- Todas as epifanias começam pelas crianças.
E pelos poetas.
“Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos se chama, às vezes, poesia.” (Eugénio de Andrade in Em Louvor das Crianças).
Nesta área, e hoje em dia, ultrapassada a era das trevas, enfrenta-se a criança – e nunca mais, o menor – como sujeito de direitos.
De vez.
Para valer.
Já não se deve dizer à criança: CRESCE E APARECE, devendo antes adoptar-se a seguinte fórmula vocativa: APARECE E CRESCE CONNOSCO.
Na letra das leis, nacionais e internacionais, com força suficiente para poderem ser também nacionais, a criança tem muitos direitos.
Quando os não vivencia na prática, entra em acção o sistema judiciário e não judiciário que pretende trabalhar a problemática da Criança em Risco, onde se pode incluir a mais específica das CRIANÇAS EM PERIGO.
E nessa peça de teatro, o actor principal é a CRIANÇA, um sujeito de direitos e do Direito, pleno titular de todos os direitos humanos, os fundados na dignidade da pessoa humana e ainda os específicos decorrentes do facto de ser criança em desenvolvimento que, à medida do seu crescimento físico e psíquico, vai adquirindo gradual e progressivamente autonomia, essencial à realização da sua humanidade, entendida esta como o TODO que o forma como pessoa.
2. Mas nem sempre foi assim.
Durante demasiado tempo, a criança era vista «não como os outros».
A última metade do século XX, designadamente o período posterior à II Guerra Mundial, assistiu a uma progressiva afirmação dos Direitos da Criança, conceptualizados, a partir do paradigma mais amplo dos Direitos Humanos, como direitos próprios e autónomos do cidadão criança, assumido no respeito integral pela sua especificidade.
Os princípios consagrados na Convenção dos Direitos da Criança (1989), entretanto desenvolvidos em diversos instrumentos legais internacionais, foram também decisivos, ainda que numa relação dialéctica, para a reconceptualização de todo o pensamento sobre a criança no âmbito das diversas áreas do saber, cujo desenvolvimento científico, por sua vez, se tornou essencial para a densificação dos próprios direitos da criança, quer na sua reelaboração teórica, quer na construção da sua concretização prática.
Consagrados os direitos da criança, numa acepção ontológica e ampla – reconhecendo-lhe a titularidade de todos os direitos dos adultos, acrescidos dos que lhe são próprios, decorrentes da sua condição de criança -, exige-se, agora que os mesmos sejam pensados e aplicados a partir da própria criança, considerando a manifestação da sua vontade e opinião como essenciais na tentativa de compreensão da sua singularidade.
A necessidade do contributo multidisciplinar das várias ciências que se cruzam com a criança para uma definição jurídica dos seus direitos, torna-se evidente.
Reclama-se, também aqui, que as relações familiares sejam repensadas a partir dos próprios direitos da criança, sempre que estes estejam em causa, sem prejuízo do respeito pelos direitos dos demais interessados, designadamente dos pais, na procura duma necessária concordância prática de direitos face a uma exigência de uma abordagem global e sistémica à realidade criança.
Por certa forma, os Direitos da Criança e dos Jovens invadem o espaço público, assistindo-se a uma “publicitação” das questões relativas às crianças, legitimadora de uma interferência mais efectiva na regulação das respectivas relações jurídicas, enquanto simultaneamente se verifica uma diminuição da intervenção do Estado, quanto à regulamentação das relações familiares relativas aos adultos, como o casamento, o divórcio e regime de bens.
Há como que um reconhecimento progressivo por parte do Estado da importância da Criança, enquanto “bem escasso” que se torna imprescindível preservar em nome da continuidade da sociedade do futuro.
O Direito da Família e das Crianças vai fazendo o seu caminho.
Frágil, ainda, a Cultura da Criança vai-se impondo, num movimento lento, por vezes descontínuo e incoerente, mas irreversível na procura da centralidade que lhe é devida.
O sistema de justiça das crianças e jovens não se esgota na acção do tribunal, resultando, antes de uma multiplicidade de intervenções de instituições diferenciadas, públicas e privadas, não lhe sendo indiferente, até, a dinâmica comunitária face às questões das suas crianças.
A arquitectura legal do sistema de protecção, assumindo uma perspectiva de co-responsabilidade individual, comunitária e institucional, no pressuposto do respeito pelo exercício democrático de uma verdadeira cidadania, consagra o princípio da subsidiariedade da intervenção do tribunal, reconhecendo o papel fundamental das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens, por um lado, enquanto estabelece uma tramitação processual, com amplos espaços de consensualidade, em que a participação das crianças e jovens e das famílias é decisiva, até na construção da própria deliberação, por outro; sem esquecer, igualmente, a importância dos pareceres dos técnicos e peritos intervenientes, também eles chamados formalmente, na qualidade de co-responsáveis pela execução da própria decisão, para a qual os respectivos pareceres técnicos foram, frequentemente, determinantes.
