Jean-Paul Sartre

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Acaba de chegar às livrarias uma nova tradução de «O Ser e o Nada», obra seminal do existencialismo, a grande corrente filosófica do século XX. Publicamos, na íntegra, o prefácio de Victor Gonçalves, que também traduziu a obra.


I. (Jean-Paul Sartre)

Jean-Paul Sartre foi um escritor prolífico e prolixo (caleidoscópico). Por isso e pela profundidade do seu pensamento, marcou um vasto número de pensadores, franceses, decerto, mas também de outros países e culturas (diz-se que dominou muitos dos sentidos possíveis da sua época). A sua obra revela duas certezas: a enorme quantidade de textos escritos (Sartre existiu sobretudo para ler e escrever, algumas cartas pessoais ultrapassam as 30 páginas); e a diversidade do que escreveu: ensaios filosóficos, literários e políticos, romances, contos, peças de teatro e até uma autobiografia, ainda que heterodoxa (As Palavras; mas há mais textos na primeira pessoa). Como muito bem sintetiza Roger-Pol Droit: «Sartre é o nome de uma multitude […]. A criança solitária de As Palavras, o depressivo de A Náusea, o metafísico de O Ser e o Nada [S.N.], mas também o compagnon de route dos estalinistas, a estrela do Flore e do Tabou, o militante de Temps Modernes, sem esquecer o amigo dos maoistas, o dramaturgo de Huis Clos, o romancista de Os Caminhos da Liberdade, ao mesmo tempo antiburguês e herdeiro, aqui provocador e ali conformista, orador durante o dia e autor de grandes volumes à noite. Poder-se-ia acrescentar, o amante polígamo, o jornalista comprometido, o espírito aberto, o espírito fechado… sem ter encerrado a lista.» («Sartre en mode Stendhal», Le Monde, 16 de outubro de 2020) E ao lado destes mil pedaços pouco alinhados, formando um intelectual total, encontra-se ainda outro Sartre, aquele que, por exemplo, recusando pertencer à sua classe, se aloja, porém, em hotéis de luxo italianos durante as férias. Para os mais interessados no Sartre descomprometido (quem diria), aconselhamos o retrato bastante impressivo de François Noudelmann, composto com a ajuda da filha adotiva do filósofo (adoção mútua), Arlette Elkaïm (1935–2016), editado na Gallimard em 2020 (Un tout autre Sartre).

S.N. é uma obra tendencialmente filosófica, escrita entre um período em que o autor intercala ensaios filosóficos, pensados e escritos no quadro da fenomenologia husserliana, usando por vezes a dialética hegeliana — «La Transcendance de l’ego» (1935), A Imaginação (1936), «Une Idée fondamentale de la phénoménologie de Husserl» (1939), L’Imaginaire (1940) —, e textos ficcionais — A Náusea (1938) e Le Mur (1939) —; e outro período quase exclusivamente ficcional (embora, em muitos casos, se tratasse de enriquecer emocionalmente o racional, trazer a teoria para a prática), destacando-se as produções teatrais (representação física e emocional de teses filosóficas, nomeadamente as relativas ao tempo, valores e liberdade): Les chemins de la liberté, três vols., romance, 1945–49; Les Jeux sont faits, publicado em 1947, mas escrito em 1943, guião para filme; Les Mouches, teatro, 1943; Huis Clos, teatro, 1944; Morts sans sépulture, teatro, 1947; La Putain respectueuse, teatro, 1947; L’Engrenage, teatro, 1946; Les Mains sales, teatro, 1948.

