João Correia

Advogado

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A percepção que tenho desta súbita ruptura é a de um desmoronamento, de um abalo telúrico que nos atinge nos pilares social, económico, laboral, mesmo político. 

Muito de nós, está soçobrando, parecendo que não ficará pedra sobre pedra.

Toda a nossa vida, a nossa organização social, familiar, laboral, os nossos hábitos, as rotinas, as relações de toda a natureza, os próprios ritmos, em suma, tudo, num ápice, ruiu.

Adivinha-se e deseja-se a retoma, só que a nossa sensibilidade colectiva diz-nos que nada, ou quase nada, permanecerá como até 29 de Fevereiro de 2020.

Não é possível desenhar o futuro, não sabemos como será o day-after.

Apreendemos, no entanto, que muito do essencial vai sofrer metamorfoses, mais ou menos profundas.

Comecemos pelo mundo do trabalho e do emprego, pelo relevo poliédrico que estas relações assumem em termos históricos e políticos.

Neste mundo, atenta a sua dimensão determinante, justifica-se uma primeira reflexão.

De imediato, a quase paralisação da produção, o teletrabalho, assumido como regra nos serviços (a famigerada terceirização da economia), as novas relações entre o produtor, o consumidor e os intermediários, são as marcas evidentes de uma possível e diferente forma de produzir, de comercializar e de consumir, pois será antevisível a aproximação do produtor face ao consumidor.

Na realidade, o mercado por grosso, a oferta em massa, poderá passar a conviver com uma escolha do consumidor, que encomendará o que quer, quando quer e, acima de tudo, a quem e onde quer.

Dito de outra forma: o relevo da distribuição “porta a porta” (mesmo electronicamente falando) poderá significar uma predominância da relação directa, atomística, entre o mercado e o consumidor.

Perante essa provável realidade, ela arrastará uma relação subjectivada do consumidor com o produtor, e mesmo as grandes superfícies comerciais receberão o impacto nessa proximidade.

E o que tem tudo isto que ver com as relações de trabalho?

Tem tudo a ver.

O predomínio das tecnologias digitais, dum lado, e a titularidade (propriedade e conhecimento) individual dos meios de comunicação, de laboração e de rentabilização dos conhecimentos, provocarão o surgimento de uma oferta altamente qualificada, ou progressivamente mais apetrechada, arrastando consigo uma diferente concepção de empresa, de empresário e, naturalmente, de trabalhador.

De facto, como alguém já escreveu, não predominará, em muitos sectores de actividade, a relação de emprego, com todas as suas características e ingredientes sociais e jurídicos actuais.

Poderá, na verdade, surgir uma outra hierarquia de valores laborais, onde relevará o currículo de cada um, as suas potencialidades, a sua diversidade e, se tal ocorrer, o relevo jurídico do trabalho sobressairá face aos ingredientes jurídicos do emprego.

Daqui não decorrerá uma maior flexibilidade laboral (quiçá o inverso, tanto mais que potenciaria uma conjugação de saberes, em moldes e com uma natureza cooperativa). 

Mas, se assim for, não sendo certo que o será, a concepção de empresa e de empresário sofrerão um impacto e uma metamorfose igualmente radicais.

Afigura-se que o empregador reunirá saberes, mais que capital, e os trabalhadores “venderão” tecnologia e conhecimentos, mais que o resultado da laboração.

A subordinação jurídica, a matriz da relação laboral, recairá mais sobre a ciência de cada um e a relação contratual, não abandonando os ingredientes subjectivos e os direitos de personalidade, assumirá uma vocação objectiva, pois relevará jurídicamente o saber, o conhecimento, o currículo que um trabalhador terá de enriquecer através do trabalho e do percurso profissional.

Em suma: como disse José Régio, todos sabemos que não sabemos para onde vamos, mas sabemos que não vamos no mesmo caminho que percorremos até ao presente. 

Os ingredientes legais, agora formalizados em Códigos de Trabalho, perderão eficácia perante a relação colectiva e individual de trabalho, como parece ser evidente, e a conflitualidade entre empregadores e trabalhadores terá outra natureza e um diferente epicentro.

As organizações sindicais e patronais assumirão, em parte, diferente natureza, tanto mais que o universo jurídico que envolve uns e outros sofrerá radical metamorfose.

