou descumpridas. Se uma regra é válida, então, é obrigatório fazer precisamente o que ela ordena, nem mais nem menos” (Ibidem). Nessa conformidade, além do grau de indeterminação, os princípios distinguem-se das regras pelo modo como os comandos normativos operam. Os princípios não só dependem das possibilidades fáticas, como também das possibilidades jurídicas que venham a ser conformadas pelo legislador, a um nível inferior. As regras, simplesmente, sendo válidas, o que determinam é obrigatório, nem mais nem menos. A este respeito, Thomas Bustamante («Princípios, regras e conflitos normativos: um modelo para a justificação das decisões contra legem a partir da teoria jurídica de Robert Alexy», Direito, Estado e Sociedade, Nr. 37, 2010, p. 154-155) acrescenta que a operação básica dos princípios é a “ponderação”, enquanto a operação básica para a aplicação das regras é a “subsunção” ao caso concreto. Sublinhamos, no entanto, que os conceitos indeterminados e o grau de abstração não afetam o caráter de regra, a não ser que alcancem um grau extremo que não permita que se fale de determinação de um modelo de conduta. Diante disto, facilmente concluiremos que os “Princípio Orientadores” devem ser entendidos como regras e não como princípios, uma vez que definem um conjunto completo de normas de conduta suscetíveis de serem imediatamente aplicáveis aos procedimentos extrajudiciais de recuperação. Para outros desenvolvimentos sobre a distinção entre princípios e regras ver, designadamente, Manuel Atienza / Juan Manero, «Sobre princípios y reglas», Doxa – Cuadernos de Filosofia del Derecho, Nr. 10, 1991, p. 101-120; e Robert Alexy, «Derechos, razonamiento jurídico y discurso racional», Revista de Teoría y Filosofía del Derecho, Nr. 1, 1994, p. 38-50; Teoria da argumentação jurídica – A teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica, Landy Editora, São Paulo, 2001.

[ii] Resolução do Conselho de Ministros 43/2011, de 25 de outubro.

[iii] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de Março.

[iv] Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas,  introduzido pela Lei n.º n.º 8/2018, de 2 de março.

[v] «Entre código da insolvência e ‘Princípios Orientadores’: um dever de (re)negociação?», Revista da Ordem dos Advogados, Ano 71, Vol. II/III, 2012, p. 684-685.

[vi] «Mecanismos de alerta e prevenção da crise do devedor, em especial a recuperação extrajudicial», II Congresso Direito das Sociedades em Revista, Edições Almedina, Coimbra, 2012, p. 248-249.

[vii] Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, 2ª Ed., Quid Juris, Lisboa, p. 162.

[viii] Código da insolvência e da recuperação das empresas anotado, Edições Almedina, Coimbra, 2013, p. 61-63.

[ix] Lições de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2018, p. 327-329; Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas – Análise (e) Crítica, Almedina, Coimbra, 2016, p. 86.

[x] Por exemplo, no Ac. do TRL de 24.02.2015, Proc. 236/14.7YHLSB.L1-1 (Manuel Marques), sustenta-se que “os princípios elencados na Resolução do Conselho de Ministros nº 43/2011 de 25/10 foram recebidos pela própria lei (art. 17ºD/10 do CIRE), que assim os assimilou, passando a ter a força desta, devendo, durante as negociações, os intervenientes respeitar os princípios da cooperação e da boa-fé”. No mesmo sentido, Ac. do STJ de 03.03.2015, Proc. 1480/13.0TYLS.L1.S (João Camilo); Ac. do TRP de 08.07.2015, Proc. 261/14.8TYVNG.P1 (Manuel Domingos Fernandes); Ac. do TRC de 27.06.2017, Proc. 8389/16.3T8CBR.C1 (Isaías Pádua); e Ac. do TRL de 20.02.2014, Proc. 1258/13.0TJLSB.L1-2 (Jorge Leal).

[xi] «Responsabilidade pela perda de uma chance de revitalização», II Congresso de Direito da Insolvência, Edições Almedina, 2014, p. 157 e ss; «Entre código da insolvência e ‘Princípios Orientadores’: um dever de (re)negociação?», cit., p. 685-687.

[xii] Sobre as concretizações do princípio da boa-fé vê, por exemplo, António Menezes Cordeiro, «O princípio da boa-fé e o dever de renegociação em contextos de “situação económica difícil”», cit., p. 33-68; Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, cit., p. 327-329; e Nuno Pinto Oliveira, «Entre código da insolvência e ‘Princípios Orientadores’: um dever de (re)negociação?», cit., p. 680-686, «Responsabilidade pela perda de uma chance de revitalização», cit., p. 159-178; Princípios de direito dos contratos, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 161-194.

[xiii] «Entre código da insolvência e ‘Princípios Orientadores’: um dever de (re)negociação?», cit., p. 680-686, «Responsabilidade pela perda de uma chance de revitalização», cit., p. 159-178; Princípios de direito dos contratos, cit., p. 161-194.

[xiv] José Gonçalves Machado, «Indisponibilidade dos créditos tributários e alternativas às teses da nulidade parcial e da ineficácia relativa do plano de recuperação», Revista Electrónica de Direito, Vol. 32, Nr. 3(out-2023).

[xv] Sobre a responsabilidade dos gestores na pré-insolvência, José Gonçalves Machado, «A ponderação de interesses na pré-insolvência: aproximação à wrongful trading strategy», Revista de Direito das Sociedades, Ano XV (2023), Nr. 1, p. 59-111; «Chapter 13 – Directors’ duty to promote the negotiation in times of crisis: some reflections in light of Directive (EU) 2019/1023», INSOL Europe Yearbook 2022 – Insolvency Law in Times of Crises, LexisNexis, p. 205-221; «A StaRUG e a conduta devida dos gestores na pré-insolvência: alguns contributos para a interpretação conforme do art. 19.º da Diretiva 2019/1023/UE», Nota Informativa APDIR, Março 2022; «A responsabilidade civil dos gestores na pré-insolvência à luz da Diretiva 2019/1023/UE», Revista de Direito Comercial, 15-02-2022, p. 343-410; «O Dever de Promover a Negociação no âmbito dos Instrumentos pré-Insolvenciais de recuperação de empresas», De Legibus, Nr. 2, 2021, p. 187-237.

[xvi] «Entre Código da Insolvência e ‘Princípios Orientadores’: um dever de (re)negociação?», cit., p. 687.

[xvii] Ibidem, p. 687.

[xviii] Ibidem.