Além disso, S.N. é um livro fortemente marcado pelo contexto histórico — final da primeira metade do século xx, escrito e publicado durante a ocupação alemã por um autor que esteve na guerra, guiado pela fenomenologia (anti-metafísica)… — e pelas influências importantes de Günther Anders, Edmund Husserl, Martin Heidegger e Jean Wahl (também Marcel Proust: S.N. continua, em modo filosófico, a reflexão sobre o tempo de Em Busca do Tempo Perdido). Mas, ao mesmo tempo, é um livro intempestivo: constrói uma possibilidade de pensamento e de ação existencialistas (a existência primeiro) e propõe-se, numa vontade de veracidade filosófica, influenciar outras épocas e outros contextos (S.N. dirige-se ao futuro). Esta intempestividade é, aliás, atestada pelas inúmeras edições, em francês e noutras línguas, que vieram à luz desde 1943 (a brasileira, publicada pela Editora Vozes, por exemplo, vai já na 24.ª). Menos, contudo, pelos estudos filosóficos que o convocam. Tanto os «Nouveaux Philosophes» (Glucksmann, Bernard-Henri Lévy, Maurice Claver…), como os pós-estruturalistas franceses (Derrida, Deleuze e Foucault), e os estruturalistas antes deles, atacaram ou desprezaram Sartre. O mundo anglo-saxónico, por sua vez, nunca o levou filosoficamente a sério, preferindo, além disso, Albert Camus no campo ficcional. É que Sartre estava, e está, fora de muitos dos códigos que definem o pensar, produtores da autocensura necessária a encaixá-lo nos modelos em vigor; e isto, Sartre recusou-o liminarmente (não fosse ele o filósofo da liberdade). Em relação a Portugal, é bem conhecida a influência, embora ambígua, que exerceu sobre Vergílio Ferreira (cf. os trabalhos de Hélder Godinho, Universidade Nova de Lisboa, 1947–2020; alguns em acesso livre na Nova Research Portal, e a longa introdução a O Existencialismo é um Humanismo): «Vibrei com a inteligência de Sartre ou antes com aquilo que nele é uma locomotiva de pensar. E uma máquina admira-se mas não se ama.» (Contra-Corrente 2) Isto porque Sartre não escreveu apenas de forma proposicional, mas também, talvez sobretudo, de maneira performativa. A Vergílio Ferreira não interessou verdadeiramente saber em que consistia, a partir de todos os ângulos possíveis, a liberdade sartriana, mas viu na ideia de uma condenação à liberdade um leitmotiv para a sua literatura.

 S.N. expressa a suprema exigência sartriana de uma plena responsabilidade decorrente de uma liberdade total («sou responsável por tudo, exceto pela minha própria responsabilidade, já que não sou o fundamento do meu ser», por isso, «estando condenado a ser livre, transport[o] o peso do mundo inteiro sobre os [m]eus ombros» (pp. 660 e 658, respetivamente)). O indivíduo (S.N. é um livro sobre o individual, uma filosofia do singular), embora em situação (que, por sua vez, só existe pela liberdade), um pouco à maneira de Heidegger, em que se vê «lançado num mundo já significante», é mais o resultado de um ato de autocriação do que de determinações extrínsecas, porque «O mundo desvela-se como um “ vcdfvazio sempre futuro” porque somos sempre futuros a nós mesmos». (p. 406) Talvez também por isso, o próprio S.N., cujo subtítulo, não o esqueçamos, é Ensaio de Ontologia Fenomenológica, deva ser lido como uma experimentação, uma tentativa; condizendo com parte do sentido literal, mas bastante esquecido, do termo «ensaio» (á la Montaigne). Esta obra é um ecossistema de sentidos possíveis, mais do que, como alguns se habituaram a ver nos textos filosóficos, proposições definitivas que viriam acrescentar, e colmatar, as lacunas da história da filosofia. É por isso que depende muito da reescrita dos leitores, numa dialética que, porventura, se aproxima da do em-si/para-si, sem síntese. Se quisermos usar as suas palavras, deslocando-as do território originário, a existência de S.N. condiciona a sua essência, e a existência acontece na contingência dos encontros com os leitores.

É também por esta razão que não se pode resumir S.N., como por vezes se ousa fazer nas introduções ou prefácios. Fiquemo-nos, pois, por uma nota de leitura, ainda que alargada, sobre a forma como o livro existiu para nós. Tendo presente que «É o futuro que decide se o passado está vivo ou morto» (p. 599), isto é, serão os leitores, de hoje e de amanhã, que decidirão muitos dos sentidos de S.N., exceto se quisermos propô-lo para uma peça de museu puramente contemplativa. Isto não autoriza, porém, a rasura de certos sentidos originários (seria absurdo ler-se um livro sem atender às suas intenções e, em menor grau, às do autor), nem a desconsideração caprichosa de Sartre. Depois de, há pouco, termos assumido a centralidade da liberdade, S.N. deve também ser entendido como um livro sobre a procura do ser, ou melhor, dos modos de ser, objetivo das três primeiras partes. Até um certo momento, parece que o ser não existe (ontologia negativa) ou não está onde normalmente acreditámos estar (atrás do fenómeno). Mas, finalmente, encontramo-lo no próprio fenómeno. Daí tratar-se de uma ontologia fenomenológica. A quarta parte, porventura mais entusiasmante, descreve e reflete sobre as aventuras do ser na ação.