Como concretizar o que acima se escreveu?

Comecemos pela subordinação jurídica e pela sua estrutura interna, pelos poderes do empregador, desde o poder de direcção ao poder de modelar a prestação do trabalhador, passando pelo poder disciplinar e, como elemento chave, o poder de destruir a própria relação de trabalho. 

Por sua vez, do lado do trabalhador, o arquétipo da categoria profissional, a quase tipicidade do conteúdo funcional, tudo conexionado com a obrigação de alcançar um resultado como produto da sua actividade. Atingimos, em tese, um universo, aqui desenhado em traços muito amplos, universo social e jurídico que se acha minuciosamente codificado, com evidente intuito de desvalorizar politicamente a contratação colectiva e a própria relação individual de trabalho.

Ora, as novas tecnologias, a quarta e a quinta revoluções, a sua disseminação progressiva e a apreensão individual e colectiva por camadas mais jovens de trabalhadores, permitiu-lhes assenhorearem-se de parte dos meios de produção, dum lado, e as empresas, por seu turno, promoverão a sua modernização, atingindo níveis sofisticados de computação e, mesmo, de robotização.

Não será difícil antever que a simbiose destas aquisições de meios digitais por quem trabalha e a sofisticação, também digital, das empresas, gerará outro modelo relacional com impactos contratuais, de natureza distinta, face ao que actualmente caracteriza a relação individual de trabalho.

Parece daqui decorrer uma consequência natural: o objecto do contrato individual de trabalho sofrerá mutações qualitativas, a obrigação de resultado conviverá com a obrigação de meios, tudo resultante dessa simbiose tecnológica, ou seja, quem produz e quem organiza a produção tende a viver no mesmo “ambiente” e numa “proximidade” que, não sendo descaracterizadora da relação de subordinação jurídica, assumirá (assumiria) inevitávelmente outro conteúdo, outra matriz, outra estrutura. 

Se a tudo isto somarmos o que “poderá” emergir do Covid-19, da modificação das regras da procura, de um mercado atomizado, com naturais repercussões na produção de bens e serviços e na consequente aproximação entre quem produz e quem consome, logo acrescentaremos um segundo ingrediente relevante para se “cair” numa diferente e mais exigente oferta desses bens e desses serviços.

Na verdade, inverter-se-á substancialmente o poder.

Quem comercializa não terá o poder de determinar o que se consome, dum lado, e quem consome terá a poderosa faculdade de escolher e de individualizar as suas opções, apesar de tal faculdade pré-existir, mas generalizou-se ex abrupto, face ao confinamento e à crise do Covid-19.

Estas metamorfoses, uma lenta, mas profunda, outra de sopetão mas, igualmente, muito profunda, arrastarão naturais consequências, para começar, no consumo e, por arrastamento, na produção.

O mercado terá de absorver poderes e outras exigências, porque parcialmente diferente, dum lado, tanto mais que tais poderes e tais diferenças terão uma vocação dominante e determinante. 

Pode, pois, antever-se uma relação de trabalho, individual e colectiva, erigida na competência e nos conhecimentos tecnológicos, na objectivação relacional, no relevo jurídico do “curriculum”, num outro modelo de formalização do universo juslaboral.

Poderemos regressar ao predomínio das relações individuais e colectivas de trabalho (agora num outro paradigma relacional, como se disse) numa diferente matriz da actividade sindical e num mais exigente estatuto de representação dos interesses individuais e colectivos de quem trabalha.

Do mesmo passo, o empregador não poderá viver e sobreviver sem as adequadas qualificações académicas e técnicas, ou seja, a própria empresa sofrerá mutações qualitativas, o poder de direcção, de modelação da prestação laboral e, por fim, a mais aguda conflitualidade tona-se inevitável, uma vez que o trabalhador integra na mesma personalidade jurídica a qualidade de cidadão, mesmo dentro da empresa, com todos os ingredientes que essa qualidade lhe empresta.   

É, de facto, antevisível, o preenchimento da prestação do trabalhador com ingredientes mais sofisticados, relacionados com a qualidade da relação, com a tutela, mais acentuada, de direitos de personalidade, que se não esgotarão nos direitos autorais, embora a defesa destes direitos passe a preencher grande parte da conflitualidade laboral.