Num sistema em que confluem diversificados actores, com funções distintas e formações diversificadas, a comunicação assume um papel determinante e essencial, constituindo a linguagem um dos seus elementos determinantes. Comunicação no interior do sistema, comunicação com os sujeitos processuais, comunicação para o exterior.
Se tal é importante num sistema em que uma das fontes de legitimidade do poder judicial, se baseia na fundamentação das decisões, de cuja compreensão depende muito a possibilidade de adesão da comunidade, ela reveste-se de contornos ainda mais relevantes quando está em causa a apreciação de direitos relativos a crianças e jovens.
E, nessa medida, dizer-se que o conceito de «interesse superior da criança» é, em si mesmo, vago e aberto ou genérico não deixa de ser uma verdade que não se vê porque tenha de ser necessariamente maléfica e que possa – ou deva – ser torneada por uma definição legal que, quer queiramos quer não, acabará sempre por a limitar, na linha do expresso por Óscar Wilde (definir é limitar).
3. Ora, as crianças hoje têm voz e querem ser ouvidas.
E bem ouvidas.
Esta não audição da criança, não justificada, configura uma falta processual mas também a clara violação de regras de direito material, não devendo um tribunal limitar-se a ver esta omissão numa restrita visão processual, reconduzindo, antes, a falta a uma violação inegável da sua intrínseca validade substancial, ao dito «princípio geral com relevância substantiva, e, por isso mesmo, processual».
Como muito recentemente – em 4.11.2019 – decidiu o Tribunal da Relação do Porto (Pº 1474/17):
«Presentemente é assegurada à criança uma ampla e extensiva oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais que lhe digam respeito tendo-se deixado de falar de idades para a realização dessa audição, ficando a realização da audição judicial da criança a depender, fundamentalmente, do critério da capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade. A ponderação acerca da maturidade da criança terá de se revelar na decisão, somente estando dispensada a justificação para a sua eventual não audição quando for notório que a sua baixa idade, que se tem considerado ser o caso de crianças com idade inferior a três anos, não o permite ou aconselhe. Dito de outro modo, quando a criança não é ouvida, terá sempre de existir um despacho a refletir a necessidade ou não da sua audição, devidamente fundamentado. A sua omissão afeta a validade da decisão final do correspondente processo por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva não sendo, no entanto, adequado aplicar-lhe o regime das nulidades processuais. De facto, as razões que permitem a audição de uma criança em juízo são de ordem substantiva consectárias do superior interesse da criança, sendo que, onde determinada diligência processual colida com tal interesse, há-de prevalecer este. Assim, a não audição da criança, não justificada, configura uma falta processual mas também a clara violação de regras de direito material, não devendo um tribunal limitar-se a ver esta omissão numa restrita visão processual, reconduzindo, antes, a falta a uma violação inegável da sua intrínseca validade substancial, ao dito princípio geral com relevância substantiva, e, por isso mesmo, processual».
A criança não tem capacidade em regra para exercer os seus direitos em tribunal.
Mas, nesta sede, por gozar do direito de ser ouvido em tribunal, tem de se fazer ouvir, quando tal for considerado conveniente e tiver maturidade para o efeito.
Deixar de ouvir uma criança neste jaez é «matar» um seu direito substancial, colado à sua pele com a própria «essência das coisas».
Em metafísica, a essência (do termo latino essentia) de uma coisa é constituída pelas propriedades imutáveis da mesma, que caracterizam a sua própria natureza.
O oposto da essência são os acidentes da coisa, isto é, aquelas propriedades mutáveis da coisa.
Ouvir uma criança em tribunal não é um acidente de percurso – é um direito inalienável de toda a criança, para o exercício do qual, nesta sede, não tem de ser representado por terceira pessoa.
Isso faz parte da essência dos seus direitos.
A Magna Carta da Infância no mundo assim o dita – o princípio do respeito pelas opiniões da criança, reconhecido pelo artigo 12.º da Convenção dos Direitos da Criança, reconduz-se ao direito de que a criança é titular de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que a ela respeitem e de que as suas opiniões devem ser devidamente tomadas em consideração, de acordo com a sua idade e maturidade (cada vez mais maturidade, direi eu) – para tanto, «deve ser assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem».
Atento este princípio, fácil é de concluir que o regime das nulidades processuais não é, de facto, o mais adequado à catalogação do vício da falta de audição de uma criança em sede judiciária.
Na realidade, se é verdade que a criança não tem, em regra, capacidade de exercer sozinha os seus legais direitos, também o é que haverá certos direitos ligados à substância e ao «ser» da criança que só podem gozados por ela própria, de viva voz, sem interferência de terceiros.
