Nuno Poiares

Pós-doutorado em Direitos Humanos (IGC/CDH-FDUC)

Doutor em Sociologia do Direito Penal, Crime e Segurança (ISCTE-IUL)

Especialista em Direito Penal (Decreto-Lei n.º 206/2009, de 31 de agosto)

Oficial Superior da PSP, Professor Universitário e Investigador do ICPOL-ISCPSI


Polícia e Direitos Humanos – Multiculturalismo, Género, Saúde Mental e LGBTQIA+ é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado desde 2 de Fevereiro de 2023.

Consulte a obra neste link.


Em Portugal, após o 25 de abril de 1974, verificou-se a emergência acelerada da salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias das cidadãs e dos cidadãos (e.g., quatro meses após a Revolução, foi aprovado o Decreto-Lei n.º 406/74, de 29 de agosto, que ainda hoje garante e regulamenta o direito de reunião e manifestação), alicerçado na concordância axiológica entre a Constituição (1976) e os valores vertidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), apesar de surgirem alguns desses princípios nas Constituições anteriores; a par de um movimento de descriminalização, neocriminalização, a conversão de contravenções em contraordenações e a gradual consolidação dos meios de resolução alternativa de litígios, na senda da proposta norte-americana dos tribunais multiportas, sobretudo a partir de 2001, com a Lei dos Julgados de Paz, que também introduziu a mediação em Portugal (Gouveia, 2018).

Mas foi no ano de 1982 que surgiram vários marcos estruturantes da nossa Democracia: a) entrou em vigor o Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro; b) o Regime Penal Especial para Jovens, com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, porque se entendeu que um jovem imputável é merecedor de um tratamento penal especializado, sobretudo à luz do Código Penal em vigor, no qual a capacidade de ressocialização do ser humano é pressuposto necessário, em particular quando este se encontra ainda no limiar da sua maturidade, cf. vertido no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de setembro, correspondendo ao imperativo decorrente do art. 9.º do Código Penal; c) o Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, apesar de o regime das contraordenações, ter sido inicialmente introduzido pelo Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de julho; d) e a criação da Escola Superior de Polícia, atual ISCPSI, através do Decreto-Lei n.º 423/82, de 15 de outubro, para garantir que a imagem negativa da Polícia, como braço armado do Antigo Regime, projetasse uma nova realidade organizacional, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana e recordando o étimo de Polícia, enquanto sinónima de Civilização e Cultura (Afonso, 2018).   

Hoje, vivemos uma nova normalidade, de crise e incerteza, propensa à divisão entre as pessoas, à polarização e ao populismo, uma sociedade de risco mundial (Beck, 2015) e líquida, em que as relações sociais e económicas são frágeis, instáveis e maleáveis, em contraponto às sociedades com relações sólidas e duradouras (Bauman, 2001). Importa recordar que a Alemanha Nacional Socialista se consolidou após a Grande Depressão (1929), que agudizou as sanções aplicadas com o Tratado de Versalhes (1919), conduzindo a Alemanha para uma crise social, económica e política. E, quando é assim, as pessoas anseiam por alguém que lhes traga novamente a luz da esperança de uma vida melhor, nem que, para isso, tenham de abdicar parcial ou totalmente da sua liberdade. A nova normalidade na Europa (entre a pandemia, a crise social e económica e o conflito bélico Rússia-Ucrânia) pôs em causa o processo civilizacional, de que nos fala Norbert Elias (2006), e a ilusão de paz duradoura garantida desde 1945, com a criação da ONU e a aprovação, em 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que inspirou várias Constituições e Democracias. Aliás, o art. 16.º, n.º 2, da Constituição Portuguesa, estipula que os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a DUDH. Acresce que alguns autores defendem que a violência urbana tem crescido na Europa e que chegou o momento de abandonar a cultura da desculpabilização e da permissividade, e que algumas democracias conseguiram extirpar este perigo interior preconizando a firmeza face aos criminosos, devendo ser esse o caminho a adotar para reencontrarmos a segurança (Fenech, 2001). É verdade que o Direito Penal incorpora vários princípios constitucionais, contudo, a ciência penal e os Direitos Humanos não são conceitos antagónicos, porque a razão de existir do Direito Penal é atuar como instrumento limitador do poder punitivo, i.e., a ciência penal é o instrumento efetivo de tutela dos Direitos Humanos (Canterji, 2008).

