Alexandre Guerreiro
Investigador, Doutorado em Ciências Jurídico-Internacionais e Europeias pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
A 7 de Dezembro de 2020, o Conselho da União Europeia adoptou a Decisão (PESC) 2020/1999. A partir deste instrumento, o Conselho pode impor medidas restritivas contra o que a União Europeia (UE) considere tratarem-se de violações e atropelos graves dos direitos humanos, primordialmente, em casos de crimes contra a humanidade e de genocídio, mas também perante realidades mais controversas, que não só não se resumem aos exemplos elencados na Decisão como ainda visam condutas de avaliação absolutamente vaga e arbitrária. São disso exemplo as chamadas violações à “liberdade de reunião pacífica” ou até à “liberdade de opinião e de expressão”.
No último trimestre de 2020, tive a oportunidade de contribuir para a iniciativa do Gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos relacionada com o estudo das denominadas medidas coercivas unilaterais. Estas medidas são comummente referidas, mesmo pelo poder político dos mais variados países, como tratando-se de “sanções”, mas não são, na verdade, sanções, uma vez que inexiste relação vertical entre o Estado ou organização internacional que sanciona e o Estado sancionado, pelo que falamos de medidas hostis e não de sanções. Assim, é notório o reconhecimento pela ONU de que estas medidas podem comportar em si natureza ilícita, desde logo, por violarem o princípio da igualdade de soberanias, constatando-se ainda que Portugal tende a afastar-se da solução de aplicação autónoma destas medidas, seguindo as decisões que emanam da Política Externa e de Segurança Comum (PESC) da UE.
Apesar das externalidades negativas que se geram a partir de uma decisão política com natureza ilícita, ainda que para Portugal tais medidas comportem natureza administrativa e não penal, na prática, são medidas punitivas e não administrativamente preventivas. Afinal, por exigirem uma análise prévia a alegadas violações de direitos humanos, falamos da comissão de potenciais crimes e da extraterritorialidade da lei penal dos Estados a factos com os quais estes Estados e a UE não têm qualquer elemento de ligação concreto.
O domínio da jurisdição extraterritorial é de tal forma controverso que pode levar à sobreposição de leis e interpretações individuais em diferentes jurisdições passíveis de comprometer a existência de um único conjunto de regras e de uma visão uniforme sobre determinados eventos. Todavia, os perigos da extraterritorialidade do direito penal não são uma novidade no Direito. Afinal, apesar de a justiça internacional já se ter pronunciado sobre o assunto, ainda que com muitas cautelas, na década de 1920 – quando o Tribunal Permanente de Justiça Internacional tomou posição no caso SS Lotus – só na década de 1970 o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) começou a pronunciar-se com maior firmeza sobre a chamada jurisdição universal que alguns Estados pretendem avocar para si.
No caso Barcelona Traction, o TIJ assinalou que “as obrigações de um Estado para com a comunidade internacional como um todo” são obrigações que, “pela sua própria natureza […] são da preocupação de todos os Estados”, tratando-se das obrigações erga omnes… obrigações que, por serem tão importantes, “todos os Estados podem ser considerados como tendo um interesse jurídico na sua protecção”.
As obrigações erga omnes estão associadas aos crimes mais graves cometidos contra a humanidade (genocídio, crimes de guerra e outros da mesma natureza). A referência do TIJ no caso Barcelona Traction permanece ainda de tal forma actual que no caso Questões relativas à Obrigação de Julgar ou Extraditar (Bélgica v. Senegal), decidido em 2012, o TIJ decidiu que “qualquer Estado Parte da Convenção [contra a Tortura] pode invocar a responsabilidade de outro Estado Parte com o fim de assegurar o cumprimento das suas obrigações erga omnes partes […] e fazer cessar a falha”.
Sucede que o direito a invocar essa responsabilidade e a fazer cessar a violação de normas de direito internacional geral ou consagrado em tratados internacionais não significa que cada Estado unilateralmente se assuma como polícia mundial e investigue, julgue e sancione o que entender que deve ser punido de acordo com a sua agenda ideológica. Cada Estado tem, sim, o dever de não se ingerir em jurisdição alheia e legitimidade para recorrer ao TIJ ou a outro tribunal internacional com competência especializada sobre o assunto da controvérsia e peticionar que o tribunal responsabilize o Estado infractor (veja-se a actuação, neste sentido, tanto da Gâmbia contra o Myanmar, como dos Países Baixos contra a Síria, no TIJ).
Deste modo, impor ou querer forçar a visão de um conjunto de valores de forma unilateral, sem atender a critérios objectivos que permitam alcançar uma visão uniforme da potencial infracção e também sem recolha de prova no terreno através de uma investigação profunda e isenta é, na verdade, uma forma de ingerência ilícita com o objectivo claro de um Estado interferir nos assuntos internos de um outro sem obter autorização de qualquer Estado ou organização com legitimidade para esse efeito. Está, por isso, em causa uma motivação geopolítica e não juridicamente humanitária que viola a Carta das Nações Unidas e pode obrigar o Estado ingerente a ser responsável pelos actos que praticou.
Neste sentido, devemos recordar o caso Mandado de Detenção de 11 de Abril de 2000 (República Democrática do Congo v. Bélgica), que trouxe alguns tópicos que me parecem importantes para a reflexão em torno deste assunto. O TIJ não se pronunciou sobre o exercício de jurisdição universal pelos Estados porque a RD Congo não formulou pedido nesse sentido. Mas o juiz Presidente Gilbert Guillaume afirmou que não existe “soberania predeterminada” e insistiu que o exercício de jurisdição universal sobre determinados tipos de crimes decorre de tratados celebrados entre Estados que atribuam essa legitimidade.
Repare-se que a discussão internacional sobre o exercício de jurisdição universal tem acontecido relativamente a crimes jus cogens – falamos, portanto, das maiores atrocidades cometidas contra a humanidade. Com o devido respeito pela preocupação que a possível violação das liberdades de expressão e de associação merecem de todos nós, não é possível compará-las com o genocídio ou com crimes de guerra, como a UE pretende fazer contra determinados alvos.
Contudo, mesmo supondo que todos estes crimes seriam comparáveis entre si, mesmo nos casos de genocídio, em que existe uma convenção própria através da qual os Estados se comprometem a combater e julgá-lo, os Estados que pretendam investigar e julgar tais situações só o podem fazer se houver algum elemento de conexão com o Estado que pretende exercer o seu poder punitivo: alguma vítima ter a nacionalidade desse Estado, existir consenso quanto à definição do crime e quanto à culpa dos autores dos crimes e caso estes se encontrem no seu território e mais ninguém o querer julgar.
Fora destas situações, os Estados carecem de legitimidade para exercerem jurisdição universal sobre violações cometidas noutros palcos e cometidas e sofridas por pessoas sem qualquer tipo de ligação àqueles. Neste quadro, não deixa de ser preocupante assistir à crescente tendência de Estados e organizações regionais insistirem unilateralmente no recurso a soluções jurídicas hostis como forma de camuflarem a aplicação de medidas inspiradas, não raras vezes, por aspectos puramente políticos e mais como forma de fragilizar o poder de um Estado do que propriamente em fazer justiça para as vítimas. Numa altura em que deve ser privilegiado o multilateralismo e o consenso, sobretudo através dos variados fóruns da ONU, a Decisão (PESC) 2020/1999 é passível de gerar alarme e de consolidar uma tendência passível de se revelar uma autêntica caixa de pandora mais apta a escalar a tensão internacional do que a concorrer para a paz e a segurança internacionais.