Paulo Faria

Paulo Faria nasceu em 1967, em Lisboa. Licenciou-se em Biologia por mero acidente. É, há longos anos, tradutor literário, tendo traduzido obras de autores como George Orwell, Jack Kerouac, James Joyce, Don DeLillo e Cormac McCarthy. Viajou em busca das nascentes de algumas das obras que traduziu, o que o levou ao Tennessee, ao Texas, ao Novo México. Venceu, em 2015, o Grande Prémio de Tradução APT/SPA, pela tradução de História em Duas Cidades, de Charles Dickens. Publicou Estranha Guerra de Uso Comum (romance, 2016) e crónicas nas páginas da revista Ler e do jornal Público.

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Empoleirada no escadote, que trouxera da despensa com mil cuidados, sem fazer ruído, enquanto os pais dormiam, Sónia pintava o tecto da sala, junto à porta do seu quarto. Um sfumato em tons cinzentos e avermelhados, aplicado com rotações delicadas do pincel. Uma enorme mancha de contornos foscos, em cambiantes de azul, como uma infiltração de humidade. Fazia aquilo em noites alternadas. Nas outras noites, também alternadas, esperava que os pais se deitassem, ia buscar o escadote e pintava o tecto de branco, fazendo a mancha desaparecer. Era uma labuta de Penélope, desmanchando a cada noite o que fizera na noite anterior. Quando os pais acordavam, o trabalho estava concluído, o escadote arrumado no seu lugar. Deixava a janela entreaberta para arejar, para não cheirar a tinta. O pai e a mãe acordavam, entravam na sala, olhavam para o tecto sem curiosidade, sabendo já o que ali iam encontrar, uma enorme mancha, sempre renovada e sempre diferente, ou então a superfície de estuque imaculadamente branca. Depois entreolhavam-se e não diziam nada. Tinham entendido.

          Sónia já podia circular pela casa, a quarentena imposta pelo pai chegara ao fim. Já podia ir até à marquise, que havia muito convertera no seu estúdio de pintura. Mas ela, o pai e a mãe não se tocavam, não se beijavam. Cada qual tinha a sua loiça própria, as suas toalhas separadas. O pai dormia na sala, no sofá, como se ele e a mãe de Sónia se estivessem a divorciar, mas nenhum deles tivesse dinheiro para sair de casa.

          Nunca mais experimentarás um blush na loja de cosmética com o pincel comum.

          A atmosfera saturara-se de mensagens optimistas, «Juntos vamos vencer esta batalha», «Juntos vamos conseguir». Havia bandeiras de Portugal nas varandas, como durante os campeonatos europeus de futebol, como durante os mundiais. Na prática, porém, as pessoas que soltavam ou propagavam essas tiradas esperançosas e que desfraldavam às janelas as bandeiras ufanas eram as primeiras a abraçar os cenários mais negros, recusando-se a correr o mais pequeno risco. Num quadro de incerteza, em que pouco se sabia do vírus, optavam por pressupor o pior, deduziam que ele se transmitia de todas as maneiras possíveis e imaginárias, através do ar, à distância, debaixo de água, preferiam achar que ele resistia a tudo, ao calor, ao frio, à secura, à luz do Sol, que ele se colava a todas as superfícies, à pele humana, ao plástico, ao cartão, aos tecidos, obstinado, feroz, quase indestrutível, a não ser por acção do sacrossanto álcool etílico. As pessoas mostravam-se, simultaneamente, muito optimistas e muito pessimistas, sem que isso as afectasse, sem que se apercebessem, sequer, dessa contradição insanável. Pior: como se essa contradição as fortalecesse e lhes desse alento. Como se o optimismo piegas e o pessimismo histérico se reforçassem mutuamente.

