Mário Bernardino

Doutorando em Saúde Internacional, especialização em Políticas de Saúde e Desenvolvimento do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa. Licenciado em Direito com cédula profissional da Ordem dos Advogados suspensa voluntariamente, diplomou-se em Administração Hospitalar pela Escola Nacional de Saúde Pública, completou o Curso Avançado de Gestão Publica do Instituto Nacional de Administração I.P., e o Programa de Alta Direção de Instituições de Saúde da AESE Business School. Exerceu cargos na administração de hospitais públicos como administrador-delegado, vogal executivo e presidente do conselho de administração. Atualmente é administrador hospitalar e foi o vencedor do Prémio António Arnaut 2016, instituído pela Edições Almedina e patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian.

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Resumo

Na gestão dos serviços de saúde é imprescindível uma “organização interna” eficaz, em permanente ajustamento ao plano estratégico, com especial sensibilidade às oscilações entre situações estáveis e situações de crise. Nesta perspetiva, gerir implica desenvolver, ajustar e manter uma organização interna capaz de assegurar o desempenho adequado, em que cada profissional faz o que melhor sabe fazer.

Em situações de crise ou catástrofe, em que tudo ou quase tudo falha, o ambiente externo dos serviços de saúde influencia as crenças e valores dos profissionais. Então, é imperativo que a organização interna saiba aproveitar essas motivações para superar as adversidades.

No dia seguinte à crise, os velhos problemas podem subsistir e requerem certamente novo tipo respostas do Serviço Nacional de Saúde (SNS). O SNS não existe para se servir dos seus utentes/doentes, mas antes para os servir.  Este axioma explicará a prevalência dos interesses dos utentes sobre os interesses corporativos. Daí ser consensual para todos: “colocar o doente no centro do sistema”.

1.     Introdução

A reportagem televisiva do dia 01/04/2020 da Sky News / SIC Notícias, sob o título “Hospital dedicado a tratar coronavírus não tem profissionais de saúde infetados”, mostrou-nos um hospital de doenças infeciosas em Nápoles como uma exceção no Sul de Itália, sem um único profissional de saúde infetado. Refere, também, que este já antes era o hospital mais avançado. A preparação e o equipamento foram apresentados como o segredo do sucesso. Na preparação identificou-se o planeamento e a forma como a organização interna se estabeleceu e ajustou, criando a confiança de todos para trabalhar em conjunto na proteção de si próprios (profissionais de saúde) e no controlo da doença (nos utentes e profissionais).

Este exemplo patenteia a capacidade de gestão e a importância da “organização interna”. Todos reagimos às questões urgentes. Porém, há problemas que não sendo urgentes, exigem ação tempestiva, ponderação e proatividade. Num hospital, a “organização interna” eficaz é aquela função que está em permanente ajustamento ao plano estratégico, sendo especialmente sensível às suas oscilações entre situações estáveis e situações de crise.

Foi evidente no hospital de Nápoles, a velocidade de ajustamento da organização interna que permitiu ter o equipamento de proteção individual (EPI) certo e instituir os protocolos certos, no momento certo. Salientaram-se as medidas de envolvimento de todos os profissionais no rigor e disciplina organizacionais, desde o processo de vestir e despir o EPI, a circulação nos corredores, bem como as novas regras de separação entre ambientes infetados e as zonas limpas.

2.     Discussão

Em qualquer empresa (seja de extração direta de produtos da natureza, industrial ou manipulação de matéria prima, prestação de serviços, ou comercial strictu sensu) são conhecidos três pilares de desenvolvimento da gestão: o acionista/capital; a organização interna; e o cliente/mercado.

A perspetiva do acionista desenvolve e privilegia a componente financeira e o equilíbrio da estrutura de capitais. Fundamentalmente, quando um acionista investe um determinado montante, pretende reaver esse mesmo montante acrescido de uma rentabilidade equivalente ao risco. Tem uma leitura de valor associada à máxima rentabilidade, ao menor custo e condições de pagamento dos recursos consumidos.