II. (O Ser e o Nada)

Não nos destinamos a explicar aqui, seletivamente, aquilo que Sartre disse, usando centenas de páginas, em S.N., até porque ninguém o expôs tão bem como ele (sem anular, porém, o risco de redigir um monumento de veracidade ilegível para muitos): uma fenomenologia ontológica centrada no ser e no nada, trabalhando cada parte essencial da composição a partir de um cogito vivente. Dir-nos-ão que Sartre levantou problemas que não conseguiu resolver. Mas isso acontece em todas as obras filosóficas, que, aliás, convém avaliar mais por fazerem emergir novos problemas insolúveis (à data ou para sempre) do que resolverem aqueles que previamente estavam agarrados aos objetivos da escrita, calculadamente projetados para sucumbir à inteligência e competência do autor. 

Talvez S.N. seja a opus magnum de Sartre, um livro em que se toma em mãos a si e à «realidade-humana». Foi, por isso, um atelier de autorrealização e autoapropriação, menosprezando, talvez excessivamente, os pretensos determinismos extrínsecos à consciência (sociedade, família, biologia). Mesmo se, como disse, socorrendo-se de Espinosa, toda a determinação é negação (Omnis determinatio est negatio), ou seja, a determinação nunca se esgota em si, ela abre, paradoxalmente, novas possibilidades, porque afirmar algo obriga, ao mesmo tempo e por necessidade lógica, a negar, justamente, o que não se afirma.

Pensando nos conceitos importantes que compõem S.N., é inevitável destacarem-se o em-si, o para-si, o nada (néant) e a liberdade. Mesmo estando presentes em todo o livro, os primeiros estruturam as três partes iniciais, desenhando uma teoria geral do ser, e a liberdade, a última parte, lugar para uma teoria geral da ação (com menos jargão filosófico).

O em-si é uma categoria ontológica que, retomando parcelas de sentido de Hegel e de Heidegger, conduz, a par do para-si e do nada, a interrogação fenomenológica sobre o ser do fenómeno. Isto permite, por exemplo, perceber o que é a generosidade, o amor ou, entre todos os outros fenómenos possíveis (tudo o que aparece à consciência), a má-fé. Mas isolado, o em-si é simplesmente aquilo que é, maciço e definitivo. E como não resulta de nada e nada se deduz dele, é totalmente contingente. A sua necessidade de ser é a posteriori (só surge depois de ser). Será o ser do objeto, enquanto o para-si é o da consciência (cujo ego é o seu objeto, e não, contra Descartes, o contrário). Mas reforcemos a condição fenomenológica deste em-si: é completamente errado entendê-lo como uma essência que se dissimularia atrás das suas manifestações, ele esgota-se na sua fenomenalidade, aparência (aquilo que aparece e que «reenvia para a série total das aparências e não para um real escondido que teria drenado para si todo o ser do existente» (p. 30)). Desta forma, Sarte supera o velho dualismo ser/aparecer.

Por seu lado, o para-si, modo de ser da consciência, define-se, igualmente, como contingência, embora, neste caso, por ser o resultado da nadificação do em-si, sendo assim infundado e gratuito. Mas esta nadificação (diferente da negação hegeliana, porque não prepara qualquer síntese) não suprime o em-si; este assombrará perpetuamente o para-si, que, aliás, deseja ser, embora infrutiferamente, em-si-para-si (síntese impossível, porque são uma contradição insanável e se apresentam num «estado de desintegração relativamente a uma síntese ideal […]. É o perpétuo fracasso que explica simultaneamente a indissociabilidade do em-si e do para-si e a sua relativa independência.» (p. 733)). Deste modo, o para-si «é o que não é e não é o que é», e isto porque se temporaliza. Por seu turno, um em-si que ambicionasse transformar-se em para-si teria de ser em-si causa sui, fundamento de si, ou seja, Deus. Se o para-si é separação de si (ao invés do em-si), deve, pois, porque é defeito de ser, assumir a sua contingência e tomar a liberdade como o seu fim último possível. Assim, sem a dialética hegeliana, instaura-se um dualismo irredutível, não entre duas substâncias, mas entre duas regiões do ser. A distância entre o para-si e o em-si é a emergência do nada no seio mesmo do ser, o «buraco de ser, essa queda do em-si rumo ao si pelo qual se constitui o para-si» (p. 141). Ao tomar a consciência como para-si, Sartre consegue estudá-la a partir de uma abordagem ontológica (saber o que ela é), distanciando-se da tradição que a perspetivava sobretudo a partir de uma abordagem psicológica. Além disso, segue Husserl e a sua conceção da intencionalidade da consciência: ela não tem um interior, nenhum conteúdo prévio decide o contacto imediato com o exterior (a consciência é sempre, e só, consciência de qualquer coisa). A intencionalidade elimina a intimidade do homem e lança-o irremediavelmente em direção às coisas. Por isso, a filosofia deve estar em contacto direto com os factos concretos e contingentes, em vez de buscar apriorismos alojados na redoma do espírito.  