E aí basta-lhe a sua capacidade regra de gozo de direitos.
E bastará ao tribunal afirmar essa essência e substância para declarar que a omissão da audição de uma criança com maturidade para o efeito, quando conveniente, afecta a subsistência da decisão que não a admitiu, não por força da constatação de uma nulidade processual civil de natureza secundária, mas por aplicação directa do princípio básico (de essência) da existência de uma criança – ter direito a ser ouvida por quem vai decidir relevantes aspectos da sua vida.
Ou seja:
A visão regra da criança como sujeito do processo e de direitos, incapaz do exercício dos mesmos, só excepcionalmente capaz para a prática de certos actos (v.g. artigos 123º e 127º CC), tenderá a ser substituída por entendimento diverso, em sede tutelar cível e de promoção e protecção.
É verdade que a criança, por ser menor de idade, goza de uma capacidade regra de gozo de direitos mas de uma concomitante incapacidade regra de exercício desses direitos – contudo, nesta sede, até por inerência do próprio direito comunitário, à criança com discernimento e maturidade deve ser reconhecido o direito de exprimir em juízo as suas opiniões e defender os seus interesses de forma veemente e efectiva – ou seja, de gozar de um direito sem que seja representado por terceiro (aqui não exerce um direito mas goza-o, afinal de contas!).
Como diz tão expressivamente Salazar Casanova, «a ficção jurídica segundo a qual num momento, o do décimo oitavo aniversário, termina o incapaz de ontem e nasce o homem adulto de amanhã é desmentida pela simples observação das coisas da vida».
4. É por esta criança que os meus sinos hoje dobram.
Numa obra de Ernest Hemingway, está escrito o seguinte:
“Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti».
Durante esta pandemia, os meus sinos dobram pelas famílias vulneráveis e pelas crianças que residem no seu seio.
Como tão bem escreveu uma minha amiga, médica de profissão, e amante das palavras, Helena Oliveira, «nesta fase de tão estranhos tempos e mudança de costumes, em que tanto nos temos esforçado por “emparedar” as famílias, não há dia em que não me pergunte onde estão agora os anjos (escola, saúde, outras instituições de proximidade, CPCJ, tribunais…) que com os seus vários olhares iam garantindo que as “nossas” crianças em risco e em perigo não corriam reais perigos».
E, como ela, sinto-me tão impotente contra esta ameaça «possivelmente em muitos casos bem mais letal que o matreiro corona» que tanto alarido está a causar por esse planeta fora.
Quem me dera não ter razão para este medo!
Mas tenho e temo que, afinal, esta noite, não possam os deuses, os anjos, conseguir continuar a passar os olhos pelos telhados de todas as crianças em perigo.
Mas sei que o sistema de promoção e protecção, o que foi sonhado por Armando Leandro, não está a dormir – as entidades de 1ª linha, as CPCJ e os tribunais.
Sei que a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens está activa e vigilante – como o tentam estar as suas dilectas e esforçadas filhas pelo país – e que a sociedade civil tem também criado projectos nacionais de sinalização de crianças em perigo nestes tempos de emergência e calamidade (destaco a interessante plataforma #AjudAjudar).
Sabemos também que estão diminuídas as equipas dos centros de acolhimento e lares de infância e juventude. Sem visitas nem saídas, aumenta o risco de abuso dentro das instituições e está limitado o controlo que nelas se exerce.
Ouvimos contar casos de IPSS que mandaram crianças para casa, algo inaceitável face ao Estado de Direito em que vivemos, em que quem decide projectos de vida de crianças em perigo são as Comissões e os Tribunais.
Sei também de notícias de adolescentes que encetaram fugas residenciais.
Sei de jovens que, atingindo os 18 anos, dizem querer sair do acolhimento residencial saturados do confinamento pandémico.
E a lei manda que saiam.
Contudo, aí, a par com o visionário João Pedro Gaspar da Plataforma de Apoio a Jovens Ex-Acolhidos (PAJE), serei capaz de sonhar em ver tribunais a tomar atípicas medidas – no pressuposto de que nas épocas de grande crise interior não se devem tomar grandes decisões de fundo, e numa altura em que são criadas medidas extraordinárias em praticamente todos os sectores da sociedade, no sentido de responder às necessidades sentidas pelos cidadãos, porque não permitir, também neste campo e nesta sede, a possibilidade de se estabelecer uma moratória no processo de promoção e protecção dos jovens, excepcional e, pelo menos, enquanto perdurasse o período de pandemia provocada pelo COVID-19, abrindo assim a hipótese de reversão da situação, garantindo o apoio e intervenção ainda residencial, caso eles tomem, no entretanto, e após a maioridade, consciência de que a sua decisão foi precipitada?