Mas vejamos, então, os principais desafios do Direito Penal, na atualidade, à luz dos Direitos Humanos das mulheres, de forma resumida, brevitatis causa, ou seja, a evolução do tratamento da mulher no Direito Penal, em particular as questões relacionadas com a separação entre um plano material e um plano simbólico da realidade social, o que inspirou o conceito de efeitos simbólicos das leis, i.e., os efeitos que as leis teriam para além dos comportamentos, sobre as representações sociais, como defendia Jürgen Habermas (Guibentif, 2007). E é neste aspeto que continuamos a situar o maior desafio do Direito Penal, sobretudo quando pensamos na velocidade das representações sociais e a velocidade da legislação, situação que se agudiza em contextos multiculturais, materializando a bifurcação do Direito.

Comecemos pelo caso da violência doméstica. E porquê? É verdade que a abrangência deste tipo legal vai muito além da violência contra a mulher. Mas os números mais recentes, vertidos no RAMVD (MAI, 2022) e no RASI (SSI, 2022) revelam que a violência doméstica continua ser o tipo legal n.º 1 nos crimes contra as pessoas, e o crime n.º 2 no âmbito da criminalidade global, sobretudo nos meses de julho e agosto; onde a vítima-média, em 81,8% das ocorrências, é mulher, casada ou em união de facto, com idade média de 42 anos, não depende economicamente do denunciado (82,3%) e tem habilitações literárias iguais ou inferiores ao 9.º ano de escolaridade (60,1%), o que significa que a violência doméstica é um problema social que afeta, em particular, as mulheres.

O atual Código Penal reflete a importância do Ser (título I) sobre o Ter (título II). Mas nem sempre foi assim. A sistematização do anterior Código Penal (1886) colocava, na primeira linha, os crimes contra a religião e os interesses coletivos. As pessoas só apareciam depois dos crimes contra a religião e dos cometidos por abuso de funções religiosas (título I), os crimes contra a segurança do Estado (título II) e os crimes contra a ordem e a tranquilidade públicas (título III); e verificava-se um tratamento discriminatório negativo em relação à mulher, quando, por exemplo, o adultério, espelhando uma forte dimensão religiosa, apresentava um tratamento diferenciado entre homens e mulheres. O Código Penal (1886) foi, desde logo, aprovado por um decreto assinado pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça, o que revela a ligação umbilical entre os universos político e religioso, reforçando a convicção de que as questões da Igreja eram, também, questões da Justiça (Foucault, 2013; Poiares e Dias, 2019). Na verdade, o homem casado que achasse a sua mulher em adultério e, nesse ato, a matasse ou ao adúltero, ou ambos, era desterrado para fora da comarca por seis meses, nos termos do artigo 372.º, com a epígrafe adultério e forma de provocação. Mas, se as ofensas fossem menores, o homem casado não sofria qualquer pena. As mesmas disposições eram aplicadas à mulher casada que matasse a concubina teúda e manteúda, ou ao marido ou a ambos, ou lhes fizesse ofensas corporais, mas apenas se o facto ocorresse na casa conjugal. Este articulado revela-nos a forma como o legislador desvalorizava o adultério do homem casado, comparativamente com o adultério da mulher, assim como a previsão de uma proteção jurídica reforçada – sagrada – da casa conjugal. Esta diferenciação jurídico-criminal entre homens e mulheres intensificava-se com o teor vertido nos artigos 401.º e 404.º. Assim, o artigo 401.º, com a epígrafe adultério, impunha que o adultério da mulherfosse punido com pena de prisão de dois a oito anos. Por outro lado, nos termos do artigo 404.º – adultério de marido –, o homem casado que tivesse manceba teúda e manteúda na casa conjugal seria condenado na multa de três meses a três anos, o que revela que o adultério do homem casado era desvalorizado socialmente, sendo punido apenas se esse adultério ocorresse na casa conjugal, o que demonstra que o legislador encarava o lar de família como um espaço que devia manter-se puro, enquanto célula essencial para o enraizamento dos valores católicos. Acresce que também se entendia que só ocorria o crime de violação (in casu, da mulher) se existisse a penetração do vaso natural (Poiares e Dias, 2019). E também longe vai o tempo em que Otto Pollak (1950) defendia que os crimes cometidos pelas mulheres passavam despercebidos, devido ao seu papel predominantemente doméstico, e que eram naturalmente falsas e especializadas no encobrimento dos seus crimes, argumentando com base na sua biologia, pois aprenderam a esconder dos homens a dor menstrual e a simular o ato sexual (Pollak, 1950; Grilo e Poiares, 2022).

