Miguel Ângelo Lopes
Mestre e doutorando em Sociologia (Iscte-Instituto Universitário de Lisboa); colabora no Observatório Português de Atividades Culturais (OPAC) desde a sua criação em dezembro de 2018.
José Soares Neves
Doutorado em Sociologia. Investigador integrado e subdiretor do CIES-Iscte, professor no Departamento de Sociologia/Escola de Sociologia e Políticas Públicas do Iscte. Diretor do Observatório Português das Atividades Culturais (OPAC) desde a criação em dezembro de 2018.
Patrícia Ávila
Doutorada em Sociologia. Professora Associada no Departamento de Métodos de Pesquisa Social da Escola de Sociologia e Políticas Públicas do Iscte. Investigadora Integrada no CIES-Iscte. Atualmente é diretora do Doutoramento em Sociologia (CIES e Iscte).
Artigo baseado na comunicação “Leitura de livros em Portugal. Tendências recentes numa perspetiva comparada com a União Europeia” para o XI Congresso Português de Sociologia (2021)
Resumo
No presente artigo analisam-se os resultados de inquéritos de âmbito internacional à população – concretamente o Eurobarómetro de 2007 e 2013 (Eurobarómetros 278 e 399), e o Inquérito à Formação e Educação de Adultos (IEFA) de 2007, 2011 e 2016 – cujo foco principal não é a leitura, mas que contêm perguntas relevantes sobre a evolução leitura de livros em Portugal.
Da comparação entre os resultados de Portugal e de outros países da Europa (União Europeia a 27) possibilitada pelos dois Eurobarómetros evidenciam-se os baixos níveis da leitura de livros em Portugal e o retrocesso do país no arco temporal em análise – a posição relativa de Portugal face aos congéneres europeus, aferida a partir da percentagem de leitores de livros baixa do penúltimo lugar em 2007 para o último lugar em 2013.
De seguida, tendo como conceito nuclear o de leitura como prática cultural, ou seja, perspetivando a leitura de livros como uma atividade realizada em tempos de lazer, efetua-se uma análise diacrónica para caracterizar a população portuguesa leitora de livros, em termos do perfil sociodemográfico e socioprofissional. Essa análise, que incide no IEFA, mostra um declínio generalizado, de 2007 para 2016, nas percentagens dos portugueses leitores de livros, sendo este mais acentuado nos homens, nos mais jovens (em particular nos estudantes) e nos mais escolarizados.
Artigo
Constatando as transformações da sociedade contemporânea portuguesa, nas últimas décadas, qual a evolução das práticas de leitura de livros em Portugal?
Não existindo um inquérito sociológico sobre leitura desde 2007[1], que fontes podem ser mobilizadas para tentar responder à pergunta acima enunciada?
O Eurobarómetro e o Inquérito à Educação e Formação de Adultos (IEFA), embora não sendo específicos sobre práticas de leitura, são inquéritos comparativos internacionais, repetidos no tempo, e que incluem variáveis sociodemográficas e alguns indicadores que permitem avançar respostas às perguntas colocadas, permitindo atualizar o conhecimento sobre a evolução verificada desde 2007 quanto ao lugar da leitura de livros em Portugal no contexto dos países da União Europeia, ao contingente dos leitores, aos perfis sociais e às principais variáveis explicativas[2].
Analisando os resultados do Eurobarómetro 278 e do Eurobarómetro 399[3], verifica-se que entre 2007 e em 2013, no contexto da União Europeia a 27 (UE-27), Portugal registou um decréscimo acentuado na percentagem de indivíduos que afirmam ter lido livros no ano anterior. Em 2013, o país tem o pior desempenho na leitura de livros entre os países da EU a 27, acentuando-se ainda mais a distância relativamente aos congéneres europeus. Em Portugal, em 2013, dos inquiridos que afirmam ter lido livros, cerca de dois em cada 10 lê pelo menos três vezes, e apenas um em cada 10 indivíduos lê mais do que cinco vezes por ano. O impacto da crise financeira e económica que ocorreu durante o período em análise poderá ser uma das explicações para a especificidade da tendência registada no país[4], no entanto, outros fatores devem ser equacionados.
