Pedro Pinheiro Torres

Advogado especialista em Direito Processual Civil.

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O Regime de citações e notificações criado pela

Lei nº 10/2020 de 18 de Abril

Através da aprovação da Lei nº 10/2020 publicada em 18 de Abril, e em boa hora objeto de Declaração de Retificação nº 17/2020, publicada no Diário da República em 22 de Abril, o Parlamento português terá procurado dar (mais uma) resposta à situação criada pela Pandemia de doença COVID 19, estabelecendo o que, ele próprio (Parlamento) define como um regime excecional e temporário quanto às formalidades de citação e de notificação postal, no âmbito da pandemia.

          Consiste, essa resposta, na suspensão da recolha de assinatura na entrega do correio registado e encomendas até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS – COV2 e da doença COVID-19 como enuncia o nº 1 do artigo 2º.

          Por esta disposição ficamos a saber que este novo regime vigorará enquanto se mantiver a declaração de situação excecional de pandemia, presumindo-se (embora a Lei não o diga expressamente) que esta cessação ocorrerá nos termos previstos no nº 2 do artigo 7º da Lei nº 1-A/2020, de 13 de Março, do qual resulta que este regime excecional cessará em data a definir por Decreto-Lei, que declarará o termo da situação excecional.

          A ser certa esta presunção – passe a “presunção” de quem a tem – colocar-se-á, desde logo, uma primeira questão, relativa ao interesse (ou falta dele) no que diz respeito à generalidade dos processos judiciais, cujos prazos, incluindo naturalmente o prazo de contestação, se encontram suspensos.

          Excetuam-se, como resulta da mesma Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, agora na redação dada pela Lei nº 4-A/2020, de 6 de Abril, os processos urgentes, cujos prazos não estão em princípio, suspensos.

          Parece, assim, numa primeira abordagem, de reduzido interesse em termos de impacto relevante na generalidade dos processos (não urgentes) pois estes manterão os prazos suspensos, o que significará que, apesar de aligeirada a formalidade da citação e da notificação (particularmente da primeira), da sua realização não resultará a contagem imediata de qualquer prazo que só começará a correr após a declaração da cessação da situação excecional.

          É o que resulta do regime geral da suspensão do prazo estabelecido no nº 1 do artigo 7º da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, na redação dada pela Lei nº 4-A/2020, de 6 de Abril.

Será, assim, de imediato, reduzido o impacto desta disposição na tramitação da generalidade dos processos, o que não pode deixar de constituir causa de perplexidade quanto ao real interesse da aprovação desta norma com duração, previsível e desejavelmente, tão limitada no tempo.

Admite-se, no entanto, que o legislador, tenha sentido a necessidade de evitar a persistência de uma situação generalizada de incumprimento das formalidades da citação e notificação previstas na generalidade dos processos e procedimentos e particularmente, no que nos importa, no Código do Processo Civil, uma vez que por elementares razões de saúde pública, aos funcionários dos CTT, encarregados de observar o cumprimento daquelas formalidades, se revela impossível (o termo é excessivo, mas o excesso visa valorizar os constrangimentos a esse cumprimento) de assegurar.

De facto, num tempo em que se aconselha a mantermo-nos afastados uns dos outros, incluídos neste afastamento os funcionários dos CTT e aqueles que recebem a correspondência dirigida à morada em que se encontram (sejam, ou não, os destinatários da correspondência ou mesmo residam, ou não, habitualmente, nessa morada) não se afigura possível observar as disposições legais que determinam, no caso da citação por carta registada com aviso de receção, a recolha de assinatura de quem recebe o expediente e, no caso de notificação por carta registada, a recolha, pelo funcionário dos CTT, dos elementos de identificação desse recetor.

Impossível – porque, verdadeiramente, proibido, nos primeiros casos – nos tempos que correm …

Com este constrangimento estaríamos a assistir a uma série de atos nulos, com consequências variáveis nos processos em que fossem praticados, traduzindo-se na invocação de nulidade do ato, por vício de forma, ou, o que seria bem mais grave, de atropelo dos direitos de “citado” ou “notificado” não os exercendo atenta a muito provável falta de conhecimento desses atos pelo próprio.

Recorde-se que, no campo das citações, estamos a falar das citações de pessoas singulares por carta registada com aviso de receção, previstas e reguladas no artigo 228º do CPC., cuja data e valor são fixados no artigo 230º do mesmo Código, embora se deva admitir que as citações de pessoas coletivas, cujos termos são especialmente regulados no artigo 246º do mesmo Código  se incluam, com as particularidades próprias do regime legal estabelecido no CPC, no âmbito da aplicação da Lei nº 10/2020, de 18 de Abril.

Convém recordar o que prescrevem, afinal estes preceitos: o nº 1 do artigo 228º estabelece que “a citação de pessoa singular por via postal faz-se por meio de carta registada com aviso de receção, de modelo oficialmente aprovado, dirigida ao citando e endereçada para a sua residência ou local de trabalho, incluindo todos os elementos a que se refere o artigo anterior e ainda a advertência, dirigida ao terceiro que a receba, de que a não entrega ao citando, logo que possível, o faz incorrer em responsabilidade, em termos equiparados aos da litigância de má fé”.

