José Rijo

Licenciado em Direito (UCP); DEA em Direito Tributário Europeu (Universidade de Santiago de Compostela); advogado; membro fundador da Greenlane (The Alliance of European Customs and Trade Law Firms); árbitro do Instituto de Arbitragem Comercial da Associação Comercial do Porto; docente na Porto Business School e Universidade Católica Portuguesa.

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Nunca, em mais de seis décadas de existência, o projeto europeu de integração esteve tanto em causa como nos tempos em que vivemos …

Muito se tem escrito e comentado sobre as consequências económicas, sociais e políticas da pandemia Covid-19 no continente europeu. Mostrando-se ainda prematuro, ao dia de hoje, a quantificação de tais efeitos parece, todavia, existirem já elementos suficientes para se concluir, sem mais delongas, que o mundo em geral e a Europa em particular se encontram perante um gigantesco desafio. A crise que agora se começa a instalar afigura-se global, atingindo múltiplas e variadas geografias, não tendo paralelo com as mais recentes crises financeiras ocorridas já neste século. Não será por isso exagerado, no que toca ao Velho Continente, a comparação do previsível estado da economia europeia na ressaca do Covid-19 com o cenário de caos económico e social resultantes da Segunda Guerra Mundial. Reconstruir a Europa foi, então, o desígnio dos povos europeus. Tal como à época, também agora se devem reclamar e convocar soluções excecionais. Com efeito, as similitudes entre estes dois momentos catastróficos da história europeia são por de mais evidentes, pelo que só em conjugação solidária de esforços se poderá projetar tal reconstrução.

No que à união Europeia diz respeito, atrevo-me mesmo a considerar que estaremos em presença de uma refundação do seu projeto de integração. Se há 75 anos atrás, o esforço do conflito armado  de vários anos havia destruído o aparelho produtivo (que esteve basicamente ao serviço da indústria da guerra), constatamos agora, em termos muito claros e incisivos, a quase falência da indústria europeia, a qual, perante este hercúleo desafio, se vê mais do que nunca na dependência do fornecimento externo, em especial da importação da R P China. Foi chocante verificar, por exemplo, que a União Europeia apenas produz 10% dos equipamentos de proteção individual de que necessita para fazer face à pandemia em curso. É certo que nenhum Estado estaria preparado para lidar com um vírus com esta brutal capacidade de contágio, mas uma tão frouxa aposta no fabrico daqueles artefactos reveste um bom exemplo de uma perigosa lacuna da política industrial da União num setor tão vital como é o da saúde pública, suscetível até, em limite, de pôr em causa a segurança da União. Esta necessidade é tão mais premente quanto não será expectável qualquer tipo de ajuda externa na linha e com a dimensão do famoso European Recovery Program, imortalizado como Plano Marshall, no âmbito do qual os Estados Unidos ajudaram decisivamente a reconstrução dos territórios europeus mais fustigados pela Segunda Guerra.

Desde há muito que vimos testemunhando a encruzilhada em que se encontra o processo europeu de integração. Concretizada a união aduaneira em 1968, alcançado o mercado interno em 1993 e atingida união económica e monetária em 2002, desde então para cá que assistimos a um generalizado euroceticismo em larga medida motivado pelo crescente distanciamento dos cidadãos europeus em relação às Instituições da União. Por outro lado, esse descrédito é agravado pelos sucessivos exemplos, ocorridos nestes últimos anos, que demonstram à saciedade os interesses próprios dos Estados-membros em detrimento de tomadas de posição consensualizadas no seio daquelas mesmas Instituições. Vejam-se, entre outros, o que se passou na invasão norte-americana do Iraque (apoiada pelo Reino Unido e pela Espanha com oposição da Alemanha e da França), nas crises das dívidas soberanas, no trágico advento das perturbações migratórias causados pelos refugiados oriundos do norte de África e agora em razão do surto pandémico do Covid-19.