A consciência, ou para-si, introduz nada no ser, e pode fazê-lo porque é o seu próprio nada. Mas a nadificação não é aniquilamento, não se trata de abolir o em-si, o para-si só pode modificar a sua relação com o em-si na forma como se distancia (quando pensa um objeto, a consciência não pode coincidir com ele). Por outro lado, só há nadificação porque o para-si está «condenado a ser livre», nadificação e liberdade são noções correlativas e indissociáveis. Assim, é «obrigação do para-si nunca existir senão sob a forma de noutro-sítio em relação a si, de existir como um ser que se afeta perpetuamente de uma inconsistência de ser» (p. 141). Ainda que o constante escapar do ser não anule o facto de o para-si ser.

Ao não ser maciço e definitivo, como o em-si, o para-si é aquilo que escolhe fazer de si, isto é, liberdade. Mas não como na filosofia clássica, em que a liberdade não passava de uma faculdade de alma traduzida na capacidade de a vontade escolher dentro do princípio do livre-arbítrio. Em Sartre, a questão é, antes, ontológica: o para-si é liberdade, e esta «não tem essência. Não está submetida a qualquer necessidade lógica; dever-se-ia dizer dela o que Heidegger diz do Dasein em geral: «a existência precede e comanda a essência» (p. 532). Isto conduz a uma espécie de «paradoxo da liberdade»: «só há liberdade em situação e só há situação pela liberdade» (p. 588). E, claro, o para-si é consciência humana (não como algo pré-definido, ela só é ao sê-lo) na sua condição individual. Deste modo, o homem está condenado à liberdade, e, em consequência, é plenamente responsável por aquilo que escolhe ser (por exemplo, Frantz, herói de Séquestrés d’Altona, sente-se responsável pelo seu século). Uma liberdade de cariz ontológico, como vimos, mas que se manifesta completa e mais claramente na ação. Não apenas nas ações voluntárias, mas em todas as dimensões da existência humana (que não emerge, repetimos, de qualquer essência), a liberdade é o próprio fundamento das escolhas: escolhemos porque somos livres, e não podemos deixar de sê-lo (aliás, Sartre identifica liberdade, escolha, nadificação e temporalização) — salvaguarde-se, obviamente, que «a minha liberdade de escolher […] não deve confundir-se com a minha liberdade de obter» (p. 606) —, e nem o «coeficiente de adversidade» suprime, ou sequer mitiga, a liberdade, «visto que é por nós, pela posição prévia de um fim, que surge esse coeficiente de adversidade» (p. 581). Em resumo: somos nós que escolhemos o coeficiente de adversidade de algo. Mais tarde, sobretudo na Critique de la raison dialectique (1960), recuperando o conceito marxiano de praxis, atenderá às determinações, materiais e sociais, que condicionam a liberdade, embora não se aproxime de um qualquer determinismo. De facto, mesmo depois de introduzir o marxismo na sua obra (um poderoso código de pensamento que o levará a catalogar S.N. como livro burguês), manterá que a existência é totalmente gratuita, não se desviando das suas primeiras intuições e teses sobre a irredutibilidade da condenação de todo o indivíduo à liberdade. No entanto, a ideia de praxis já estava em S.N., quando percebemos que a nossa situação acontece num mundo no qual também existe outrem, obrigando-nos a estudar «três camadas de realidade» para explicar cada situação concreta: «os utensílios já significantes (a estação, o sinal de caminhos de ferro, a obra de arte, o edital de mobilização), a significação que descubro como já minha (a minha nacionalidade, a minha raça, o meu aspeto físico) e, por fim, o outro como centro de referência para o qual remetem estas significações» (p. 611).