Este procedimento formal é reforçado pelos nºs 2 e 3 daquele artigo dos quais resulta que “a carta pode ser entregue, após assinatura do aviso de receção, ao citando ou a qualquer pessoa que se encontre na sua residência ou local de trabalho e que declare encontrar-se em condições de a entregar prontamente ao citando”, sendo prescrito ao funcionário dos CTT que “antes da assinatura do aviso de receção, proceda à identificação do citando ou do terceiro a quem a carta seja entregue, anotando os elementos constantes do cartão do cidadão, bilhete de identidade ou de outro documento oficial que permita a identificação.” 

Para que não haja dúvidas quanto à importância do ato de citação prevê o nº 4 do mesmo artigo que “quando a carta seja entregue a terceiro, cabe ao distribuidor do serviço postal adverti-lo expressamente do dever de pronta entrega ao citando”.

A esta formalidade, considerando, ainda a importância do ato, fez o CPC (concretamente o artigo 233º), acrescer o envio da carta registada ao “citado”, quando a citação se mostre efetuada em pessoa diversa do mesmo, a expedir pela Secretaria Judicial (ou pelo Agente de Execução encarregado da citação) no prazo de 2 dias úteis, comunicando-lhe a data e o modo por que o ato de citação se considera realizado, o prazo para oferecimento da defesa e as cominações aplicáveis à falta desta, o destino dado ao duplicado e a identidade da pessoa em que a citação foi realizada,

E todas essas condições se devem considerar inteiramente justificadas atenta a relevância do ato de citação, do qual decorre o direito/obrigação de o citado apresentar o seu articulado que será, em regra, a sua defesa à pretensão deduzida pelo autor (considerando que, na generalidade, o ato da citação diz respeito ao réu da ação).

Não nos podemos esquecer que, nos termos do nº 1 do artigo 230º do CPC  “a citação postal efetuada ao abrigo do artigo 228.º considera-se feita no dia em que se mostre assinado o aviso de receção e tem-se por efetuada na própria pessoa do citando, mesmo quando o aviso de receção haja sido assinado por terceiro, presumindo-se, salvo demonstração em contrário, que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário”.

Perante a consideração como citação pessoal feita no próprio dia em que é assinado o AR, ainda que por terceira pessoa, o legislador entendeu dever conceder ao “citado” um prazo de dilação de 5 dias que acrescerá ao prazo de defesa, nos termos do nº 1, alínea a) do artigo 245º do CPC.

 Sendo esta a formalidade essencial prevista no CPC para a realização da citação em situação de normalidade, que solução alternativa encontrou o legislador através da Lei nº 10/2020, de 18 de Abril?

Desde logo, no que diz respeito à recolha de assinatura de quem recebe a correspondência (suspensa nos termos do nº 1 do artigo 2º daquela Lei) a sua substituição pela identificação verbal e recolha de número do cartão de cidadão, ou de qualquer outro meio idóneo de identificação, mediante a respetiva apresentação e aposição de data em que a recolha foi efetuada, como decorre do nº 2 daquele artigo 2º.

Ou seja, reconhecendo a inconveniência da recolha da assinatura no aviso de receção, em tempo de pandemia, o legislador sugere que seja exibido ao funcionário responsável pela entrega da carta, o cartão de cidadão da pessoa que recebe a correspondência, para que o mesmo recolha os elementos de identificação dessa pessoa.

Algo estranho, se pensarmos no dever de afastamento que obrigará, em regra, o funcionário dos CTT a estar munido de lupa para ver os elementos de identificação pela apresentação do cartão de cidadão a cerca de um metro de si (admitindo um braço esticado do recetor da carta…).

Terá, o legislador, consciência da situação em que decorrerá a maioria destes atos, com o funcionário dos CTT a querer (legitimamente, diga-se) manter a distância e a pessoa que receber a correspondência, igualmente, “manter-se à distância”, não raras vezes sem que a pessoa que recebe tenha consigo o exigido documento de identificação. E quando assim for, o que prevê o legislador? Considerar-se-á frustrada a citação? Espantosamente, não!

Do nº 2 do artigo 2º da Lei nº 10/2020, de 18 de Abril, resulta que em caso de recusa de apresentação e fornecimento dos dados referidos no número 2, o distribuidor do serviço postal lavra nota do incidente na carta ou aviso de receção e devolve-o à entidade remetente.

É o que resulta do nº 3 que suscita nova perplexidade; afinal, o que propõe o legislador que seja devolvido à entidade remetente? A carta em que anotou o incidente, o aviso de receção, ou ambos? E se assim for, como saberá o destinatário do expediente, afinal, o que pretendia o funcionário dos CTT?

Espera-se que, pelo menos no que às citações respeita, o funcionário deixe ficar a carta e devolva apenas o AR … pelo menos, não se terá perdido tudo!

E nessa hipótese de recusa (ou incapacidade dir-se-á) de fornecimento dos dados pretendidos, o que sucede?  