          Ela própria sentia o mesmo balanço constante, o mesmo vaivém entre perspectivas risonhas e negros presságios, até ficar enjoada e zonza, com a cabeça a andar à roda. Havia uma diferença, porém. Na cabeça dela, tudo se passava como naquelas alturas em que elaborava as suas listas de prós e contras. No preciso momento em que, finda a lista e ponderados os prós e os contras, tomava a sua decisão, a alternativa que acabava de pôr de parte, em vez de se eclipsar discretamente, parecia fortalecer-se, contaminando com as suas possibilidades frustradas o rumo escolhido. Quando se decidia pelo «sim, vamos a isso», os «contras» acudiam a sentar-se na primeira fila da plateia, prontos a deliciar-se com um eventual fracasso. Pelo contrário, quando se decidia pelo «não, nem pensar», os «prós» acompanhavam-na para toda a parte, a segredar-lhe ao ouvido as delícias de que acabara de abdicar. Os seus estados de espírito eram, portanto, sempre contaminados pelo que poderia ter sido, pelo que não chegara a ser. O optimismo dela nunca era um optimismo puro, o pessimismo dela nunca era um pessimismo genuíno. Os outros, por seu turno, pareciam saltitar entre estes dois estados de espírito com uma destreza invejável, não permitindo que o optimismo contaminasse o pessimismo e vice-versa. Os outros viviam, portanto, num estado de esquecimento permanente. A felicidade era isto: um estado de esquecimento permanente.

          Nunca mais pedirás uma dentadinha do pão dos outros.

          Não se conseguia libertar da impressão de que aquela pandemia tinha laivos de uma monumental encenação, em que os extremos de despreocupação e de pânico que testemunhava nos outros se houvessem dissociado por completo da sua causa primeira, emancipando-se em relação ao vírus até se bastarem a si próprios, sucedâneos de sucedâneos. A despreocupação palerma e o pânico disposto a tudo de que as pessoas davam mostras pareciam-lhe tão artificiais e tão deliberadamente pueris como as suas próprias listas de prós e contras, que ela invariavelmente adornava com excessos e floreados, deleitando-se a ramificá-las além do razoável, já desligadas do seu fim primordial. Não se conseguia libertar da ideia de que a pandemia ganhara vida própria e já nada tinha que ver com o vírus. Mesmo que agora dissessem às pessoas que o vírus, no fim de contas, não se transmite, elas já não acreditariam. Recusar-se-iam obstinadamente a regressar ao normal, àquilo que era, até há bem poucas semanas, o normal. Tinham muito medo e já não sabiam bem de quê.

          Nunca mais aceitarás o lenço de papel que mãos prestáveis te estenderem quando espirrares.

          A convite de um grupo de amigos da faculdade, participou num lanche por videochamada. No ecrã do computador surgiram sucessivamente sete quadrados, num dos quais figurava ela própria. As pessoas falavam, bebiam, comiam, exibiam a comida no ecrã antes de dar grandes dentadas, riam-se. Sónia nunca participara numa conversa por Skype com tanta gente. Certas coisas, que até então lhe tinham escapado, tornaram-se claras. Pensou: «No Skype não é possível vermos os outros sem sermos vistos. Estamos sempre presentes, nunca nos ausentamos do olhar dos outros.» Para alguém como ela, que gostava de observar discretamente as outras pessoas, mantendo-se à margem, aquilo era uma agressão permanente. Era como estar no meio de uma sala apinhada, com um holofote apontado à cara. Era como ser interrogada pela polícia. Era como ser o modelo nu numa das aulas de pintura, na faculdade. Sempre se sentira constrangida nas aulas de modelo nu. Sempre achara que era uma questão de tempo até o professor se virar para ela e lhe dizer: «Agora é a tua vez. Despe-te e sobe para ali.»

          Nunca mais beijarás um desconhecido na boca sem temor.

          Nas longas horas de ócio que a pandemia lhe proporcionava, pôs-se a pesquisar dados sobre a malária. Leu na página oficial da OMS que, em 2018, houve 228 milhões de casos de malária no mundo, 93% dos quais em África. Que, nesse ano, morreram 405 000 pessoas de malária, das quais 272 000 crianças com menos de cinco anos. Ou seja, 1110 pessoas por dia, das quais 745 crianças. Falou ao Henrique destes números, e ele disse-lhe logo, com um travo de impaciência na voz:

          — Se estás a querer fazer paralelismos com a pandemia actual, olha que não é comparável.