A má-féé a recusa da condenação à liberdade, é a mentira a si («tem, pois, aparentemente a estrutura da mentira. Só que, alterando-se tudo, na má-fé é a mim que oculto a verdade» (p. 107)), serve para o homem dissimular o seu próprio nada e adotar uma objetividade ilusória de em-si. Como vimos, a condenação à liberdade é inelutável, mas o indivíduo pode decidir escondê-la para não sofrer a angústia originária de ser livre. Decisão espúria, pois a liberdade é a própria condição da existência, e, portanto, também da possível via niilista. Na quarta parte de S.N. Sartre elucida a condição de possibilidade da má-fé relacionada com a liberdade, apenas ao alcance do para-si, um ser que «não é aquilo que é e é aquilo que não é». Tudo isto sem comprometer a unidade da consciência; para Sartre, o inconsciente, freudiano ou outro, é somente um postulado. É também na última parte do livro que se vislumbra uma espécie de moralização da má-fé. Sem cair na teia axiológica da autenticidade/inautenticidade heideggeriana, parece que Sartre prefere os para-si que assumem o seu nada e não desejam tornar-se em-si (Sartre planeou completar o S.N. com um livro sobre a moral, nunca concluído, mas com uma edição póstuma: Cahiers pour une morale). Por outro lado, respondendo aos que se dizem condenados à verdade (dogmáticos): «O campeão da sinceridade, na medida em que quer tranquilizar-se, quando afinal pretende julgar, na medida em que pede a uma liberdade para se constituir, enquanto liberdade, como coisa, está de má-fé.» (p. 125).

Se até aqui pensámos um para-si que escolhe ser o que é (o que vai sendo), mesmo quando, usando a má-fé, tenta, em vão, evitar essa responsabilidade, importa agora considerar o para-outrem, que, sobretudo pelo que nos diz a fenomenologia sartriana do olhar, parece condicionar a nossa liberdade, e até, no limite, suprimi-la. Isto remete para a própria compreensão do para-si. Com refere Sartre, «preciso de outrem para apreender plenamente todas as estruturas do meu ser, o para-si reenvia ao para-outrem» (p. 297). O veio reflexivo da terceira parte de S.N. procura responder a duas questões fundamentais: a da existência de outrem e a relação entre eu e outrem. A sua existência decorre da impossibilidade do solipsismo, porque «a minha relação com outrem é primeira e fundamentalmente uma relação de ser a ser, não de conhecimento a conhecimento. Com efeito, vimos o fracasso de Husserl, que, nesta situação em particular, mede o ser pelo conhecimento, e o de Hegel, que identifica conhecimento e ser.» (pp. 320-21). Não há, contudo, qualquer registo moral nesta atenção ao outro, ele só interessa a Sartre porque é um outro eu, ou seja, um objeto para mim e, refletindo o meu eu, um objeto para ele. Como disse mais tarde Michel Tournier em Vendredi ou les Limbes du Pacifique, sem alteridade não se pode afirmar a identidade. De qualquer forma, quando somos olhados por outrem, ficamos, aparentemente, sem defesas relativamente a «uma liberdade que não é a [nossa] liberdade. É neste sentido que podemos considerar-nos como “escravos”, na medida em que aparecemos a outrem.» (p. 346). E tal acontece mesmo quando outrem é indulgente ou permissivo, estes comportamentos não inibem menos a liberdade do que os autoritários. Isto leva Sartre a assegurar que «a existência do outro traz um limite de facto à minha liberdade» (p. 626). Dirá, poucos anos depois, em Huis Clos: «O inferno são os outros» (S.N. relembra a vergonha que outrem pode provocar em mim). Mas outrem é também, e primeiramente, liberdade. Por isso, «em qualquer plano em que nos coloquemos, os únicos limites que uma liberdade encontra, encontra-os na liberdade» (p. 627). Acrescentemos que, porém, a nossa liberdade pode, ainda assim, escolher como viver o inferno referido acima, mesmo se «o pecado originário é o meu surgimento num mundo onde há o outro» (p. 500).

A realidade-humana é, portanto, constituída por um jogo de liberdades, a do para-si e a de outrem, e como esta nunca tem a última palavra, «o próprio da realidade-humana é ser sem desculpas» (p. 659). Este conceito não indica qualquer universal; Sartre é bem claro ao afirmar que ela é feita de «mil expressões contingentes e empíricas» (p. 672), manifestando-se sempre num indivíduo singular. Ainda que haja «tendências mais fundamentais», como a de preencher, a da repulsa pela viscosidade ou a da generosidade ser mais um mecanismo de destruição do que de constituição, nunca se trata de universais. Mesmo os valores são fundados na liberdade («a minha liberdade é o único fundamento dos valores e […] nada, absolutamente nada, justifica adotar tal ou tal escala de valores» (p. 95)), cada para-si adota ad hoc os seus próprios valores. A soberania da realidade-humana, feita das manifestações individuais que a compõem, leva Sartre, quase no final de S.N., a curto-circuitar qualquer vislumbre de redenção: «Toda a realidade-humana é uma paixão, na medida em que projeta perder-se para fundar o ser e, ao mesmo tempo, para constituir o em-si que escape à contingência por ser o seu próprio fundamento, o Ens causa sui a que as religiões chamam Deus. Assim, a paixão do homem é inversa à de Cristo, pois o homem perde-se enquanto homem para que Deus nasça. Mas a ideia de Deus é contraditória e perdemo-nos em vão; o homem é uma paixão inútil.» (p. 726).