Responde a esta questão, o nº 4 do mesmo artigo 2º (já na redação dada pela Declaração de Retificação referida) que qualquer que seja o processo ou procedimento, o ato de certificação daquela ocorrência vale como citação ou notificação, consoante os casos.

O que significa que, nas condições descritas (que serão, muito provavelmente, as mais frequentes) se considera efetuada a citação pessoal do destinatário do expediente, com todas as consequências resultantes desse ato da citação, sem que o legislador tenha, sequer, esclarecido se esta citação se “presume” feita na pessoa do próprio, ou na de terceira pessoa, não tendo estabelecido qualquer procedimento semelhante ao previsto nos artigos 228º e 233º do CPC, que sempre constituiria considerável acréscimo de garantias para o citado.

Frágil solução em termos de proteção dos diretos do citado, quase a fazer lembrar a famosa “citação por aviso postal simples” que, introduzida no CPC, rapidamente viria a ser “retirada” na sequência da sua consideração como não conforme à Constituição por, precisamente, não garantir o direito de defesa do citado naquelas condições.

Deste vício – de inconstitucionalidade – poderá padecer esta nova previsão que, no entanto, e até que tal seja declarado, se manterá como forma legal – e, assim, válida – de citação, evitando a arguição de nulidade que a prática da citação em tempos de pandemia seguramente suscitaria.

Terá qualquer citação efetuada num processo judicial não urgente neste período de declaração de suspensão dos prazos, de conter a menção de que os prazos de defesa se encontram suspensos, só iniciando a sua contagem na data em que, por Decreto-Lei, for definido a cessação da situação de pandemia.

Só assim se garantirá que se presta ao citado toda a informação relevante para a sua defesa, como prevê o nº 2 do artigo 227º do CPC.

Resulta, ainda, do nº 5 daquele artigo 2º que (naturalmente e por maioria de razão, dir-se-á) quando o distribuidor postal lograr obter os dados de informação exigidos, a notificação ou citação se considera efetuada na data em que tais elementos de identificação forem recolhidos.

Ora, nesta última hipótese, teremos a informação de quem efetivamente terá recebido a carta e, no caso de se tratar de terceira pessoa, não se vislumbra qualquer razão para que a Secretaria Judicial ou o Agente de Execução incumbido da citação, não observem os procedimentos previstos nos artigos 228º e 233º do CPC – desse modo  protegendo o réu de qualquer insucesso na entrega  pelo recetor da correspondência do expediente recebido – e, em coerência com essa informação, também considere aplicável o prazo de dilação de 5 dias previsto no artigo 245º, nº 1, alínea a) para as citações efetuadas em terceira pessoa.

Embora a Lei não o preveja, não faz qualquer sentido que assim não seja, pois, afinal, o que a Lei nº 10/2020 pretendeu (de forma algo atabalhoada, deve reconhecer-se) foi criar um procedimento legal substitutivo da recolha da assinatura do AR sem, aparentemente, pretender beliscar os restantes procedimentos formais previstos no CPC.

E esta solução será, nos termos do nº 6 do artigo 2º (sob apreciação), aplicável às citações e notificações que sejam realizadas por contacto pessoal.

Mas o que dizer relativamente ao AR que é devolvido sem recolha de elementos de informação quanto à identificação de quem recebe a correspondência para a qual não é prevista, nesta Lei, qualquer solução?

Apesar de a Lei não o dizer, considero que não poderá, a Secretaria Judicial ou o Agente de Execução encarregado da citação, deixar de a considerar efetuada em terceira pessoa, dando, assim, cumprimento ao procedimento previsto no nº 1 do artigo 333º do CPC, acima descrito, desse modo “avisando” o citado da ocorrência da sua citação.

Só desta forma se poderá mitigar a contração imposta ao direito do citado com o recurso a esta formalidade e, afinal, conferir ao ato um tratamento nesta parte, correspondente à dignidade do ato de citação.

Convém não esquecer que estamos a falar de um ato relevantíssimo do processo que, deste modo, apesar de demasiado agilizado na forma e potencialmente lesivo dos direitos de defesa do citado, se torna isento de vícios de ilegalidade ou de consequente nulidade, se invocada nos termos do nº 1 do artigo 195º do CPC.

Sanado, deste modo, o vício de forma que poderia levar à invocação da nulidade da citação, quer no processo, se tempestivamente arguido, quer em recurso de revisão nos termos da alínea e), i) do artigo 696º do CPC, restará ao citado nestas condições que, como infelizmente se admite possa suceder, não teve conhecimento da citação por facto que não lhe é imputável, lançar mão do fundamento agora previsto na alínea e), ii)  do mesmo preceito, introduzido no CPC pela Lei  nº 117/2019, de 13 de Setembro, como fundamento de recurso de revisão não dependendo, assim, da validade formal do ato de citação, como constituindo requisito para um recurso de revisão na redação daquele artigo anterior à entrada em vigor daquela Lei, em 1 de Janeiro de 2020.

Pena é que, por manifesta precipitação, o legislador, norteado por razões que nem sempre se conseguirá reconhecer, possa ter criado uma situação de verdadeira imergência de um direito fundamental no processo – o direito à citação em condições que garantam o pleno exercício dos direitos do citado.