Bruna de Sousa

Licenciada e Mestre em Direito pela Escola de Direito da Universidade do Minho.


Da Perda de Chance na Responsabilidade Civil do Médico é a recente obra de sua autoria. Obra que o Grupo Almedina publica e disponibiliza no mercado a 02 de Junho 2022.

Consulte a obra neste link.


O aumento do número das ações de responsabilidade civil médica veio expor algumas das fragilidades deste instituto quando confrontado com a atividade médica. Quando nos debruçamos, em particular, sobre a posição do doente lesado, que pretende ressarcir um dano que sofreu em consequência de uma falta médica, verificamos que este enfrenta dificuldades e entraves, por vezes, inultrapassáveis. Na verdade, é exigido que o doente demonstre a existência de uma falta médica com culpa e o nexo de causalidade entre essa conduta ilícita e culposa e o dano final sofrido. Ora, o instituto da responsabilidade civil não está apto a lidar com situações extremamente aleatórias, como são as situações que normalmente servem de base a uma ação de responsabilidade civil médica. De facto, torna-se quase impossível, na maioria dos casos, determinar, com um elevado grau de certeza, se a morte ou o agravamento do estado de saúde do doente foi uma consequência da falta médica ou se foi uma decorrência natural e inevitável da doença[1]. Ora, é precisamente nesta demonstração do nexo de causalidade entre a falta médica e o dano final da morte ou do agravamento do estado de saúde do doente que o instituto da responsabilidade civil claudica, colocando em causa não só a sua função reparadora, mas também acentuando a já enorme desproteção do doente face a uma, quase total, impunidade do médico[2]. É, portanto, urgente encontrar alternativas que amenizem a tantas vezes injusta solução do tudo ou nada propiciada pelos termos em que instituto da responsabilidade civil está consagrado.

Neste seguimento, tem-se ponderado a aplicação da teoria da perda de chance aos casos de responsabilidade civil médica na medida em que a figura foi pensada, exatamente, para situações com uma forte componente aleatória, cujos resultados são, de todo em todo, imprevisíveis. Surgida no direito francês associada ao mandato forense[3], a teoria da perda de chance veio, paulatinamente, a imiscuir-se no campo da responsabilidade civil médica sendo chamada, por exemplo, nos casos em que o médico não realiza um exame fundamental, quando se atrasa na prestação de cuidados de saúde ou, ainda, quando faz um diagnóstico errado[4] sobre o padecimento do doente privando-o, assim, do tratamento atempado e adequado.

A teoria da perda de chance não se encontra expressamente consagrada no ordenamento jurídico português recaindo sobre a doutrina a árdua tarefa de enquadrar dogmaticamente a figura e esta é uma questão que a tem dividido. Alguns autores têm vindo a aceitar o ressarcimento da perda de chance na medida em que a configuram como uma espécie autónoma de dano[5], enquanto outros não aceitam a aplicação da figura nosso ordenamento jurídico apresentando diversos argumentos, nomeadamente, que a teoria da perda de chance só poderá ser perspetivada como um problema de causalidade[6]. Com efeito, esta infindável questão do enquadramento da teoria como uma espécie de dano ou como uma vicissitude do nexo de causalidade tem feito correr muita tinta no nosso e em vários outros ordenamentos jurídicos.

 Então, em termos simplistas, quando perspetivamos a perda de chance como uma espécie de dano devemos ter em conta que estamos perante um dano autónomo e diferente do dano final[7]. A nossa atenção não deve recair sobre o resultado final, mas sim sobre as possibilidades de o mesmo ser atingido[8]. Este é, então, um prejuízo intermédio, que se prende com a perda de uma situação que tinha potencialidades para alcançar certo resultado futuro favorável ou para evitar certo resultado futuro desfavorável mas que nunca se concretizou em virtude da conduta ilícita e culposa de outrem. Contrariamente, se olharmos a figura da perda de chance enquanto um problema de causalidade, não reconhecemos qualquer autonomia às chances. Nesta perspetiva, a perda de chance é chamada a intervir naqueles casos em que não se consegue afirmar que o facto ilícito é conditio sine qua non do dano. Como tal, não conseguimos afirmar, com certeza, que a conduta foi realmente a causa do dano, mas apenas conseguimos adiantar uma probabilidade de aquela conduta ter, efetivamente, sido a causa do dano[9]. Ambas as perspetivas apresentam fragilidades, quer seja o artificialismo da configuração da perda de chance como um dano[10], quer seja o corte radical com o princípio da causalidade adequada[11], consagrado no artigo 563.º do Código Civil, propiciado pela perspetivação da perda de chance enquanto um problema de causalidade.