Educado na tradição filosófica francesa do problema do corpo (como encaixá-lo no cogito, dar-lhe um poder pensante, justificá-lo teologicamente como fonte da dor?), também Sartre sente dificuldade em trazê-lo para uma fenomenologia assente na consciência intencional e uma teoria da ação baseada na liberdade. Mas arrisca afirmar que existimos o nosso corpo (sempre contingente), e que ele «é a totalidade das relações significantes ao mundo» (p. 430). Além disso, é evidente que o corpo é utilizado e conhecido por outrem, o corpo-para-nós revela-se, mutatis mutandis, corpo-para-outrem. Em ambos os casos, escolhe-se existir um determinado corpo, um corpo mutilado, por exemplo, é entendido da forma como se escolher existi-lo.

Sarte é um existencialista (conceito cunhado pela receção, mas que ele aproveitou para o título de L’Existentialisme est un humanisme, 1946; livro que servirá, por vezes, de grelha de leitura ao S.N.), como, à sua maneira, Kierkegaard, Montaigne ou Rousseau (aliás, todos o foram à sua maneira), porque a existência, imune a qualquer conceptualização, é uma totalidade, ainda que radicalmente contingente. Isto rompe com a longa tradição que a dava como subsidiária da essência (metafísica ou material). E o para-si é existência, no sentido em que só é porque, fundado na liberdade, existe enquanto nadificação do em-si. Este sentido segue aquilo que Heidegger escreveu no §9 de Sein und Zeit sobre o Dasein ter a sua essência inscrita na existência. Por isso, a filosofia devia atender ao vivido. Por exemplo, quando, no S.N., descreve a mulher que abandona a mão ao homem que a corteja, continuando a divagar sobre assuntos paralelos ao compromisso pré-sexual que pressupõe aquele gesto. Por exemplo, quando desenvolve uma longa reflexão sobre a repulsa pelo viscoso. Por exemplo, quando justifica a preferência pelo liso e a brancura ou o deslizar em vez do enraizar (antevisão de um Deleuze contra Heidegger), porque não gostamos de deixar rasto. Por exemplo, quando analisa a obsessão por preencher buracos, uma forma de se distanciar da metafísica da libido freudiana («A libido não é nada fora das suas determinações concretas» (p. 676); embora conceda que a sexualidade é mais originária do que os órgãos sexuais). Por exemplo, quando inverte o sentido habitual da generosidade. Por exemplo, quando assegura que o sádico quer possuir uma liberdade mais do que um corpo. Aliás, Sartre diria que não são exemplos, mas a própria vida.

S.N. expressa a singularidade da voz filosófica de Sartre, em dissenso com algumas das figuras maiores da filosofia ocidental. É justo socorrer-nos so que disse sobre o princípio agonístico (tão nietzschiano): «A essência das relações entre consciências não é o Mitsein [ser com], mas o conflito.» (p. 522). É importante considerar o desvio da psicologia existencial em relação à freudiana (então na moda); o uso bastardo da dialética hegeliana e a recusa da vinculação do ser ao conhecer, retirando-lhe o momento de síntese; a  desvalorização da vontade de potência nietzschiana (que continuava a remeter diretamente para uma vontade de poder/domínio, ainda que, nas melhores interpretações, fosse sobre um novo homem emancipado de Deus e do Estado); a secundarização da epoché husserliana; a posição de antagonismo, embora ambígua, relativamente a Descartes, porque não é o pensar que funda a evidência do existir, o reflexivo assenta no pré-reflexivo («há um cogito pré-reflexivo que é a condição do cogito cartesiano» (p. 38)); a consciência de si ser como uma relação imediata e não cognitiva de si a si, deliberação que apanha em contrapé o intelectualismo kantiano (embora registe que a moral kantiana substituiu o ser pelo fazer). E como um discípulo não deve limitar-se a sê-lo, por respeito ao mestre (diz Nietzsche), se Heidegger é frequentemente convocado (dos mais citados), posto que o Dasein funciona bem na teoria da ação de S.N. («De facto, somos uma liberdade que escolhe, mas não escolhemos ser livres: estamos condenados à liberdade, como dissemos anteriormente, lançados na liberdade ou, como diz Heidegger, “desamparados”» (p. 583)), também é criticado num dos pontos centrais da sua filosofia: o de a morte atribuir o sentido último à vida. A morte não dá sentido à vida, retira-lhe, antes, toda a significação. Sartre revoga o Sein-zum-Tode (ser-para-a-morte) heideggeriano, e isso merece uma citação um pouco mais longa: «Assim, devemos concluir, contra Heidegger, que a morte, longe de ser a minha possibilidade própria, é um facto contingente que, enquanto tal, me escapa por princípio e resulta originariamente da minha facticidade. Não poderia nem descobrir a minha morte, nem esperá-la, nem tomar uma atitude relativamente a ela, visto que é o que se revela como irrevelável, o que desarma todas as esperas, o que se insinua em todas as atitudes, particularmente nas que adotamos relativamente a ela, para as transformar em condutas exteriorizadas e fixadas, cujo sentido está para sempre confiado a outros, em vez de a nós. A morte é um puro facto, como o nascimento; vem a nós de fora e transforma-nos a partir de fora. No fundo, não se distingue, de modo algum, do nascimento, e é a identidade do nascimento e da morte que designamos por facticidade.» (pp. 649-650) Porém, se não sou livre para morrer, «sou um mortal livre» (p.652).