Por sua vez, a organização interna privilegia a componente recursos que consegue reunir e utilizar no exercício da atividade da empresa. Tem uma leitura de valor associada à disponibilidade e nível de segurança dos recursos que consegue reunir.

Por fim, o cliente/mercado desenvolve a ideia do produto que a empresa oferece para satisfação das suas necessidades e expectativas. Este pilar desenvolve a ideia de que a empresa oferece produtos, serviços e soluções que o cliente adquire, fazendo entrar dinheiro. É através deste elemento que a empresa constrói e sustenta valor. E como valor é dinheiro, esse dinheiro tem dois fins, alimentar a organização interna e remunerar o acionista.

A organização interna não é o pilar mais importante, porque todos são importantes e merecem igual atenção da gestão. Todavia, este elemento crucial, como consumidor de recursos financeiros, ao investir e ao pagar esses recursos (sejam pessoas ou ativos – equipamentos e matéria-prima), obtém produtos, serviços e soluções que o mercado valoriza, comprando, verificando-se acréscimo de valor por via da transação.

Nesta perspetiva, gerir um serviço de saúde é desenvolver, ajustar e manter uma organização interna capaz de assegurar o desempenho, em que cada ator faz o que melhor sabe fazer. É, também, deslocar o foco da produção para a organização da produção. A maior diferença entre um gestor e um produtor é a capacidade de delegar poderes nos outros tendo em consideração a capacidade individual de cada um. Um arquiteto que faz um projeto ou um carpinteiro que executa um móvel, são produtores. Mas, quando uma pessoa se organiza e trabalha com outras pessoas e sistemas para produzir, torna-se gestora. Um arquiteto que lidera um grupo de arquitetos, é gestor. Um carpinteiro que supervisiona outros carpinteiros, é gestor da produção. Um produtor pode investir uma hora de esforço para conseguir uma unidade de resultados. Um gestor, por seu lado, pode investir uma hora de esforço e produzir muitas unidades, através da delegação de poderes e organização interna eficaz. (Stephen R. Covey, 2017)

Mantendo a atenção no pilar da organização interna, os serviços de saúde desenvolvem a sua atividade agregando meios físicos, humanos e financeiros, organizados para produzir serviços que visam satisfazer as necessidades de saúde dos utentes, podendo ser decomposta em três componentes interdependentes (Zulmira Hartz, 2019):

  • Estrutura física: volume e estruturação dos diferentes recursos mobilizados (financeiros, humanos, imobiliários, técnicos, informacionais etc.).
  • Estrutura organizacional: conjunto de leis, regulamentos, convenções, regras de gestão entre outros, que definem como os recursos são empregues. 
  • Estrutura simbólica, também designada cultura organizacional: conjunto de crenças, representações e valores que permitem aos diferentes atores comunicar entre si e dar sentido às suas ações.

Na estrutura física, os profissionais de saúde e as suas práticas são fundamentais para a qualidade dos serviços prestados. Por um lado, os profissionais interagem para controle sobre os recursos e caracterizam-se essencialmente pelos seus projetos e pela sua propensão para agir. Por outro, as práticas destes profissionais são interdependentes e influenciadas pela cultura organizacional. (Zulmira Hartz, 2019)

De salientar, a influência do ambiente externo na organização interna das empresas/hospitais e, particularmente, na sua estrutura simbólica. Em situações de catástrofe, em que tudo ou quase tudo falha, as crenças e valores dos atores superam frequentemente as adversidades.

Nesta fase da pandemia do novo coronavírus, chamado de Sars-Cov-2, com um crescimento atualmente problemático do número de casos de Covid-19 em Itália, Espanha e Estados Unidos, as crenças, representações e valores influenciam fortemente a atitude dos profissionais de saúde com efeitos positivos na motivação e sentido das suas ações.

Esta preeminência do ambiente externo e da estrutura simbólica parece ter impulsionado o desenvolvimento do modelo de gestão no hospital da reportagem que, enquanto a pandemia devastava o Norte de Itália e avassalava o sistema de saúde, este hospital em Nápoles teve tempo para se preparar.