No entanto, não é apenas a configuração da perda de chance como um dano ou como uma vicissitude do nexo causal que tem levantado celeuma. A caracterização da chance, os pressupostos para a sua aplicação e os métodos de cálculo das indeminizações pelas chances perdidas apresentam-se também como tópicos desafiantes para a doutrina e jurisprudência. Como tal, de modo a evitar o alargamento excessivo dos limites de aplicação da figura, é necessário delimitar claramente quais as condições que devem estar reunidas quando se pretende recorrer a esta teoria. A título exemplificativo, é necessário atestar que existem, de facto, chances ou possibilidades de alcançar o resultado pretendido, que essas se apresentam com um grau suficientemente razoável de seriedade e consistência e que a conduta ilícita destruiu, irreversivelmente, as possibilidades do resultado pretendido vir a ser alcançado[12].

Ora, se o tratamento da figura da perda de chance é já complexo na generalidade dos seus tradicionais âmbitos de aplicação, a questão assume novos contornos quando pretendemos aplicá-la à responsabilidade civil do médico. A atividade médica é, por definição, extremamente aleatória na medida em que uma multiplicidade de fatores, que muitas vezes extravasam o controlo do médico, influencia o desfecho e o sucesso do tratamento. Por este mesmo motivo, como referimos anteriormente, a grande maioria das ações de responsabilidade civil médica acaba por naufragar devido à dificuldade em fazer prova de que a morte ou o agravamento do estado de saúde do doente foi derivada de uma falha médica e não de qualquer predisposição do doente ou da evolução natural da doença.

Perante esta circunstância, é tentador invocar a teoria da perda de chance. No entanto, surge a necessidade de perceber se as particularidades inerentes à responsabilidade civil médica poderão ser um entrave à aplicação da teoria. Se atentarmos nas hipóteses da perda de chance de cura ou de sobrevivência verificamos que, contrariamente aos demais casos tradicionais da aplicação da figura, estamos já perante um resultado final negativo que é fruto de um processo aleatório que chegou ao fim[13]. Assim sendo, conforme referem alguns autores, nestes casos, a dúvida existe apenas quanto à contribuição do ato médico ilícito e culposo para a consumação do dano final certo, o que implica que estaríamos no domínio da causalidade e não do dano. Deste modo, a considerar que a perda de chance de cura ou de sobrevivência deve ser trabalhada sob o prisma da causalidade verifica-se um completo desvirtuamento do princípio da causalidade adequada[14], passando a perda de chance a configurar um simples mecanismo subversor dos pressupostos da responsabilidade civil, constituindo uma porta para indemnizações parciais, calculadas na medida das dúvidas do juiz[15].  Todavia, e por outro lado, alguns autores continuam a defender a aplicação da teoria da perda de chance indistintamente à responsabilidade civil do médico na medida em que, tal como em todos os outros casos, deve-se separar as chances de cura ou de sobrevivência do dano final da morte ou da incapacidade. Assim, o que se estaria a reparar seria a perda das possibilidades de se curar ou de sobreviver e não a morte ou o agravamento da doença. Então, trata-se de provar que o ato ilícito e culposo do médico foi a causa da perda das maiores possibilidades que o doente tinha de se curar ou de sobreviver[16].

Ora, apesar da aplicação da teoria da perda de chance à responsabilidade civil do médico se afigurar aceitável e útil, por exemplo nas situações de erro ou atraso no diagnóstico, o mesmo não acontece noutras circunstâncias, tais como as intervenções sem consentimento ou as wrongful actions que reclamam um tratamento especial, o que leva alguns autores a recusarem a aplicação da teoria a estas situações[17].