Mas muita água correu desde então. Em 1982 entrou em vigor o novo Código Penal, mas, ainda assim, manteve o então crime de maus tratos com a natureza semipública. Recordo-me que, quando comecei a estudar Direito Penal, em 1994, a violência doméstica era um não-assunto. Depois, em 1999, quando iniciei a atividade profissional, um dos pressupostos que tinha de estar preenchido e expressamente previsto nos autos de notícia, era a reiteração da conduta ilícita. Nesse ano, entrou em vigor, o I Plano Nacional de combate à Violência Doméstica (1999-2002) aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 55/99, de 15 de junho, e, no ano seguinte, a Lei n.º 7/2000 de 27 de maio, veio alterar a natureza (para pública) do crime de maus tratos, p. e p. pelo então art. 152.º do CP. Mas foi com a Reforma Penal de 2007 (Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro), que assistimos a um novo marco jurídico-penal, com a tipificação do crime de violência doméstica p. e. p. pelo novo art. 152.º do CP, com a natureza pública, que começa por referir Quem, de modo reiterado ou não…, impondo, materialmente, a inadmissibilidade do facto, independentemente do n.º de vezes que tenha ocorrido, apesar de a jurisprudência não ser unânime nesta matéria, pois importa que esse ato, ainda que pontual, ofenda a dignidade da pessoa humana (Poiares, 2020). Note-se que a própria Procuradoria-Geral da República, veio estabelecer procedimentos específicos a observar pelos magistrados do MP na área da violência doméstica, nos termos da Diretiva n.º 5/2019, de 4 de dezembro, determinando que, sempre que, aquando do registo de inquérito, se suscitarem dúvidas quanto à qualificação como violência doméstica da factualidade subjacente, deve aquela prevalecer, mantendo-se a mesma até ao momento em que seja inequívoco enquadramento diverso, metodologia que também foi adotada pelos OPC.

Assim, em 2022, também comemorámos 15 anos de existência de um novo tipo legal, facto que deve ser amplamente recordado. Desde então, foram sucedendo diversas alterações e novos diplomas, como a Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que estabeleceu o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas; a Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, que passou a incluir as relações de namoro no art. 152.º do Código Penal; a Lei n.º 16/2018, de 27 de março, que integrou na previsão de qualificação do homicídio os crimes cometidos no âmbito de uma relação de namoro, reforçando a sua proteção jurídico-penal; a Lei n.º 44/2018, de 9 de agosto, que reforçou a proteção jurídico-penal da intimidade da vida privada na internet, alterando os artigos 152.º e 197.º do Código Penal; a Resolução do Conselho de Ministros n.º 139/2019, de 19 de agosto, que determinou a elaboração de um manual de atuação funcional, por uma equipa que integre as estruturas formativas e operacionais da GNR, PSP, PJ, CEJ e PGR, e que inclua os procedimentos que devem ser desenvolvidos com vista à proteção e apoio à vítima, à preservação e aquisição urgente da prova, à contenção e definição da situação processual da pessoa agressora e ao desencadeamento e articulação com os procedimentos que corram simultaneamente termos na área de família e menores. Em maio de 2020 foram emanados novos instrumentos de combate à VD, como o manual de atuação funcional a adotar pelos OPC nas 72 horas subsequentes à apresentação de denúncia por maus-tratos em contexto de VD; um guia de Intervenção integrada junto de crianças ou jovens vítimas de VD; um plano anual de formação conjunta e um guia de requisitos mínimos para programas e projetos de prevenção primária para a violência contra as mulheres e VD; e, no ano de 2021, foi publicada a Lei n.º 57/2021, de 16 de agosto, que alargou a proteção das vítimas de VD, alterando a lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, o CP e o CPP; e a Portaria n.º 209/2021, de 18 de outubro, que aprovou o modelo de auto de notícia/denúncia padrão de violência doméstica a utilizar pela GNR, PSP, PJ e MP. Mas, ainda assim, há muito por fazer na desconstrução de preconceitos e estereótipos pois, como sabemos, não se mudam as mentalidades com uma lei. Ainda hoje, por exemplo, encontramos muitas pessoas que entendem que o crime de violência doméstica devia ter a natureza semipública ou que o Estado não tem de interferir em quadros desta natureza (Poiares, 2014).

