Catarina Monteiro Pires

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Doutora em Direito e Professora da Faculdade de Direito de Lisboa e investigadora do CIDP dessa mesma Faculdade, nas áreas do Direito Privado e do Direito Comercial Internacional.  É árbitra do South China International Economic and Trade Comission (Shenzen Court of International Arbitration), do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC), da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial (CAMARB) e do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa.


1. A República Portuguesa já é parte na Convenção das Nações Unidas sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias, adotada em Viena, em 11 de abril de 1980. O Decreto n.º 5/2020, de 7 de agosto, aprovou, para adesão, a referida Convenção. Em anexo a este Decreto consta a versão inglesa e uma tradução para língua portuguesa do texto da Convenção.

O Aviso n.º 48/2020, de 10 de outubro, por seu turno, tornou público que a República Portuguesa depositou, em 23 de setembro de 2020, o seu instrumento de adesão à Convenção. Ainda conforme consignado neste mesmo Aviso, e de acordo com o disposto no artigo 99.º, n.º 2, da Convenção, esta entrará em vigor para a República Portuguesa no dia 1 de outubro de 2021.

2. Trata-se de um passo há muito aguardado e que reveste importância, sobretudo no domínio dos contratos comerciais (que são aqueles que temos em vista neste artigo). Tal importância deve-se, por um lado, a razões atinentes ao âmbito de aplicação e de esperada influência da Convenção e, por outro lado, a motivos relativos à particular e diferenciada “arquitetura jurídica” desta, sobretudo quanto ao “incumprimento” do contrato (melhor dizendo, quanto à inexecução do contrato).

3. Quanto ao primeiro conjunto de razões (relativas ao âmbito de aplicação e de influência da Convenção), enunciamos quatro aspetos.

Primeiro, as principais exportações e importações de Portugal dizem respeito a mercadorias incluídas no âmbito de aplicação da Convenção.

Segundo, independentemente da referência direta das Partes (e estas podem estipular no contrato que este se rege pela Convenção ou pela Convenção e pelos Princípios Unidroit), a partir da data de entrada em vigor da Convenção, dentro do respetivo âmbito material e espacial de aplicação (cf. artigos 1.º e ss), e respeitando a autonomia privada das Partes, este texto normativo passará a ser direito aplicável por tribunais, judiciais e arbitrais, a contratos de venda internacional de mercadorias.

Terceiro, a compra e venda, entendida no sentido próprio da Convenção, compreende um âmbito mais amplo do que o que habitualmente parecia conhecer no direito português, podendo incluir contratos em que há uma encomenda de um bem a fabricar, a implicar uma obra. Com efeito, a Convenção dispõe no seu artigo 3.º, n.º 1, que se consideram contratos de compra e venda “os contratos de fornecimento de mercadorias a fabricar, salvo se a parte que fez a encomenda das mercadorias se comprometa a fornecer uma parte essencial dos materiais necessários a esse fabrico ou produção”.

Quarto, a nacionalidade das partes é irrelevante (tal como a natureza, civil ou comercial, das partes ou do próprio contrato) (cf. artigo 1.º, nº 3).

4. Quanto ao segundo conjunto de razões (atinentes à arquitetura jurídica da Convenção), salientamos também quatro circunstâncias.

Primeira, o modelo das “perturbações do cumprimento” da Convenção é diferente do que consta do Código Civil. Por exemplo, na Convenção, não há uma diferenciação entre mora, incumprimento definitivo e cumprimento defeituoso, sendo a lógica unitária (na versão inglesa, a unificação é assegurada pelo conceito de breach e de fundamental breach). O ponto de partida da Convenção é o de que o devedor incorre em incumprimento quando pratica um ato ou omissão que corresponde a uma violação fundamental do contrato (cf. artigo 25.º da Convenção). O modelo da Convenção é, ainda, mais funcional, e menos “conceptual” do que o que está subjacente ao Código Civil português. Por exemplo, a figura central e “modelar” do Código Civil português, correspondente à impossibilidade superveniente de prestar (artigos 790.º e ss), não conhece este papel no seio da Convenção (e discute-se até qual a sua localização exata no seio desta). Mais: o modelo da Convenção corresponde a um regime a interpretar e aplicar autonomamente. Isto quer, desde logo, dizer que a Convenção não deve ser interpretada à luz de critérios e densificações próprias de cada Estado. Com efeito, o artigo 7.º, n.º 1, esclarece que na interpretação da Convenção, deverá ser considerado o caráter internacional desta, bem como a necessidade de promover a uniformidade de aplicação da mesma e de assegurar o respeito pela boa-fé no comércio internacional.

Segunda, a base do sistema de “inexecução contratual” da Convenção é objetiva, prescindindo de culpa e, mesmo quando valorações concretas são convocadas para efeitos de “reação indemnizatória”, a diligência do “bom pai de família” não é critério, atendendo-se antes à esfera de controlo, de prevenção e de previsão do concreto contraente (cf. artigo 79.º da Convenção).

Terceira, as opções da Convenção revelam-se adequadas, ao localizar o incumprimento (e cumprimento defeituoso) relativo à compra e venda no quadrante próprio da “inexecução” contratual, desligando-o da ideia de “erro” que subjaz aos “caminhos” seguidos pelos artigos 913.º ss (e 905.º e ss) do Código Civil português.

Quarta, a Convenção reconhece e afirma, com larga latitude, a essencialidade da autonomia privada das Partes. A modelação do regime aplicável pode resultar de estipulação contratual, podendo as Partes podem afastar, total ou parcialmente, o regime da Convenção (artigo 6.º).

Em poucas linhas: respeitada a sua feição e autonomia, a Convenção constitui um regime flexível, pragmático e funcional, como é desejável no comércio, em particular no comércio internacional.