          Sónia atalhou:

          — Mas o que é que não é comparável? O sofrimento? Olha que, se calhar…

          Como quem explica as coisas a uma criança pequena, com um misto de paternalismo e fastio, Henrique falou da curva, do pico, do achatamento, do risco de os serviços de saúde entrarem em colapso. Sónia já ouvira aquilo muitas vezes, declinado de mil maneiras, mas era alérgica a vozes em coro a repetirem verdades incontestáveis. Disse:

          — Bem, como os serviços de saúde dos países africanos onde mais se morre de malária já entraram em colapso há muito tempo, se é que alguma vez existiram, não se corre esse risco por lá, de facto. Nesse aspecto, eles são imunes às pandemias: venham elas, umas, duas, três ao mesmo tempo! Malária, sida, vírus-da-coroa, quantos são, quantos são?

          Henrique interrompeu-a, disse-lhe que isto era demagogia pura. Falou em «desonestidade intelectual». Sónia respondeu:

          — Vê lá se entendes. Não digo que estamos demasiado preocupados com esta pandemia. Só digo que, antes, não estávamos suficientemente preocupados com outras pandemias. É isto que me dá vertigens.

          A ironia suprema seria que um medicamento usado para tratar a malária, a doença dos pretos, dos miseráveis, dos deserdados do hemisfério sul, acabasse por salvar deste novo vírus os opulentos, os podres de ricos. Sónia pensou: «Espero bem que não. Se assim fosse, nem uma caixa de cloroquina chegaria às mãos dos pobres de África nos próximos anos. Tomara que não. Inventem um medicamento para ricos, se querem.»

          Durante o lanche virtual por Skype, a ligação à Internet de um ou outro dos amigos falhava constantemente. Joana queixou-se: «Agora não vos estou a ver, só ouço as vozes.» Mais adiante, foi a vez de Henrique intervir: «Não ouvi o que disseste, Alice, estás sem som, tens o microfone desligado.» Sónia pensou que aquela videochamada era como as aparições de Fátima. Há sempre um pastorinho que ouve, mas não vê, outro que vê, mas não ouve nem pode falar, um felizardo que pode ver, ouvir e falar. Eram as aparições de Fátima, mas sem espiritualidade, sem emoção, sem gente a atropelar-se, sem gente a espojar-se no chão e a espumar pela boca, sem promessas de cura miraculosa. Eles nem sequer eram pastorinhos trocistas, a brincar às aparições, como os videntes do Fellini na Dolce Vita. Nem isso. Alguém disse que o tio de um colega deles morrera dois dias antes. Joana perguntou. «Morreu de quê?» E Henrique: «De ataque de coração.» E Joana: «Do mal, o menos.»

          Sónia pensava constantemente nos homens e mulheres que, se estivessem vivos, a ajudariam a entender o que se passava. Umberto Eco, Susan Sontag. Pasolini, mas mataram-no. Mark Fisher, mas suicidou-se. Guy Debord, mas suicidou-se. Gilles Deleuze, mas suicidou-se. Trouxera de Milão, na mala, nos bolsos, na carteira, talões e facturas de lojas onde fizera compras, de restaurantes e de bares onde fora comer ou beber um copo. Deixava esses papelinhos deliberadamente pela casa, em lugares estratégicos, onde sabia que o pai e a mãe os encontrariam. Uma factura de uma loja de ferragens, onde comprara um candeeiro para a secretária. Facturas de livros comprados na Feltrinelli, de tintas e pincéis comprados na Colorificio Pecchio, cartões de bares: o Piccolo e Sublime, o Cucchiao d’Oro. No verso de cada papel, escrevia frases premonitórias.

          Nunca mais confiarás na saliva alheia.

          O pai e a mãe não lhe diziam nada. Sónia via desaparecer os papéis, tornava a pôr outros no seu lugar. Dentro da caixa das bolachas, dentro da lata do açúcar, na porta do frigorífico, presos com um íman, nos bolsos dos casacos do pai e da mãe. Uma vez, meteu um destes papelinhos no meio das folhas de uma couve. Tinha uma provisão infindável de facturas contaminadas com o ar milanês, com os perdigotos milaneses. Sentia-se na pele de uma profetisa amaldiçoada. Começou a assinar estes bilhetes como «Cassandra».

          Nunca mais farás festas nos cães dos outros.