Em paralelo, assistimos a um movimento que procura converter a natureza do crime de violação: primeiro, em 2014, com o projeto de lei 665/XII/4, proposto pelo Bloco de Esquerda; mais tarde, em 2021, um novo projeto de lei proposto pelo PAN e, em abril de 2022, foi entregue, na Assembleia da República, uma petição com mais de 100.000 assinaturas a pedir que a violação seja considerada crime público. O crime de violação encontra-se previsto no artigo 164.º do Código Penal, e envolve a conduta de constranger outra pessoa a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal, coito oral, atos de introdução vaginal, anal ou oral de parte do corpo ou objetos. É em geral punido com pena de prisão de um a seis anos. Atualmente, o crime de violação é um tipo legal com a natureza semipública, o que significa que o Ministério Público só está legitimado para promover a ação penal, nos termos dos arts. 219.º da CRP e 48.º do CPP, depois de a vítima apresentar a queixa, nos termos dos arts. 49.º do CPP e 113.º e ss do CP. Quando alguém pratica o crime de violação ofende, não só o direito à liberdade e autodeterminação sexual da vítima, como a sua honra e dignidade, nela criando sentimentos de vergonha e humilhação, que paralisam a vítima, demovendo-a de apresentar queixa, por medo do agressor e do olhar julgador da sociedade. A vítima tem medo de que a verdade a faça perder a sua identidade (Lopes, 2021). Algo que, no nosso entendimento, resulta do passado recente assente em relações sociais fortemente influenciadas pela Igreja Católica: um sentimento transmitido geracionalmente, que remonta a uma altura em que uma mulher vítima de violação, era triplamente vitimizada (pelo agressor, as instâncias formais e a comunidade) pois uma mulher, cujo vaso natural fosse desflorado, ainda que involuntariamente, era alguém que deixava de ser uma opção matrimonial para muitos homens, obstaculizando qualquer projeto de vida. E esse sentimento de vergonha, humilhação e receio da censura social ainda se encontra latente. É bom relembrar que, até 1991, na Grã-Bretanha, não se reconhecia a existência de violação no seio do casamento, pois existia o entendimento que um marido não podia ser acusado de violar a sua mulher, pois, pelo consentimento mútuo do contrato matrimonial, a mulher deveria entregar-se ao seu marido, a quem não se podia negar (Giddens, 2009).

A natureza semipública do crime de violação não visa diminuir a importância deste crime, mas somente salvaguardar os interesses da vítima que, na maioria das vezes, prefere esquecer o assunto, do que ver a sua intimidade discutida em tribunal, sobretudo em meios pequenos. O crime de violação, sendo um crime semipúblico, assegura que a possibilidade de a vítima ver a sua intimidade discutida em tribunal depende da sua vontade, que a protege, mas também a prejudica, já que, no seu íntimo, a sua vontade pode estar enviesada. Uma fragilidade do crime de violação ter a natureza semipública é o facto de as vítimas adultas disporem de apenas seis meses para apresentar queixa, findo o qual o direito extingue-se. Nessa medida, qual é, como questiona Ana Lopes (2021), o maior problema: a natureza semipública do crime de violação ou o prazo geral de extinção do direito de queixa?