Focando-nos na leitura de livros como atividade de lazer[5], e alargando o período em análise de 2007 a 2016 (fonte IEFA); assiste-se à inversão da tendência de crescimento até aí verificada em Portugal[6]. Em 2007 a percentagem total de quem afirma ler livros situa-se nos 44%, decresce em 2011 para 42%, fixando-se em 2016 em 40%. Uma descida de quatro pontos percentuais, portanto, em cerca de uma década.
Este decréscimo, embora transversal às diferentes categorias sociais analisadas, acentua-se nos homens, nos mais jovens (em particular nos estudantes) e, sobretudo, nos mais escolarizados. Esta evolução negativa dos níveis de leitura de livros verifica-se também entre os indivíduos que exercem uma atividade profissional. A análise dos resultados do IEFA possibilitou ainda concluir que, em 2016, a grande maioria dos inquiridos que afirma ler livros em lazer, lê menos de cinco livros por ano, e apenas um em cada 10 lê mais de 10 livros.
Apesar do declínio da prática de leitura de livros nos últimos anos, o perfil social predominante dos leitores de livros em Portugal é análogo ao perfil de que a bibliografia sociológica nos dá conta[7]: mais feminino do que masculino, mais jovem, mais escolarizado (com destaque para os estudantes), e mais urbano, metropolitano até.
Muitos estudos indicam a escolaridade como o fator determinante no que diz respeito à leitura de livros[8]. Uma vez que se regista uma melhoria significativa dos indicadores relativos à escolaridade da população (embora, no contexto dos países europeus, Portugal mantenha uma posição bastante desfavorável[9]), qual a explicação para o decréscimo verificado em Portugal, em particular entre os mais escolarizados?
Embora a resposta a esta questão permaneça em aberto, a análise realizada possibilita-nos alguns elementos para a reflexão. Por exemplo, o decréscimo verificado na leitura de livros entre os indivíduos mais escolarizados é mais proeminente nos mais jovens do que nos mais velhos, o que é sociologicamente muito relevante. Os resultados mostram, assim, uma grande proximidade nos níveis de leitura dos jovens com escolaridades diferentes, os quais são transversalmente baixos.
A questão que se coloca, e que importa aprofundar noutras investigações, é a de saber se as evidentes diferenças registadas entre os vários coortes geracionais refletem práticas culturais diferenciadas ao longo do ciclo de vida (o que significaria que aqueles que são jovens hoje passariam a ler mais quando fossem mais velhos, sobretudo os mais escolarizados), ou se, pelo contrário, estamos perante sinais de uma profunda mudança social que se manifesta, para já, sobretudo entre as gerações mais novas.
Importa registar que nem o Eurobarómetro nem o IEFA distinguem entre leitura em papel e em digital, offline e online, o que inviabiliza a análise respetiva e a das relações entre os dois suportes.
Se é verdade que em 2007 a leitura de livros em suporte digital não tinha a expressão que veio a ter posteriormente – embora em 2007 as pessoas já lessem livros em formato digital através do computador em 2007[10] – em 2013 a realidade era já outra, com uma penetração relevante do digital como suporte de leitura[11], sendo que, no caso concreto de Portugal, a leitura de livros em suporte digital não parece ser irrelevante[12]. Esta nota sobre o digital pretende, acima de tudo, chamar a atenção para a relevância de possíveis próximas edições destes inquéritos distinguirem os diferentes tipos de suportes, por forma a permitirem perceber de que modo o digital configura as sociedades atuais – e que a pandemia pelo COVID-19 veio acelerar – quer quanto à leitura em geral, quer, e em específico, quanto à leitura de livros.
Como reflexão final, um pouco mais abrangente, e tendo presente as alterações ocorridas na última década e meia nas práticas de leitura e os limites das fontes disponíveis, importa ainda referir que se é verdade que em Portugal se assistiu a um declínio na leitura de livros, isso não significa necessariamente que as práticas de leitura estejam a diminuir. Se ler não é forçosamente sinónimo de ler de livros[13], na atual sociedade em rede, do digital, verifica-se que a leitura é cada vez mais fragmentada e feita em diferentes tipos de suportes[14].
