Alexandre Guerreiro

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Doutor em Direito (Ciências Jurídico-Internacionais e Europeias), FDUL (2021); Investigador FDUL (Direito Internacional Público); Formador CES-Universidade Coimbra (Direito Internacional Público, Direito Europeu e Direito Penal); Assessor Parlamentar da Assembleia da República;
Analista de Informações (SIED); Comentador TVI para assuntos de Justiça, Segurança e Internacionais (2016-2020).


Assinalam-se no próximo Sábado os 20 anos dos atentados de 11 de Setembro de 2001 (9/11), o evento que influenciou significativamente o tabuleiro geopolítico internacional e marcou o início de uma nova era na abordagem às ameaças assimétricas. À margem das diversas expressões de extremismos que se diversificam e têm conhecido a entrada de novos actores que congregam os chamados adeptos de causas, cuja natureza inorgânica e híbrida traz novos desafios às sociedades mundiais e é passível de atentar contra a paz e a segurança internas e até internacionais, importa perceber o impacto que a abordagem ao 9/11 teve na ordem internacional.

O efeito surpresa causado pelos atentados, a incapacidade para determinar com precisão a capacidade do agressor e a imprevisibilidade assumida pela generalidade Estados para antever novos ataques no imediato foram elementos suficientes para gerar um consenso internacional raro no que ao uso da força diz respeito. Exemplo disso foi o facto de, imediatamente no dia 12 de Setembro, o Conselho de Segurança da ONU ter aprovado a famosa Resolução 1368 (2001), que constituiu uma inovação por reconhecer o direito inerente à legítima defesa individual ou colectiva no contexto do terrorismo. Esta convicção foi repetida na Resolução 1373 (2001), de 28 de Setembro, sendo reforçado que qualquer acto de terrorismo internacional constitui uma ameaça à paz e à segurança internacionais.

Foi neste contexto de solidariedade internacional e incapacidade para questionar quaisquer acções que pudessem desrespeitar a dor ainda presente no povo norte-americano que os EUA formalizaram um pedido de intervenção militar no Afeganistão com o fim de fazer cessar as condições favoráveis à ocorrência de novos ataques futuros por parte de uma organização terrorista que encontrava protecção no controlo efectivo exercido pelos talibãs naquele país.

Foi, assim, formalmente declarada a “guerra contra o terrorismo”, mas a ambiguidade deste conceito fez com que cada Estado delineasse uma estratégia direccionada a um inimigo indefinido e concebido, não raras vezes, em função da sua agenda política. Não será por acaso que, actualmente, são conhecidas mais de 250 noções distintas de “terrorismo”.

Numa fase inicial, a intervenção militar dos EUA no Afeganistão foi justificada, na medida em que o poder efectivo no país, os talibãs, recusaram perseguir e julgar Osama bin Laden e membros da Al-Qaeda que actuavam livremente a partir de solo afegão e sabotaram as diversas tentativas de cooperação com Estados estrangeiros com vista à cessação das actividades da organização terrorista. Ainda que até hoje os talibãs não se confundam com a Al-Qaeda, o laxismo do poder afegão de então permite concluir pela verificação dos pressupostos da doutrina da relutância ou incapacidade, abrindo, assim, caminho ao exercício do direito inerente à legítima defesa pelos EUA.

O consenso em torno desta intervenção acabaria por ruir com a extensão da intervenção ao Iraque e a ambição de perpetuar a presença no Afeganistão até à total reconstrução e assimilação de valores democráticos ocidentais em sociedades com configurações culturais e sociais complexas. Afinal, o direito inerente à legítima defesa só pode ser exercido quando estão verificados os pressupostos da necessidade, da proporcionalidade e da imediação e inexiste vontade ou incapacidade de reacção por parte do Estado de onde é originária a ameaça. Ainda que os poderes soberanos destes Estados procurassem viabilizar a presença internacional nos seus respectivos países através do recurso à ingerência por convite, esta foi sempre motivada a partir de uma nova ordem constitucional construída pelas potências ocupantes.

Consequentemente, a ambiguidade em torno do conceito de terrorismo e da potencial capacidade de expressão deste fenómeno fez com que esta ameaça fosse sempre percepcionada pelos EUA tendo em conta a sua natureza assimétrica e a possibilidade de se expressar a qualquer momento e sob qualquer forma, procurando justificar e influenciar uma nova concepção de exercício de direito inerente à legítima defesa contrário ao que era defendido internacionalmente até então.

A contestação à perpetuação da intervenção dos EUA no Afeganistão e a indignação com a actuação no Iraque foram de tal ordem que vários foram os Membros do Conselho de Segurança e da Assembleia-Geral que protestaram declaradamente com a forma como um pretenso direito à legítima defesa alimentou e agravou as ameaças à paz e à segurança internacionais, ao criarem condições propícias para o surgimento de novas organizações terroristas com ambições expansionistas.

Quando, cerca de uma década mais tarde, o Conselho de Segurança da ONU adoptou a Resolução 1973 (2011), de 17 de Março, que autorizou os Estados-Membros a tomarem todas as medidas necessárias para a protecção de civis na Líbia, vários foram os Estados que protestaram a instrumentalização desta resolução para, uma vez mais, depor o poder líbio em exercício e favorecer a ascensão de actores favoráveis às ambições geopolíticas dos Estados interventores. As intervenções no Afeganistão e no Iraque foram dadas como exemplo de intervenções contrárias ao direito internacional.

Já mais recentemente, a “guerra contra o terrorismo” constituiu o mote para que, uma vez mais, EUA, Reino Unido e França justificassem intervenções militares no Iraque e na Síria, no quadro do combate ao Estado Islâmico. O facto de ser invocada a legítima defesa colectiva a pedido do Iraque contra ameaças oriundas da Síria não pode justificar intervenções unilaterais desta natureza sem qualquer tentativa de concertação de esforços com o Estado alvejado. Tanto o Tribunal Internacional de Justiça como a Comissão de Direito Internacional já se pronunciaram no sentido de o uso da força contra um terceiro Estado depender sempre do seu consentimento válido, expresso e de objecto delimitado, não podendo ser retirado de um conjunto de presunções ou de aparente passividade do Estado alvejado. No final, 20 anos volvidos desde o 9/11, a comunidade internacional é categórica quanto ao facto de o terrorismo constituir uma ameaça à paz e à segurança internacionais. Todavia, é unânime que a exigência de os Estados-Membros da ONU tudo deverem fazer para o combater não atribui uma autorização abstracta para que cada um intervenha unilateralmente em favor da sua noção e percepção de “terrorismo”. Menos ainda, é dada uma licença vitalícia e discricionária para que cada Estado interprete por sua conta e risco a possível relutância ou incapacidade de um Estado em combater o terrorismo a partir do seu território, sendo ainda clara e maioritária a posição em favor da colaboração com o Estado onde se encontra a ameaça e só perante o fracasso destas negociações o Estado alegadamente ameaçado pode ter legitimidade para intervir se existir consenso internacional nesse sentido e pelo tempo estritamente necessário de duração da ameaça.