Jorge Bacelar Gouveia

Professor Catedrático e Decano da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade Autónoma de Lisboa, com mais de 300 títulos publicados.
Advogado (Bacelar Gouveia e Associados), Árbitro e Jurisconsulto.
Presidente do IDeS – Instituto de Direito e Segurança e do OSCOT – Observatório sobre Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo.


Direitos Fundamentais – Teoria Geral e Dogmática Constitucional é a mais recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado a 16 de Fevereiro de 2023.

Consulte a obra neste link.


1. Uma viagem de sucesso

I. Duvido que quem, no século XVIII, teorizou os direitos fundamentais constitucionais, no contexto da Ilustração, alguma vez pudesse imaginar a incrível viagem de sucesso que têm protagonizado até aos nossos dias.

É dessa viagem de sucesso – e de muitos outros temas – de que me ocupei no meu mais recente livro (espero que não seja o último…) – “Direitos Fundamentais: Teoria Geral e Dogmática da Constituição Portuguesa”[1] – agora publicado pela Livraria Almedina.

II. Viagem de sucesso, primo, porque os direitos fundamentais se tornaram logo um dos pilares do Constitucionalismo, que como movimento jurídico, político e filosófico fundaria um novo tipo histórico de Estado, a acrescer aos propostos por Georg Jellinek, o “Estado Constitucional”.

         É verdade que o Estado de Direito como Mutterprinzip tem sido muito mais do que os direitos fundamentais que tem vindo a gerar; só que neles os direitos fundamentais se mostrariam ser uma peça-chave na sua configuração congénita.

III. Viagem de sucesso, secundo, porque o aparecimento dos direitos fundamentais como realidade da Teoria e da Dogmática do Direito Constitucional suscitaram a adaptação de categorias mais antigas – como a dos “direitos de personalidade” – e impuseram mesmo a criação de tantas outras – como as “garantias dos administrados” no Direito Administrativo, as “garantias penais e processuais penais” no Direito Penal e Direito Processual Penal ou as “garantias dos contribuintes” do Direito Fiscal.

         Isto para já não falar na “dobragem” que o Direito Supraestadual fez em relação aos direitos fundamentais “constitucionais” com o fenómeno recente da proteção internacional dos direitos humanos, primeiro no Direito Internacional Público e depois no Direito da União Europeia.

IV. Viagem de sucesso, tertio, porque seria ainda pela configuração material dos direitos fundamentais que passariam as principais mudanças ocorridas em todo este já longo período de Estado Constitucional de Direito.

         Desde logo, na transformação do Estado Liberal ao Estado Social, com o aparecimento de novos tipos de direitos fundamentais, os direitos de 2ª geração económicos e sociais, juntando-se aos direitos de 1ª geração civis e políticos.

         Como igualmente no “sinal vermelho” que a obnubilação de tais direitos fundamentais nas experiências totalitárias do século XX representou, pondo o Estado de Direito entre parêntesis, como foram os fascismos e os comunismos de várias espécies, alguns deles ainda existentes por esse mundo fora.

         É finalmente de considerar o facto de as mais recentes alterações que se têm assinalado no Constitucionalismo Contemporâneo, conhecidas como “crises” do Estado Contemporâneo, se conexionarem, em grande medida, com tópicos atinentes aos direitos fundamentais.  

2. As novas teorias dos direitos fundamentais do século XXI

I. Ora, considerando estas crises, a busca de novos bens protegidos pelos direitos fundamentais tem sido uma das tónicas mais frutíferas, verificando-se a presente insuficiência da respetiva positivação jurídico-constitucional, por razões várias:

– ora porque apenas dedutíveis de normas e princípios que não conferem uma direta e necessária subjetividade ao titular dos direitos fundamentais, com todos as vulnerabilidades inerentes a tal dessubjetivação;

– ora porque não reconhecidos pelo poder constituinte originário, que preso no seu momento histórico-político tem grande dificuldade em acompanhar a evolução dos tempos com textos constitucionais rígidos, assim não conseguindo segregar novos direitos fundamentais e perdendo-se na conflitualidade – conquanto mesmo e tantas vezes mera “intriga” – partidária incapaz de gerar maiorias qualificadas de revisão constitucional;

– ora porque postos em dilemas de compatibilização de direitos que a complexificação da sociedade tem vindo a acentuar, com questões novas que com muita acuidade se colocam – as quais antes eram desconhecidas, como sucede nos domínios da Bioética, da Digitalização da Sociedade ou do Estado/Comunidade Internacional de Risco – e que supõem árduos equilíbrios na solução ponderada e balanceada de conflitos de direitos que antes eram inexistentes ou de menor dificuldade de calibração.

II. É assim que se tem equacionado a existência de alternativas teorias explicativas da dilatação dos catálogos dos direitos fundamentais, as quais têm feito um caminho interessante, se bem que com diversas velocidades:

– a teoria dos direitos feministas, através da qual o combate à desigualdade do tratamento das mulheres se faz pela via dos direitos fundamentais de grupo, não apenas aditando ao princípio da igualdade um dever de diferenciação como permitindo a aprovação de direitos específicos, como é o caso das quotas reservadas às mulheres;

– a teoria dos direitos de identidade de género, com a qual se pretende a maior liberdade na identificação sexual em cujo processo este se assume como uma escolha pessoal, que se desprende de quaisquer dados da Natureza, com todas as consequências que isso acarreta na identificação civil das pessoas, bem como nas conceções acerca da privacidade individual;