Importa, assim, aprofundar a análise convocando
outras dimensões relevantes, de modo a apreender as múltiplas facetas que a
leitura (incluindo a de livros) adquire no atual contexto, marcado pela
crescente presença do digital e cujo impacto nas práticas de leitura,
considerando os seus múltiplos suportes, está ainda por compreender.
[1] Santos, M. de L. L. dos (coord.), Neves, J. S., Lima, M. J., Carvalho, M. (2007), A leitura em Portugal, Lisboa, GEPE.
[2] Este artigo retoma a dissertação de mestrado em Sociologia de Miguel Ângelo Lopes, de 2019, intitulada Leitura de livros em Portugal e na Europa. Tendências recentes numa perspetiva comparada.
[3] Comissão Europeia (2007), Eurobarometer 278: European Cultural Values, Bruxelas, European Commission’s Directorate-General for Communication, disponível em: https://ec.europa.eu/commfrontoffice/publicopinion/index.cfm/Survey/getSurveyDetail/instruments/SPECIAL/surveyKy/477/p/5; e Comissão Europeia (2013), Eurobarometer 399: Cultural access and participation, Bruxelas, European Commission’s Directorate-General for Communication, disponível em: https://ec.europa.eu/commfrontoffice/publicopinion/index.cfm/Survey/getSurveyDetail/instruments/SPECIAL/surveyKy/1115/p/2.
[4] Neves, J. S. (2015), “Práticas culturais e desigualdades na Europa”. In R. M. do Carmo, A. F. da Costa (Eds.), Desigualdades em Questão: Análises e Problemáticas, Lisboa, Mundos Sociais, pp. 31–41.
[5] Sobra a noção de leitura de livros como atividade de lazer ver:
Donnat, O. (2009), Pratiques Culturelles des Français à l’ère Numérique. Enquête 2008, Paris, La Découverte/Ministère de la Culture et de la Communication;
Griswold, W., Mcdonnell, T., Wright, N. (2005), “Reading and the Reading Class in the Twenty-First Century”. Annual Review of Sociology, 31(1), pp. 127–141;
Griswold, W., Naffziger, E., Lenaghan, M. (2011), “Readers as audiences”. In V. Nightingale (Ed.), The Handbook of Media Audiences, Malden, Oxford e Chichester, Wiley-Blackwell, pp. 19–40;
Neves, J. S. (2015), “Cultura de leitura e classe leitora em Portugal”. Sociologia, Problemas e Práticas, 78, pp. 67–86.
[6] Ver referência da nota 1, p. 74.
[7] Griswold, W. (2008), Regionalism and the reading class, Chicago e Londres, The University of Chicago Press; e Neves, J. S. (2015), “Cultura de leitura e classe leitora em Portugal”. Sociologia, Problemas e Práticas, 78, pp. 67–86.
[8] Ver Neves, J. S. (2015), “Práticas de leitura em Portugal”. In G. Cardoso (Ed.), O Livro, o Leitor e a Leitura Digital, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 120.
[9] OCDE (2019), Education at a Glance 2019: OECD Indicators, Paris, OECD Publishing.
[10] Ver referência da nota 1.
[11] Cardoso, G., Cameira, E. (2015), “A leitura digital no contexto global e nacional: resultados de um inquérito aos leitores digitais em 16 países”. In G. Cardoso (Ed.), O Livro, o Leitor e a Leitura Digital. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 227-269.
[12] Neves, J. S. (2016), “Modos de relação com a leitura impressa e digital em Portugal”. In T. D. Martinho, J. T. Lopes, J. L. Garcia (Eds.), Cultura e Digital em Portugal, Lisboa, Afrontamento, pp. 193–208.
[13] Santos, M. de L. L. dos (2012), Sociologia da Cultura. Perfil de uma carreira, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais.
[14] Lahire, B. (2004), “Formas de lectura estudiantil y categorías escolares de la comprensión de la lectura”. In B. Lahire (Ed.), Sociologia de la lectura. Del consumo cultural a las formas de la experiencia literaria, Barcelona, Editorial Gedisa, pp. 149–178; Baron, N. S. (2015), Words Onscreen, Oxford, Oxford University Press, e Baron, N. S. (2017), “Reading in a digital age”. Phi Delta Kappan, 99 (2), pp. 15–20.