São tudo preocupações que nos devem levar sempre à letra do artigo 66º da nossa Lei de Protecção de Crianças e Jovens, aplicável a todos os cidadãos ou residentes em Portugal, a todos NÓS, pois então – qualquer pessoa que tenha conhecimento de situações de perigo para uma criança pode comunicá-las às entidades com competência em matéria de infância ou juventude, às entidades policiais, às comissões de protecção ou às autoridades judiciárias.
E essa comunicação é obrigatória para qualquer pessoa que tenha conhecimento de situações que ponham em risco a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade da criança ou do jovem.
Devemos, assim, estar todos atentos e não hesitemos no exercício efectivo da obrigação legal e civilizacional – fruto de uma cidadania activa – de denunciar alguma situação na qual, mesmo com base em mero fumo, se indicie haver violação dos direitos de qualquer Criança.
Haja, contudo, mais meios para vigiarmos os sonos das crianças.
E podermos voltar para casa descansados.
5. E já agora, deixem-me deixar um recado aos progenitores deste país.
O dever-obrigação de contenção e confinamento de uma criança em tempo de oficializada pandemia, como forma suprema de salvaguardar o seu melhor interesse, que é de estar viva e crescer com saúde, prevalece sobre qualquer cláusula de regulação do exercício das responsabilidades parentais, seja em que regime for.
Estude-se a questão concreta do regime da situação de cada criança e de cada progenitor.
Se houver um risco que seja, a criança não deve sair do sítio físico onde está.
Há muitas formas de partilhar essas responsabilidades sem ser só pela presença física.
É óbvio que me preocupam os possíveis abusos por parte dos «guardiões – resident parents» que usam de todos os pretextos para não deixar que se cumpram as cláusulas do acordo ou da decisão sobre o exercício das RP.
Mas confio que os nossos tribunais – os únicos que podem e devem monitorizar o exercício das responsabilidades parentais relativamente a uma criança – vão estar atentos a esses abusos/simples receios generalizados e não fundamentados de um dos progenitores.
Os Tribunais e as CPCJ não podem ser – e não são – um edifício de criação de moldes, devendo antes ser um ateliê de costura à medida do corpo de cada criança, como me ensinou alguém no CEJ há muitos anos.
6. São tempos turvos estes, em que se querem as máscaras de pano por toda a face, em que se afogam todos os tactos em soluções de álcool, em que descansam os apertos das mãos que já não se dão.
Todas as madrugadas são anunciadas por números negros e o entardecer já não pertence aos amantes.
Chegou a peste aos solavancos, nesta paleta de vendavais em que se sente o toque das medusas, das andrómedas e dos morcegos.
Já não se cantam as avé-marias porque as bocas estão presas por outras luvas e porque os mortos são levados à terra sem hinos ou elegias.
Dizem que a final tudo ficar bem – que as andorinhas vão regressar de locais inauditos onde aprenderam a canção das primaveras, um nome mais próprio para os próximos verões malditos.
Contudo, já não sei da minha rua, já só sei da janela do meu quarto onde os dias fogem às noites e as noites se molham de dia.
Ufano, como se cumprisse uma promessa, uma espécie de adeus, levanto o alçapão do meu medo e grito bem alto, para lá das quarentenas:
«- A falta que me fazem os meus!»
São estes tempos que nos desafiam à transcendência, ao bom senso e à criatividade.
As crianças deste país agradecem e reclamam essa atenção, mesmo que não votem.
Como o lema, em 2019, da Campanha Nacional para Prevenção dos Maus Tratos na Infância, gizado pelas CPCJ, «serei o que me quiseres dar… e que seja AMOR!».
Porque, afinal, «plantamos AMOR no coração; pois é lá que fica a AORTA!».
Ali, tão perto de cada um de nós, o espectáculo nunca cessa, mesmo quando as máscaras se recusam a cair e os palhaços nunca se calam, mesmo que as crianças gritem de susto.
Sei que a cantiga do bandido ecoa pela noite dentro, mesmo que as fadas cintilem e nos deixem voar.
A mortalha dos desafortunados martiriza-nos, mesmo que os verões sejam mais invernos mal-amados.
Não temos por aí bolas de cristal.
Nem figurinos e lantejoulas.
Só momos e violinos atrapalhados, baleias azuis e rumores de pouca sorte.
Mas, acreditem, ainda se ouvem os tambores.
E o afago daquele «trabalhador da infância» que deixa a sua casa para ir cuidar dos filhos dos outros.
Ainda se ouve, por aqui, o choro do João e da Mariana.
Para nunca mais nos calar e porque,
afinal, como Maria do Rosário Pedreira tão bem reza, «hoje os deuses ainda passam os olhos pelas suas casas
todas as noites, antes de adormecerem».