Terminamos, invocando os principais desafios do Direito Penal, com um impacto (in)direto na promoção dos direitos das mulheres. Em primeiro lugar, não devemos esquecer a importância da Sociologia do Direito na prática jurídica, que Jean Carbonnier impulsionou em França, auxiliando o legislador, ao promover a divulgação dos novos diplomas, restabelecendo o contacto com os não-juristas, mitigando as taxas de ineficácia ou a alienação dos cidadãos em relação ao Direito (Alves, 2019). Por isso, temos de compreender que a velocidade das representações sociais nem sempre acompanha a velocidade da legislação, sobretudo num país cada vez mais multicultural. Recordamos, por exemplo, que entre janeiro de 2018 e dezembro de 2021 foram registados 433 casos de mutilação genital feminina em Portugal, e que, em média, a realização da mutilação ocorreu aos 8,4 anos de idade, maioritariamente na Guiné-Bissau (272) e Guiné Conacri (126), com um aumento gradual dos registos de mutilações praticadas no Senegal. Segundo a UNICEF, pelo menos 200 milhões de adolescentes e mulheres vivas hoje foram submetidas a mutilação genital feminina, em 30 países diferentes, sendo uma questão de Direitos Humanos e um problema de saúde que urge erradicar (DGS, 2022).

Importa também não cedermos a pressões, tentando que a velocidade da justiça seja a velocidade dos media; ou que esta última determine a velocidade da decisão política (Poiares, 2021), ou que se belisque o princípio da presunção da inocência vertido no art. 32.º, n.º 2, da CRP. Hoje sentimos que existe um descontentamento, em algumas franjas da sociedade, relativamente à democracia constitucional, verificando-se o colapso dos partidos mainstream, uma crise de representação, a emergência do discurso populista, anti diversidade, xenófobo, racista e eurocético, e o apelo a um aumento, sem sustentação científica, da severidade das penas ou do regresso da pena capital ou de duração ilimitada. O Direito Penal, enquanto projeção axiológica constitucional, não pode estar permeável ao discurso populista e eleitoralista, pois representa uma ameaça aos Direitos Humanos, podendo gerar uma ampliação das leis penais, i.e., o Direito (ou Estado) penal máximo, à luz de experiências assentes na tolerância zero ou a teoria das janelas partidas. Por isso, continua a ser necessário prevenir a discriminação em todas as suas formas, para garantir que não assistimos a um retrocesso, como demonstram vários episódios no mundo, como o assassinato de Hadis Najafi com 20 anos de idade, símbolo da revolta das mulheres no Irão, que morreu baleada durante uma manifestação, por ter sido filmada sem o véu islâmico, a apanhar o cabelo, em setembro de 2022; ou a alegada tentativa de golpe de Estado, em 7 de dezembro de 2022, por um grupo associado a uma célula da extrema-direita (Cidadãos do Reich), que rejeita a Constituição e apela ao derrube do Governo, tendo sido detidas, pela Polícia alemã, 25 pessoas – incluindo uma juíza alemã – que preparavam uma entrada armada no Parlamento alemão; o que nos fez recuar, mutatis mutandis, ao Putsch de Munique, uma tentativa falhada de golpe de Estado, quase um século antes, em novembro de 1923, onde Adolf Hitler foi preso e ganhou projeção (inter)nacional, permitindo, dez anos mais tarde (1933), que alcançasse o poder.

Este contexto suscita diversos desafios no domínio da Igualdade (de Género) que caracteriza a nossa ordem jurídica. Abdicar ou beliscar este princípio estruturante, vertido na Declaração Universal dos Direitos Humanos e consagrado na nossa Constituição, representa um retrocesso civilizacional, questão central que nos leva a convidar o(a) nosso(a) leitor(a) a mergulhar na Obra Polícia e Direitos Humanos: Multiculturalismo, Género, Saúde Mental e LGBTQIA+, lançada pelas edições Almedina, em fevereiro de 2023, e onde é abordado um tema social e cientificamente relevante, i.e., a trajetória da Polícia portuguesa, em democracia, face à Diversidade, maxime o multiculturalismo, os direitos das mulheres, o idadismo, a saúde mental e a comunidade LGBTQIA+, analisando diversos episódios, como a morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, em 2020, que envolveu três inspetores do SEF; e a denúncia, em 2022, de 591 profissionais da PSP e GNR, que, alegadamente, incitaram ao ódio e à violência nas redes sociais.

Referências

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