Finalmente, não podemos deixar de admitir que a teoria da perda de chance apresenta potencialidades para reforçar a tutela do doente lesado, tantas vezes negligenciadas nos moldes da tradicional teoria do tudo ou nada, bem como introduz um inegável elemento de justiça material. As respostas e soluções encontradas para esta questão nem sempre serão fáceis, nunca serão perfeitas e raramente isentas de riscos. No entanto, isso não deve demover o estudo e a eventual aplicação da figura, mas sim provocar e incentivar melhorias e inovações nos contributos que foram avançados até agora.


[1] Rute Teixeira Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico – Reflexões sobre a Noção da Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 83 e ss.

[2] Sobre a assimetria da relação entre o médico e o doente, Rute Teixeira Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico, op. cit., pp. 50 e ss.

[3] Rui Cardona Ferreira, Interesse Contratual Positivo e Perda de Chance (em especial, na contratação pública), Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pp. 12 e ss.

[4]Vera Lúcia Raposo, Em Busca da Chance Perdida – O Dano da Perda de Chance, em Especial na Responsabilidade Médica in Revista do Ministério Público, n.º 138, Abril – Junho, 2014, pp. 9-61, p. 44.

[5]Exemplificativamente, Rute Teixeira Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico, op. cit., pp. 460 – 463; João Álvaro Dias, Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pp. 252-254 e Nuno Santos Rocha, A «Perda de Chance» como uma Nova Espécie de Dano, op. cit., pp. 91-102.

[6]Exemplificativamente, Rui Cardona Ferreira, “A Perda de Chance Revisitada (a propósito da responsabilidade do mandatário forense)”, in Revista da Ordem dos Advogados, Outubro – Dezembro, 2013, p. 1313; Júlio Vieira Gomes, “Sobre o dano da perda de chance” in Direito e Justiça, Vol XIX, Tomo II, 2005, p. 25; Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Volume II, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 1106, nota 3103.

[7] Nuno Santos Rocha, A «Perda de Chance» como uma Nova Espécie de Dano, op. cit., pp. 51 e ss.

[8] Rute Teixeira Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico, op. cit., p. 203.

[9] Rute Teixeira Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico, op. cit., p. 207.

[10] Júlio Vieira Gomes, “Sobre o dano da perda de chance”, op. cit., p. 24.

[11] Vera Lúcia Raposo, Em Busca da Chance Perdida, op. cit., p. 18

[12] Rute Teixeira Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico, op. cit., pp. 198 e ss e 461 e ss.

[13] Luis Medina Alcoz, Hacia una nueva teoría general de la causalidad en la responsabilidad civil contractual (y extracontractual): La doctrina de la pérdida de oportunidades, in Revista da Asociación Española de Abogados Especializados en Responsabilidad Civil y Seguro [em linha], n. 30, Segundo Trimestre, 2009, p. 43.

[14] Nuno Santos Rocha, A «Perda de Chance» como uma Nova Espécie de Dano, op. cit., p. 39.

[15] Vera Lúcia Raposo, Em Busca da Chance Perdida, op. cit., p. 18 e Rute Teixeira Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico, op. cit., p. 286.

[16] Nuno Santos Rocha, A «Perda de Chance» como uma Nova Espécie de Dano, op. cit., pp. 51-52; Rute Teixeira Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico, op. cit., pp. 288 -289.

[17]  Vera Lúcia Raposo, Em Busca da Chance Perdida, op. cit., pp. 57-58; Rute Teixeira Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico, op. cit., pp. 317 – 318. Veja-se também Luis Medina Alcoz, La Teoría de la Pérdida de Oportunidad – Estudio Doctrinal y Jurisprudencial de Derechos de Danos Público y Privado, Thomson – Civitas, Editorial Aranzadi, 2007, pp. 104-105 e  David Hamer, “Chance Would Be a Fine Thing”: Proof of Causation and Quantum in an Unpredictable World [em linha], 1999, pp. 23-24. Disponível em http://classic.austlii.edu.au/au/journals/MelbULawRw/1999/24.html . [Consultado em 20.05.2022].