– a teoria dos direitos à segurança em contexto de risco, com a qual se quer gizar um novo equilíbrio entre a liberdade e a segurança, esta agora vista de uma perspetiva alargada – tanto “security” como “safety” – e assim se justificando maiores restrições em âmbitos tradicionais da liberdade para a preservação de outros direitos fundamentais que podem ser perspetivados como novos ângulos de um direito à segurança que salienta a sua necessidade maior perante os riscos e as ameaças crescentes ao nível do Estado e da Comunidade Internacional;

– a teoria dos direitos digitais, que ressalta a idêntica importância que os direitos fundamentais devem assumir no Ciberespaço, nos quais fazem igual sentido, além de se acrescentarem novos direitos que só neste mundo podem existir;

– a teoria dos direitos dos animais, com a qual se proclama que os animais suscetíveis de dor devem usufruir de uma proteção suplementar que supera a proteção ambiental tradicional que se firmou no século XX, neles se evidenciando um estatuto de pendor antropomórfico, em que os direitos das pessoas devem ser muito próximos dos titulados pelos animais não humanos como setor especialmente protegido da Natureza.   

3. Os perigos no horizonte dos direitos fundamentais: banalização, uniformização, processualização e radicalização discursiva

I. Sendo verdadeira e salutar esta evolução, com todas as interrogações que a mesma suscita, seria ingénuo pensar que tudo se pudesse resolver pelo caminho mais fácil da expansão ad infinutum dos catálogos de direitos fundamentais.

Assim seria se os articulados constitucionais fossem dotados de uma elasticidade incomensurável, o que não é o caso porque a Constituição Formal está cada vez mais situada – e também, porque não dizê-lo, “sitiada” – pelo universo pluralista da Ordem Jurídica, com a consequência de a função fundamentadora da consagração de direitos fundamentais poder conduzir a perigos que têm de ser afastados.

II. O perigo mais sério é o da elevada disponibilidade que hoje existe no tocante à “banalização” da singularidade garantística que é inerente aos direitos fundamentais.

Numa altura em que o discurso sobre a proteção das pessoas por intermédio dos direitos fundamentais se “vulgarizou”, inevitavelmente que se vulgarizou o recurso a essa técnica jurídico-formal. O resultado é o da multiplicação – que pode ser excessiva – do número dos direitos fundamentais existentes.

Mas, afinal, em que consiste esse perigo da banalização?

Crê-se que está na adulteração da hierarquia de valores que deve subjazer aos direitos fundamentais e, sobretudo, pensar que os direitos fundamentais valem todos o mesmo, risco que se potencia pelo crescimento do seu número.

Por outro lado, iss repercute-se sobre a menor proteção que recai sobre cada um, sendo certo que as virtualidades fácticas que se associam ao seu reconhecimento não são inesgotáveis, como a realidade constitucional o demonstra.

III. Outro perigo real é atinente à eventual “uniformização” dos direitos fundamentais que progressivamente vão sendo consagrados nos articulados constitucionais, tendência que ter-se-á afirmado, primeiro, ao nível da proteção internacional dos direitos humanos.

         É nítido que a globalização que se vive oferece uma dimensão jurídica, muito saudável e que é o produto de uma aproximação cultural entre regiões, povos e Estados.

         Todavia, é do mesmo modo evidente que por detrás dessa globalização – que é boa no que de bom globaliza – se esconde uma “má globalização”, quando ela se aventura a ser – e muitos vezes o é realmente – um instrumento de domínio, impondo uma determinada visão do mundo e da vida, sem espaço para os direitos fundamentais que possam espelhar as autonomias e as peculiaridades de certos povos e culturas.

         Assim se abre um imenso desafio de heterogeneização dos direitos fundamentais, em resposta às diversidades – culturais, religiosas e outras – que é preciso defender, sob pena do perigo maior do desmembramento da comunidade política.

IV. Angustiante é ainda o perigo da “processualização” dos direitos fundamentais, pela tendência que os regimes democráticos hodiernamente vivem para a dessubstancialização da atividade pública, acreditando que o processo decisório democrático é apenas um “como” decidir, e não o “que” decidir segundo um certo sentido material, valioso em si mesmo.

         Com isso se desiste de uma fundamentação material dos direitos fundamentais – e, por arrastamento, de múltiplos outros aspetos de natureza jurídica, mais sensíveis a uma coloração axiológica – e com a inevitabilidade de se perder uma raiz material, que por si é a única resposta a dar, numa orientação segura, a um conjunto de opções que dizem respeito à vida coletiva.

As opções já não valem pelo conteúdo que exprimem, mas pelo número de adeptos que reúnem, num momento em que a bondade intrínseca das soluções cede o passo ao grau massivo de aderentes às mesmas.

         Não é somente a visão axiológica que se perde porque, ao lado da dessubstancialização dos direitos fundamentais, se regista a respetiva “geometrização”, situação em que a maioria tudo decide, abafando as minorias e não tendo estas qualquer possibilidade de fazer vingar os seus legítimos direitos.

V. O maior de todos esses perigos é o da “radicalização” do discurso sobre os direitos fundamentais, qual nova “religião civil” que suscita intervenções fraturantes e intolerantes no espaço público, no âmbito académico e no campo da política.

         Na maior parte dos casos, a radicalização do discurso dos direitos fundamentais passa pela sua transformação em “ideologia”, perdendo em consenso aquilo que ganham em acutilância, assim se abalando a sua base fundamental como denominador comum do pluralismo político-social, que é uma das marcas de água do Estado Constitucional de Direito.

         A ideologização e a politicização dos direitos fundamentais irão em breve destruir a sua capacidade operativa, abrindo caminho a tentações totalitárias que ganham apoios no seu combate perante o uso indevido de uma categoria que decerto não serve para o combate político-partidário.


[1] Jorge Bacelar Gouveia, Direitos Fundamentais – Teoria Geral e Dogmática da Constituição Portuguesa, Almedina, Coimbra, 2023.