Ainda na teoria da ação, para se compreender o ir fazendo-se do si, Sartre apresenta a sua psicanálise existencial. Expõe-na na quarta parte de S.N. e usa-a posteriormente em Jean Genet (Saint Genet, comédien et martyr, 1952) e Flaubert (L’Idiot de la famille, 1971–72). O objetivo não é retomar, ainda que noutros termos, a psicanálise de Freud, principalmente porque Sarte nega, já o dissemos, a existência do inconsciente, condição de possibilidade da mentira sem mentiroso. A psicanálise existencial quer conhecer as escolhas (desdobram o tempo instaurando novos começos) que conduzem um para-si singular a constituir-se desta ou daquela maneira, mas nunca definitivamente. Ao recusar o postulado do inconsciente freudiano, Sartre propõe para esta psicanálise uma psicologia regressiva e uma progressão sintética, método progressivo-regressivo, fundamentalmente histórico, combinando verticalidade (diacronia) e horizontalidade (sincronia). Isto permite-lhe criticar o determinismo vertical de Freud, que, apesar de também se conjugar com um horizontal (porque os antecedentes afetivos têm efeitos no presente), impõe que o passado determine o presente; desvalorizando, suprimindo até, o futuro. Pelo contrário, Sartre não partirá do passado, constituindo, antes, o ato compreensivo pela vinda do futuro ao presente (o sentido deste «Prefácio» releva-se, no preciso momento em que o escrevemos, pela projeção que fazemos da sua existência futura da tradução publicada). Ao afastar o determinismo causal, defende que a ação só é compreensível como projeto de si rumo a um possível. Noutros termos: a psicanálise existencial é «um método destinado a elucidar, sob uma forma rigorosamente objetiva, a escolha subjetiva pela qual cada pessoa se faz pessoa, isto é, se anuncia a si mesma o que é» (p. 682). Para isso, parte do pressuposto de que cada indivíduo é uma totalidade que aparece nas condutas aparentemente mais insignificantes: «não há um gosto, um tique, um ato humano que não seja revelador» (p. 676). É por isso que a libido e a vontade de potência não são princípios comuns da humanidade. Há, porém, «certas constantes» — como poderia ser de outra forma? Sartre refere, como exemplos, as imaginações poéticas geológicas em Rimbaud e a fluidez da água em Poe.

III. (Tradução)

Permitimo-nos recuperar para este ponto um enquadramento teórico sobre a tradução que escrevemos em 2020 para a revista Philosophica (55/56) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Referimos aí, seguindo Willard Quine, que é impossível estabelecer o significado de uma palavra sem entender o seu contexto cultural. É por isso que o termo latino translatio surgiu inicialmente com o significado de «transporte», ou da transferência de dinheiro entre bancos, mas também de enxerto botânico, ou desenvolvimento de um campo metafórico. Isto conduz Umberto Eco, em Dire quasi la stessa cosa à ideia de negociação, como se faz no uso quotidiano da língua. Mas por mais competente que se seja, só é possível traduzir porque as línguas não são irredutivelmente heterogéneas. Foi com este pensamento que Walter Benjamin defendeu uma familiaridade a priori entre as línguas, condição de tradutibilidade dos textos filosóficos e literários. Mas ainda que isto seja verdade (contra Sartre), é sempre difícil entender o jogo de linguagem originário. No caso de S.N., o da classe erudita da Rive Gauche parisiense (muitas vezes roída pela «vergonha de classe» — de ainda ser burguês —, em autodesconstrução, condição da maioria dos intelectuais de esquerda, paradoxalmente herdeiros e revolucionários), numa França ocupada pela Alemanha Nazi, dentro da corrente fenomenológica husserliana, da dialética hegeliana e, entre outros, da antropologia ontológica heideggeriana. Desde modo, é difícil concordar com George Steiner quando defende que a boa tradução escreve na língua de chegada aquilo que o autor teria feito se a dominasse.Por isso, talvez devamos assumir mais uma ética da tradução do que uma técnica da tradução. E a que nos orientou aqui foi, por um lado, a de levar o leitor ao texto originário. Muitas das opções que tomámos recusaram um certo facilitismo, mantendo a exigência hermenêutica de S.N. Preferimos, como desejava Friedrich Schleiermacher, conduzir o leitor até à língua de partida, em vez de o autor à de chegada (traduzir como se Sartre falasse português).Acreditamos que assim também se enriquece a nossa própria língua. Por outro lado, aceitámos de Sartre, mitigando um pouco Schleiermacher, a ideia de que as línguas não são códigos abstratos, que é preciso subjetivá-las: «[S]aber falar uma língua não é ter um conhecimento abstrato e puro da língua, tal como a definem os dicionários e as gramáticas académicas: é fazê-la nossa através das deformações e seleção provinciais, profissionais e familiares.» (p.614).