Deixando de lado, no âmbito desta curta reflexão (mas não lhe retirando importância), as questões conexionadas com a complexa e errática política externa e de defesa da União, importa novamente recentrar o debate europeu naquilo que dominou a atenção dos pais fundadores das Comunidades Europeias, nos idos anos de 50 do século passado. Com efeito, vencedoras que foram as teses favoráveis à integração (por oposição à doutrina alavancada em relações de mera cooperação), discutiu-se à época o modelo a seguir em vista da projetada união aduaneira. O rumo seguido foi o de se avançar no que ficou conhecido por lógica funcionalista da integração (entusiasticamente patrocinada por Jean Monet), em contraponto ao modelo federal defendido por alguns setores políticos. O objetivo traçado baseava-se em sucessivas integrações parcelares de algumas fileiras económicas meticulosamente escolhidas. A preferência inicial, como sabemos, recaiu sobre o setor do carvão e do aço, segmento caro à indústria da guerra, e por isso suscetível de pacificação da tensa relação franco-germânica que emergia do final da Segunda Guerra. A submissão dos então seis Estados-membros fundadores das Comunidades Europeias a um ordenamento jurídico comum e supranacional, que regulava a produção, comercialização e distribuição daquelas relevantes matérias-primas, concorria para a consolidação da paz no Velho Continente, afinal o principal desígnio do movimento integracionista que então se fazia sentir. Idêntica estratégia, com assinalável sucesso, foi ulteriormente prosseguida no que concerne às demais mercadorias, assim se consagrando definitivamente a união aduaneira.

Ora, volvidos mais de sessenta anos, o que hoje se reclama às Instituições da União é justamente uma redefinição das políticas industriais e comerciais das diversas fileiras económicas. São múltiplos e complexos os problemas que hoje se colocam à União Europeia: a degradação do sistema multilateral alavancado nos Acordos do GATT/OMC, o advento da globalização e consequente deslocalização das unidades de produção para países em vias de desenvolvimento (com especial relevo para o sudeste asiático), as ameaças do terrorismo e dos tráficos ilícitos, o reforço da proteção do ambiente, do património nacional de valor artístico, histórico ou arqueológico e a proteção da propriedade industrial, comercial e intelectual, a crise dos refugiados e consequente restabelecimento dos controlos fronteiriços no espaço de Schengen, as tendências populistas e nacionalistas de alguns governos europeus, as consequências do Brexit, a ameaça da fronteira externa da União Europeia em razão da anexação da Crimeia por parte da Rússia e a crescente desconfiança da atual Administração norte-americana nas instituições internacionais em cuja criação os EUA tiveram um papel relevante (ONU, OMC, OMS, etc.). Somente uma União Europeia forte e coesa estará certamente à altura de lidar com estes gigantescos desafios. Não bastam os inflamados apelos de alguns dirigentes europeus como, por exemplo, Jean Claude Juncker (“Only a strong and United Europe can protect our citizens against threats internal and external”), Donald Tusk (“Trump made us realise that if you need a helping hand, you will find one at the end of your arm”) e Emmanuel Macron (“We need a stronger Europe that protects”). Urgem ações concretas com vista à adoção de políticas económicas e comerciais concertadas que extraiam o melhor que cada Estado-membro tem para oferecer.

Por outro lado, há que lançar mão dos mecanismos de defesa comercial previstos no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, que se destinam a combater as práticas concorrências desleais (como as medidas antidumping e anti subsídio), mas também o efeitos negativos gerados pela desequilíbrio de setores industriais específicos (atente-se o caso específico da indústria ligadas ao aço), através de adequadas medidas de salvaguarda. Não se trata, aqui e agora, de fazer a apologia do protecionismo comercial. Importa, isso sim, é refletir corajosa e profundamente sobre a evolução do comércio internacional nos últimos vinte e cinco anos, isto é, desde que em 1 de janeiro de 1995 entrou em vigor o Acordo de Marraquexe que consagrou a Organização Mundial do Comércio. Não se pretende igualmente discutir os inegáveis méritos da globalização, nomeadamente aquele que permitiu abrir caminho para que muitas centenas de milhões de pessoas conseguissem sair da mais extrema pobreza. Contudo, cabe às Instituições da União avaliar o impacto decorrente da deslocalização para outras geografias de muitos milhares de unidades produtivas anteriormente estabelecidas no seu território. Uma União Europeia à mercê da produção de bens e serviços importados será uma União Europeia condenada a prazo. Aquele que foi o continente baluarte do conhecimento, da civilização e dos direitos sociais, agora também a braços com um gravíssimo problema demográfico resultante do envelhecimento das suas populações, arrisca-se a perder terreno irrecuperável para os seus principais concorrentes (Estados Unidos e Ásia). Há, por isso, que inverter o rumo destes últimos anos, apostando em opções produtivas ambientalmente sustentáveis e com forte pendor tecnológico. São, assim, de apoiar os slogans de campanha da nova Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, designadamente quando se refere ao “European Green Deal”, “A Europe fit for the digital age” e “An economy that works for people”. O futuro começou ontem. Não há tempo a perder!