          No Skype, as divisões onde os amigos dela estavam a lanchar pareciam minúsculas, claustrofóbicas. O mesmo sucedia com o quarto onde ela própria se encontrava, no quadradinho do ecrã que lhe estava reservado. As vozes soavam metálicas, faziam eco, muito próximas ou muito distantes, aos gritos ou abafadas. Ouviam-se sons rangentes, cavos. Num documentário sobre a emissão radiofónica de A Guerra dos Mundos, de Orson Welles, que Sónia vira uma vez, explicaram que, para simular o ruído da porta da nave espacial ao abrir-se, um dos colaboradores de Welles gravou o som da tampa de um frasco de pickles a ser desenroscada dentro de uma sanita, para fazer eco. Sónia pensou: «A nossa tecnologia de ponta leva-nos de regresso aos anos 30.» Henrique começou a falar com uma voz pipilada, como um daqueles alienígenas ridículos da Guerra das Estrelas. Alguém o avisou: «Estás sem Internet.» Sónia pensou: «A nossa tecnologia de ponta assemelha-se à ficção científica mais estafada e palerma que já se fez.»

          O pai dela saiu, dizendo que ia visitar o tio à Costa da Caparica. Antes, explicou, ia passar pela casa do amigo Álvaro, para o apanhar. Parado no átrio, procurou na mesinha as chaves do carro. Parecia um astronauta saído de um filme para crianças, de gorro enterrado até aos olhos, luvas de borracha, embrulhado na cobertura impermeável, lilás, de uma tenda de campismo. Antes de abrir a porta da rua, pôs no rosto uma máscara cirúrgica, onde Sónia pintara uma boca de lábios grossos, à Rolling Stones. Furtara a caixa das máscaras e passara uma tarde na marquise a pintá-las laboriosamente, uma a uma, com dentes de caveira, caninos de vampiro, bocas de palhaço. Pensara então: «Resistir é, sempre, um gesto estético.» Pela janela, viu o pai dirigir-se para o carro com movimentos hirtos. Achou-o comovente, frágil, ridiculamente frágil. Como alguém a erguer o braço para cobrir o rosto e defender-se de uma rajada de metralhadora de um helicanhão. Teve vontade de correr atrás dele, de o chamar e de o abraçar, mas soube logo que ele recusaria o abraço e não o quis constranger.

          Nunca mais te sentirás ridículo.

          Mal viu o carro do pai desaparecer à esquina, disse à mãe:

          — Vou sair.

          E, antes que ela pudesse objectar, desceu a escada e deu por si na rua. Era a primeira vez que saía de casa desde o regresso de Itália. Foi até à placa central, respirou fundo, olhou em volta. No rés-do-chão do prédio ao lado, alguém pendurara da janela uma fronha cortada ao longo da costura, onde as crianças da casa tinham pintado, com muitas cores, a frase «Vai ficar tudo bem», encimada por um arco-íris, nuvens risonhas, um Sol. Sónia meteu a mão no bolso do blusão, encontrou ali um marcador grosso. Adiantou-se e, com gestos precisos, traçou um grande «Não» antes da frase colorida. Afastou-se pela rua acima.

          No lanche por videochamada, os silêncios eram sempre embaraçosos, perturbantes. O Skype é um lugar sem silêncio. Os amigos dela olhavam para fora do ecrã, falavam com gente que estava fora do enquadramento da câmara. No Skype, conversamos com o mundo inteiro. De vez em quando, sem aviso, irrompiam outras pessoas num dos quadradinhos do ecrã, os irmãos e as irmãs de um deles, a mãe da Joana, figuras curvadas, de rosto torcido, em ângulos bizarros. Apareciam de repente, depois eclipsavam-se sem deixar rasto. O Skype é um mundo fragmentado, descontínuo, ameaçador. Quando todos desligaram, ao cabo de despedidas intermináveis, e os quadradinhos no ecrã se apagaram, um por um, Sónia percebeu que se sentia exausta, com dor de cabeça. Aquele lanche virtual tivera todos os incómodos dos encontros ao vivo com os amigos e nenhuma das suas vantagens, a que vinham juntar-se novos incómodos causados pela tecnologia. Tratara-se, afinal, de um exercício de solidão acrescida. «Se isto é o futuro», pensou, «então não quero. Dispenso. Prefiro ver um filme.»

          Nunca mais poderás manifestar-te pelo clima.