Por último, não há nenhum «caso de tradução» que mereça realmente ser destacado aqui. Serão dadas algumas indicações úteis para os leitores, em nota de rodapé, na própria tradução. E, renovando a tradição antiga de se pedir piedade aos leitores, identificamo-nos com Schleiermacher quando escreve: «É […] impossível que o uso linguístico do tradutor consiga ter sempre a mesma coerência que o do seu autor.»

IV. (Considerações finais)

O pai de Sartre morreu quinze meses depois do seu nascimento, ficando a sua educação a cargo da mãe e dos avós maternos (sobretudo o avô), que lhe prestaram uma devoção quase religiosa. Mas nem isso evitou a rutura do autor de S.N. com um mundo burguês onde era tratado como um pequeno rei.  Desde bastante cedo, parece ter preferido o futuro ao passado. E mesmo depois da rutura familiar, houve outras situações em que aprofundou os cortes, distanciando-se do que vinha sendo, como, por exemplo, depois da Segunda Guerra Mundial, quando converteu radicalmente a sua vida e escrita para se implicar sem reservas na luta de classes e nos conflitos geopolíticos. O génio de Sartre foi, assim, uma conquista pessoal contra a situação herdada (com os seus coeficientes de possibilidades e adversidades). Um prodígio contínuo de emancipação. Julgamos que é neste sentido que se deve compreender a recusa do Prémio Nobel da Literatura em 1964.

Apesar de todas as críticas legítimas (é bem verdade que errou e exagerou, ele próprio o reconheceu), são admiráveis os seus esforços para compreender a realidade-humana e militar por uma justiça social e política que privilegiasse os «deserdados» (o seu sentimento de dever alimentava a vergonha de poder ser rico e feliz). Por outro lado, pegando naquilo que Karl Jaspers disse de Nietzsche, devemos usar Sartre numa produção ativa de nós, tanto mais que ele foi um filósofo artista, inventor de futuros abertos. Talvez a principal finalidade da nova tradução de S.N. seja, a partir de Sartre, assumirmos, sem má-fé, a nossa condenação à liberdade (com isto não se encerra nada). Tanto mais que Sartre nos autoriza, ao dizer que se «Interpreta […] a partir do futuro» (p. 566), a ler S.N. juntando as intenções do livro à nossa realidade-humana, em vista de um projeto singular de existência.

Porém, mesmo que a existência seja mais autoprodução do que autoconservação, isso não significa, de modo algum, que estejamos autorizados a modificar sem restrições o sentido do passado. Aceitando esta salvaguarda, não é menos verdade que temos sempre a liberdade de introduzir a hermenêutica na ontologia, já que «o projeto fundamental que [somos] decide absolutamente a significação que pode ter para [nós] e para os outros o passado que [temos] de ser» (p. 598).

 Contando que Sartre dificilmente alimentará um otimismo ingénuo, visto que nele a «história de uma vida, qualquer que ela seja, é a história de um fracasso. O coeficiente de adversidade das coisas é tal que são necessários anos de paciência para obter o mais ínfimo resultado» (p. 580). É certo, porém, como vimos, que o para-si que somos se vai fazendo, «reclama[ndo] sempre um depois» (p. 643), não podendo nós deixar de escolher a nossa aventura individual. É esta aventura que devemos, se nos permitem a sugestão, assumir, sem desculpas nem esperanças vãs.