O mesmo processo parece caracterizar o momento atual do Serviço Nacional de Saúde (SNS) português. De acordo com “Coronavirus disease situation reports” da Organização Mundial da Saúde (OMS), os primeiros casos confirmados de Covid-19 em Portugal, ocorreram a 3 de março. Em Itália, os 2 primeiros casos ocorreram a 31 de janeiro. Quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia do novo coronavírus em 11 de março, em Itália havia já 10.149 casos confirmados e 631 mortes, enquanto Portugal tinha apenas 41 casos confirmados e 0 mortes. (WHO, 2020)

Parece que, tal como o hospital de Nápoles, Portugal teve mais tempo para se preparar. Por outro lado, as medidas excecionais de resposta à situação epidemiológica (Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março), bem como a pronta declaração do estado de emergência em 18 de março, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública (Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020), influenciaram, também, a resposta dos serviços de saúde. Até ao momento, os resultados são favoráveis e promissores, salientando-se em especial a competência técnica das equipas, o nível tecnológico e os processos utilizados. Este modelo de organização interna tem conseguido controlar a situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e a doença Covid-19 em Portugal.

Recordamos, contudo, que antes da Covid-19, os problemas mais conhecidos no SNS eram; a disfunção dos serviços de urgência;  as grandes listas e tempos de espera; o acesso e universalidade em cobertura; a insatisfação dos profissionais e dos utentes; e o crescimento desequilibrado das despesas (Mário Bernardino, 2017).

Certamente, o dia seguinte ao Covid-19 vai chegar e colocar novos desafios para a resolução dos velhos problemas.

3.     Conclusões

Tudo parece orientar-se para que, no dia seguinte, o modelo de gestão do SNS deve inspirar-se num novo paradigma que passará por (Mário Bernardino, 2017):

  • Recentrar o foco no doente;
  • Adotar uma visão integrada da prestação de cuidados de saúde nos seus diferentes níveis (cuidados primários, diferenciados, continuados e paliativos);
  • Estabelecer uma organização interna ajustada à estratégia de cada serviço de saúde;
  • Assegurar uma gestão integrada dos recursos.

A gestão de interesses divergentes dentro SNS constitui um repto que caracteriza a especificidade e peculiaridade das decisões de gestão em saúde. E a melhor decisão será sempre aquela que consegue conciliar os interesses divergentes entre o acionista, o cliente e organização interna.

Acresce que, “as organizações não existem para se servir dos seus clientes, mas antes para os servir”.  “Este axioma explica a prevalência dos interesses dos utentes (doentes) sobre os interesses corporativos” (Davis, 2006). E se é inevitável “colocar o doente no centro do sistema”, então, parecem ser evidentes duas linhas limitadoras:

  • Uma visão integrada da prestação de cuidados;
  • E uma gestão integrada dos recursos.

Assim, é indispensável uma visão integrada da prestação de cuidados de saúde nos seus diferentes níveis, para se determinar uma organização interna ajustada e atualizada que assegure uma gestão integrada dos recursos. A visão integrada e a organização interna são essenciais e constituem matéria de particular relevância, frequentemente subestimadas nas últimas décadas.

Referências

  • Davis, A. (2006). Corporate Governance—Boas Práticas de Governo das Sociedades. Monitor – Projetos e Edições, Lda.
  • Mário Bernardino. (2017). Gestão em Saúde – Organização Interna dos Serviços. Edições Almedina SA.
  • Stephen R. Covey. (2017). Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes (Gradiva – 9.a edição).
  • WHO. (2020). Coronavirus disease situation reports. https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/situation-reports/
  • Zulmira Hartz. (2019). Módulo de Avaliação em Saúde, IHMT, DSI (Contandriopoulos, A. P.; Champagne, F.; Denis, J.L.; Avarguez, M. C. L.; “evaluation: Concepts et méthodes”. Revue d’ Epidemiologie et Santé Publique, 2000).