Paulo Faria é escritor, tradutor e cronista. O seu último romance, Em Todas as Ruas te Encontro, publicado pela Minotauro, foi escrito durante a pandemia e chegou às livrarias no início de 2021.


Nunca havia que chegasse para todos. Éramos os herdeiros de uma longa linhagem de privações. A comida não chegava para todos, quem se distraísse ficava sem nada. Vigiávamos com olhos frios a grossura das fatias alheias, muito atentos à aritmética dos bocados que cabiam a cada um. O amor não chegava para todos, os beijos e afagos dados a um irmão eram-nos subtraídos. Sentíamo-nos espoliados ao ouvirmos um riso cúmplice atrás de uma porta fechada. As palavras, essas, fluíam com abundância, como um gás que procurasse preencher todo o espaço disponível. O espaço era amplo, mas, de tão inóspito, parecia apertado. As melhores palavras, as únicas que consolavam, tinham sido escritas longe dali, havia muito tempo, por homens e mulheres já mortos, semideuses que entravam no corpo do meu pai e que falavam através dele. No tropel sufocante do liceu, a heroína e outras drogas lançaram-nos os seus cantos de sereia, mas o que se passava nas páginas dos livros era mais tentador. Os livros eram os únicos lugares do mundo onde havia comida, amor, espaço e tempo que chegasse para todos. Os únicos lugares onde se subvertiam hierarquias e precedências. Foi na literatura que se rompeu, por fim, a genealogia da fome ancestral, vinda de tão longe. Foi nas páginas dos livros que nos encontrámos. Foi ali que aprendemos a viver.