          Caminhou pela rua acima. Tudo exibia agora um ar de abandono. Num prédio de escritórios em cuja entrada havia um painel para inscrever os nomes das empresas, uma linha para cada andar, viu que, entre nomes pomposos e estrangeirados de escritórios de advocacia e de empresas de marketing, alguém escrevera nos espaços em branco, numa caligrafia oscilante: «Bailarino rancoroso», «Drogado ambicioso», «Niilista metódico», «Forcado feminista». Viu um homem de ténis e calções a correr pela ciclovia às arrecuas, a toda a velocidade, e ficou a contemplá-lo, à espera de o ver cair de costas. Não desejou vê-lo cair de costas, mas achou que era inevitável isso acontecer. O homem, no entanto, continuou lançado, correndo às arrecuas como uma flecha, a fitá-la, até dobrar a esquina e desaparecer.

          Nunca mais poderás erguer barricadas nas ruas.

          Pensou que talvez a experiência desagradável do lanche por videochamada fosse fruto dos problemas técnicos. Que, se a tecnologia fosse mais evoluída, se a imagem dos seus amigos no ecrã fosse perfeita, com altíssima definição, ou mesmo tridimensional, qual holograma, então talvez aquele cansaço e aquela sensação de vazio não a tivessem invadido no final. Depois concluiu que não. Que ainda seria pior. Que, no dia em que a tecnologia nos der a ilusão de que a presença física dos outros é dispensável, estaremos definitivamente mortos.

          Viu, ao fundo da rua, um velho e uma mulher de cinquenta e tal anos. A mulher fazia gestos exaltados. A configuração dos prédios e o tapume de um estaleiro de obras permitiram a Sónia aproximar-se e escutar sem ser vista.

          — Não pode sair de casa, já lhe disse, pai! — exclamou a mulher, quase aos gritos. — Já é a terceira vez que o apanho aqui!

          — Ó filha — disse o velho, em tom exausto —, mas queres que eu dê em doido? Preciso de ir ter com os meus amigos ao jardim, dar dois dedos de conversa…

          — Não pode, percebeu, pai? — A voz da mulher tornou-se policial. — Não pode, para seu bem e para o bem de todos! Se não quer saber de si, ao menos pense nos outros!

          Sónia espreitou de trás do tapume. Viu o velho a endireitar-se, muito digno, e a entrar no prédio. «Como é que se resiste», pensou, «aos ditames de quem nos quer ver saudáveis, em segurança, longevos? Como é que se resiste à chantagem de quem nos quer proteger para se sentir em segurança? Como é que se resiste ao amor invasivo dos outros?»

          Nunca mais farás a revolução.

          Naquela noite, empoleirada no escadote que trouxera da despensa com mil cuidados, enquanto se preparava para repintar de branco o tecto da sala, meditou: «Sou uma Penélope sem Ulisses, a tecer um sudário e a desmanchá-lo porque sim, só para não morrer de tédio. Sou uma Cassandra em quem todos acreditam, a quem todos dizem: “Acreditamos em ti, mas deixa-nos viver na ilusão de que, se cumprirmos à risca estes ditames, tudo voltará a ser como dantes, tudo voltará ao que era.”» Olhou para o tecto. Traçou com o pincel, junto à orla da mancha, uma linha recta, milimetricamente recta, depois outra, num ângulo agudo com a anterior. Quando desceu do escadote e o dobrou, a mancha marmoreada permanecia no tecto, mas assemelhava-se agora ao mapa de um daqueles países africanos ou do Médio Oriente cujas fronteiras, sinuosas em certos lugares, acompanhando o curso dos rios e a cumeeira das montanhas, foram, noutros pontos, traçadas a régua e esquadro, ao sabor dos paralelos e meridianos escolhidos à mesa por negociadores europeus. Abriu a porta de casa, desceu em silêncio a escada do prédio, levando na mão a paleta e o pincel, saiu à rua, pintou de branco, apagando-as, as três letras da palavra «Não» que, naquela tarde, traçara com o marcador na fronha-mensagem dos vizinhos. Deixá-los viver na ilusão de que vai ficar tudo bem. Um olhar mais atento decifraria facilmente no tecido o «Não» dela, escrito e depois apagado. Mas, quanto a isso, ela nada podia fazer.

          Deitada na cama, prestes a adormecer, ouviu ao longe, algures no prédio, ou talvez em sonhos, uma voz masculina que, acompanhada ao piano, cantava versos de Cesariny:

          Em todas as ruas te encontro

          em todas as ruas te perco.